Opinião

A corrupção e as criptomoedas

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30 de maio de 2022, 6h02

Muito já se escreveu sobre o crime de corrupção. Entretanto, e esse é um fato bastante curioso, sua percepção se modificou significativamente com o passar dos tempos. Embora criticada, sua rejeição foi variando conforme a época, sendo, contudo, presente ao longo da história.

Spacca
Menções à sua presença são vistas em textos antigos, hindus e gregos, mas é o caso da ascensão e queda de Roma, que passa à história como grande marco de seus estudos. Ninguém duvida, contudo, que o mundo sempre conviveu com a corrupção.[1] Os 500 anos de corrupção no Brasil, desde seu achamento, acentua a preocupação sempre reinante sobre o tema.[2] Foi, contudo, no final do século passado, com o caso Collor, e seu impeachment, que se iniciou o que se pode chamar de um novo momento de sua preocupação.

Isso não deixa de ser curioso, porque, até então, tinha-se por verdade as colocações de Hungria, de 1958, segundo as quais "o afarismo, o crescente arrojo das especulações, a voracidade dos apetites, o aliciamento do fausto, a febre do ganho, a steeplechase dos interesses financeiros sistematizaram, por assim dizer, o tráfico da função pública". "A corrupção campeia como um poder dentro do Estado. E em todos os setores: desde o "contínuo", que não move um papel sem a percepção de propina, até a alta esfera administrativa, onde tantos misteriosamente enriquecem da noite para o dia. Quando em vez, rebenta um escândalo, em que se ceva o sensacionalismo jornalístico. A opinião pública vozeia indignada e Têmis ensaia o seu gládio; mas os processos penais, iniciados com estrépito, resultam, as mais das vezes, num completo fracasso, quando não na iniquidade da condenação de uma meia dúzia de intermediários deixados à própria sorte. São raras as moscas que caem na teia de Aracne. O "estado-maior" da corrupção quase sempre fica resguardado, menos pela dificuldade de provas do que pela razão de Estado, pois a revelação de certas cumplicidades poderia afetar as próprias instituições."[3]

Isso se explicava, também, pela percepção da corrupção, fechada, então, em tipos penais ordinários. Somente nos anos 1970 é que diversas organizações internacionais, como a ONU, a Convenção Interamericana contra a Corrupção, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), enfim, passaram a tratar sobre o tema. A partir de então, nota-se uma preocupação internacional sobre a questão anticorrupcional. E, esta, note-se, vai bem para além da limitação aos aspectos dos tipos relativos à corrupção no Código Penal, dizendo respeito a qualquer manifestação de uma utilização desviada de poder, que dirige seu exercício a benefício próprio ou de terceiro. E isso, diga-se, somente se agudizou em um momento lavajatista.

De qualquer modo, descobriram-se recentemente variadas formas de corrupção, quer por meio de depósitos, sacos e malotes de dinheiro em locais vários ou, mesmo, compra eventual de bancos para fins escusos. Por tal razão, uma das grandes dúvidas colocadas ao novo momento relativo às criptomoedas diz respeito a como a criminalidade não poderia se aproveitar do mundo cripto para suas malversações. Em um misto de ignorância e preconceito, desde logo não poucas pessoas acabam por entender que o crescimento da sua aceitação acabará por legitimar tantas e tantas operações criminosas, também de corrupção.

Mostra-se fundamental, no entanto, recordar que criptomoedas não se revelam tão distintas de valores em espécie propriamente ditos. Ambos podem ser utilizados para atos de corrupção, sendo que a eventual rastreabilidade das primeiras seria forma de garantia contra sua utilização. Esta pode se dar, mas não de forma indistinta como seus detratores querem fazer crer. Existem, portanto, salvaguardas para sua utilização, ainda que haja, sim, e inegavelmente, modalidades cripto que seriam blindadas a tanto. Mas, de outra sorte, estas muitas vezes carecem de suficiente mercado para indistintas operações. Nesse sentido, de se ter em conta que, sua segurança é até interessante, e que, apesar de tantas aplicações poderem ser vistas no aforisma pecunia non olet, no caso das criptomoedas, seu rastreio é mais viável do que se faz crer, aqui e acolá.

De todo modo, é de se ter em conta que as criptomoedas podem, sim, ser utilizadas para o crime e pelo crime, mas isso não as torna preferencialmente mais suscetíveis ao crime. E, nesse particular aspecto, alguma regulação pode se mostrar de interesse, principalmente quando se imagina que sua maior adoção é questão meramente de tempo. A segurança, ou melhor, a sensação de segurança a se esperar talvez possa, pois, ser suprida por barreiras regulatórias as quais acabam, também, por se edificar como fronteiras do lícito e do ilícito.

Portanto, a alegada aparência de facilitadora de atos corrupcionais mediante uso de criptomoedas pode, em verdade, ser falsa. Existem, no entanto, outras tantas questões a serem levadas em conta, como, por exemplo, a sua utilização como mercado auxiliar no câmbio, principalmente caso venha a se cuidar de uma stable coin. Ou, mesmo, sua utilização como elemento de busca de sonegação fiscal.[4] E tais problemas potencialmente são, sim, bem mais graves e de difícil solução. Mas, para isso, a devida avaliação do risco, permitido e proibido, a ser estipulado dentro do setor cripto, deve ser levada em conta, tomando-se, em especial, as remissões a serem determinadas dentro do escopo regulatório a ser administrativamente estipulado.[5] Tudo, enfim, parece ser vinculado ao sistema de freios e contrapesos que se pretende impor.


[1] BRIOSCHI, Carlo Alberto. Breve história de la corrupción. De la antigüedad a nuestros días. Traducción de Juan Ramón Azaola. Madrid: Taurus, 2010, passim.

[2] HABIB, Sérgio. Brasil: quinhentos anos de corrupção. Enfoque sócio-histórico-jurídico-penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, pp. 5 e ss.

[3] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, vol. IX, p. 362 e ss.

[4] Cf. ABANTO VÁSQUEZ, Manuel A. Autoblanqueo de capitales y su relación con la defraudación tributaria. In: AAVV. Libro homenaje al professor Luis Arroyo Zapatero. Un derecho penal humanista. Madrid: Agencia Estatal Boletín Oficial del Estado, 2021, vol. 2, p. 1179 e ss.

[5] Cf. PASTOR MUÑOZ, Nuria. Riesgo permitido y principio de legalidade. La remisión a los estándares sociales de conducta en la construcción de la norma jurídico-penal. Barcelona: Atelier, 2019, p. 81 e ss.

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