Opinião

O pior e o melhor da nova Lei de Improbidade Administrativa

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

7 de maio de 2022, 6h32

Enquanto se está a discutir se existe retroatividade mais benéfica das alterações feitas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992), operadas pela Lei nº 14.230/2021, aos processos em curso ou mesmo já julgados [1], parece-nos que há uma série de, digamos,… como posso dizer… "Complexidades evidentes" (o eufemismo é proposital) na reforma. São incongruências que certamente perturbarão a doutrina e notadamente a jurisprudência nos próximos anos, e, por conta disto, será imprescindível estar atento aos precedentes das Cortes, sobretudo de vértice (Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal), porque é naturalmente lá que se aplainarão as imperfeições da "nova Lei de Improbidade". Enquanto isto, a insegurança assombrará a todos com voracidade.

Para que o leitor não pense que é exagero meu, de modo telegráfico, no estilo "Twitter", vou dispor em tópicos objetivos o que compreendo serem estas incongruências da reforma praticada pela Lei nº 14.230/2021. E o farei questionando apenas o texto da legislação, sem juízos ligados ao fato de a reforma ser mais combativa ou mais leniente com a corrupção. Essa compreensão deixo ao leitor, assim como convido o mesmo leitor a, ao final, dizer se estou ou não exagerando. Passemos à seleção aleatória de casos.

1) Quando §3º do artigo 1º diz que os atos de improbidade somente são puníveis se estivermos diante de "fim ilícito", o dispositivo elimina qualquer possibilidade de punição em caso de desvio de finalidade. Lembrando que o tal desvio de finalidade ou de poder ocorre quando se pratica um fim lícito (conforme o direito), mas ilegítimo, ou seja, é violador do interesse público (falamos amplamente do instituto na nossa obra "Curso de Direito Administrativo" (Ed. Juspodivm), p. 788 e ss.). Exemplifico: imagine que um Prefeito de uma pequena cidade resolva construir um estádio de futebol tão