Opinião

O melhor e o pior da nova lei de improbidade: continuando os "exageros"

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

25 de maio de 2022, 19h09

Recentemente, aqui na ConJur, publiquei um artigo que falava sobre aspectos conturbados da reforma feita pela Lei nº 14.230/2021 na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992). Levantei uma série de problemas exclusivamente oriundos do texto da lei, e, ao final, perguntei ao leitor se eu estava exagerando. As respostas foram as mais variadas. Então, tomando como ponto de partida as "provocações" feitas neste ínterim, relaciono no presente texto mais alguns "exageros" para reflexão, a fim de que o leitor possa ratificar ou não minha injustiça para com a reforma da lei de improbidade.

1) Primeiro ponto. Afirmei no mencionado artigo que a opção da lei em extinguir automaticamente uma ação de improbidade quando absolvido o réu na esfera criminal por qualquer motivo poderia ser reputada inconstitucional, dado o conteúdo do artigo 37, § 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88). Alguns leitores disseram — e com boa dose razão — que minha interpretação ao não estava correta no ponto, porque a parte final da regra mencionada fala que a ação de improbidade não prejudicará a pertinente ação penal cabível pelo mesmo fato, e não o contrário, fato que não macularia a opção feita pela Lei nº 14.230/2021.

Essa é uma interpretação literal do dispositivo, que sempre é a mais segura, mas pode ser a mais pobre. O texto atual do artigo 1º "caput" da Lei nº 8.429/1992 deixa claro que o tema da improbidade deverá ser pensado globalmente, ou seja, a partir de um "sistema" (sic.) — o termo empregado pelo legislador faz todo o sentido com a lógica da reforma promovida em 2021. De modo que o direito sancionador deverá ser compreendido a partir de uma série de microssistemas (v.g. lei de improbidade, Código Penal, Lei Anticorrupção — Lei nº 12.846/2013), leis de licitações etc.), os quais devem dialogar entre si — aplica-se aqui o método de Erik Jayme, popularizado no Brasil pela Prof. Cláudia Lima Marques [1].

Em outras palavras e de modo muito sintético, não se pode pensar que a improbidade administrativa é uma via de mão única — aplicando-se literalmente o artigo 37, § 4º, da CF/88, ou seja, apenas a improbidade não prejudica a ação penal cabível. Tanto que esta via de mão única sequer existia antes da reforma, porque o processo de improbidade já poderia ser extinto pela absolvição penal, mas em menor termo, ou seja, quando o acusado na esfera criminal era absolvido por conta de que cabalmente provado que não ocorreu o fato ou a autoria — tudo de acordo com o artigo 66 do Código de Processo Penal. Concluindo: a partir de uma interpretação sistemática e teleológica (finalística), não estaria o legislador constituinte a dizer que os dois microssistemas deveriam ser vistos de modo apartado, ou seja, não estaria a dizer que não é possível que um possa interferir no outro? Não teria ele seccionado a comunicação entre os dois microssistemas? (É só uma pergunta à reflexão).

Quando o dispositivo constitucional fala em: "sem prejuízo às sanções penais cabíveis", ele estaria no mínimo a vedar a possibilidade de compensar as penas da seara da improbidade na esfera criminal, o que contraria o disposto na Lei nº 14.230/2021 (artigo 21, § 5º). Eis o meu ponto. Para alento do leitor não concordante à tese por mim exposta, penso que temos aqui no mínimo uma ponderação a fazer quanto a dois bens constitucionalmente protegidos: de um lado parece que o artigo 37, § 4º veda a compensação, e de outro há a proteção do non bis in idem feita no artigo 5º da CF/88.

2) Segundo ponto. O artigo 12, § 9º, da Lei de Improbidade Administrativa, dispôs que todas as penas (cuide bem) somente podem ser executadas depois do trânsito em julgado. Então, não pode existir execução provisória de pena. Até aqui, tudo certo. E o § 10 do mesmo artigo, assim dispõe: "Para efeitos de contagem do prazo da sanção de suspensão dos direitos políticos, computar-se-á retroativamente o intervalo de tempo entre a decisão colegiada e o trânsito em julgado da sentença condenatória". Este dispositivo é coerente com o conteúdo da Lei da Ficha Limpa, a qual declara inelegíveis os agentes políticos com condenação por órgão colegiado (artigo 1º, da LC nº 64/1990, com redação dada pela LC nº 135/2010). O problema é que ele é incoerente com o parágrafo anterior do mencionado artigo 12. Abem dizer, gerará situações em que sequer se conseguirá cumprir tal pena. Se de um lado o § 9º impede que alguém possa perder os direitos políticos antes do trânsito em julgado, de outro o § 10, após o tal marco, faz retroagir uma pena que muitas vezes nunca poderá ser cumprida. Há uma tragédia anunciada em benefício do agente não republicano.

Imagine que em 2023 o Tribunal de Justiça (órgão colegiado de segunda instância) tenha mantido ou condenado um prefeito à suspensão de direito políticos por quatro anos. Este acusado interpõe uma série de recursos às instâncias superiores, e o processo transita em julgado em 2030. Como cumprir a pena? Veja que, pelo texto do § 10 do artigo 12, ela deveria retroagir à decisão colegiada, ou seja, retroagir a 2023, aplicando-se a pena até 2027 (quatro anos). Mas como aplicar uma pena nestes termos, se já estaríamos no ano de 2030? O agente político sequer estaria exercendo mandato ao qual foi condenado. E seria impraticável extinguir os atos por ele exarados no período de retroação da suspensão de direitos. Exemplo: naquele período de 2023 a 2027, o prefeito sancionou leis, nomeou pessoas, desapropriou áreas de terras etc. Tudo isto seria anulado? Acredito que não.

Então, se de um lado o § 9º evita que um inocente possa ter de cumprir pena antecipadamente, sendo depois absolvido pelas instâncias superiores — o que é louvável —, de outro, o § 10, da forma como foi escrito e com a retroatividade nos termos propostos, pode levar a situações em que a pena sequer terá como ser cumprida. Seria muito mais coerente que a suspensão fosse cumprida a partir do trânsito em julgado, extirpando-se as determinações desta última regra citada.

3) Terceiro ponto. A reforma implementada pela Lei nº 14.230/2021 permite punir um particular que não possui vínculo com o Poder Público, ou seja, não é considerado "agente público" desde que "induza" ou "concorra" com a prática ilícita do mencionado funcionário estatal (artigo 3º "caput"). A legislação não mais permite punir este particular que eventualmente "se beneficie", como fazia a versão anterior da Lei de Improbidade Administrativa.

Ao que parece, a reforma pretendeu evitar a punição daquele que usufrui do produto do ilícito, mas não possui dolo, não compactua ou não partilha da conduta ímproba. No entanto, a Lei de Improbidade deixará de sancionar condutas relevantes, que são objeto de tutela punitiva em outras searas. Vamos a exemplos: o direito penal penaliza com muita ênfase aquele que aufere benefícios com o produto do ilícito, sancionando não só aquele que subtrai, mas aquele que, apesar de não ter praticado o furto ou roubo, dolosamente recebe o produto do crime sabendo sua origem — v.g. crime de receptação (artigo 180 do Código Penal). Enquanto que o direito criminal cria todo um sistema de tutela e penalização daquele que pratica a lavagem de ativos (Lei nº 9.613/1998), a improbidade administrativa hoje não mais tem potencialidade de sancionar esta conduta tão relevante à prática ilícita.

Em outras palavras, não será punido o agente que recebe o produto do enriquecimento ilícito ou da lesão ao erário (artigos 9º e 10 da Lei nº 8.429/1992) ou aquele que se dedica a dar aparência de licitude ao produto da fraude (lavagem), mesmo sabendo da conduta ímproba e da qualidade do ativo. Então, a retirada do verbo "beneficiar-se" do artigo 3º da lei tem o condão de gerar a impunidade na seara da improbidade administrativa, o que não ocorre na seara criminal. E esta situação fixa certa dose incoerência na mencionada lógica de se criar um "sistema sancionador" da improbidade — já falado logo no início da nossa exposição.

E vamos além. O artigo 10, inciso I, pune o agente público que facilita ou concorre, por qualquer forma, para a indevida incorporação ao patrimônio particular, de pessoa física ou jurídica, de ativos estatais. Mas não se vê — ao menos na minha ótica — dispositivo que pune o particular que recebe estes ativos. Vamos a mais um exemplo: funcionário público desvia verbas do erário para membro próximo de sua família. Este último sabe de toda a prática, e não será punido. Ou o desvio vai a terceiro que pratica conduta de lavagem de capitais — poderá ser punido na esfera criminal, mas não no campo da improbidade administrativa.

4) Quarto ponto. Aqui, não temos uma crítica, apenas uma constatação. A jurisprudência do STJ sempre rechaçou a possibilidade de aplicar o instituto da insignificância ou da bagatela no âmbito da improbidade administrativa, e assim o fez com fundamentos muito consistentes [2]. Contudo, a reforma feita pela Lei nº 14.230/2021 alterou este cenário, permitindo que estes institutos fizessem parte do sistema de combate à improbidade, para reduzir à condenação à pena de multa, quando configurada a bagatela (artigo 12, § 5º). O problema é que a lei não forneceu parâmetros mínimos para definir o que é a "menor ofensa aos bens jurídicos tutelados" (sic.). A jurisprudência a e doutrina terão de criar multiníveis de agressão aos bens tutelados pelos artigo 9º, 10 e 11. Em outras palavras: dever-se-á compreender o que é uma "lesão ao erário insignificante" ou o que é a "bagatela de enriquecimento ilícito".

Especificamente em relação ao tipo punitivo do artigo 11 (violação aos princípios), a lei fixou três níveis de agressão ao bem juridicamente tutelado: (a) quando a agressão não tem relevância, haverá a extinção da ação (artigo 11, § § 4º); (b) quando a agressão for de "menor ofensa", o acusado será condenado, mas aplicando-se a ele somente a pena de multa (artigo 12 § 5º); (c) se a agressão ao bem juridicamente tutelado for grave, o regime de aplicação de pena segue as diretrizes "normais" do artigo 12. Lembrando que caberá à jurisprudência e a doutrina definir todos estes conceitos jurídicos indeterminados.

5) Ponto final. Nossas convicções sobre a reforma praticada pela Lei nº 14.230/2021 são prioritariamente analíticas, e não dissertativas. A questão não se relaciona à opção pelas mudanças, pois esta escolha compreende uma série de aspectos políticos que são da autonomia dos Poderes construídos. Restringimo-nos aos problemas de estrutura normativa, que poderiam sim ter sido evitados. Portanto, se ser exagerado é esperar uma lei coerente e consistente, e sem estar taxada de insegurança jurídica, posso dizer com orgulho que sou um exagerado confesso.


[1] MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo das fontes. In: BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

[2] STJ, REsp. nº 892.818-RS. E Súmula nº 599 do STJ que não permite aplicar a insignificância aos crimes praticados contra a Administração Pública. E também não aplica o instituto aos crimes de responsabilidade (STJ, REsp. nº 769.317-AL).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!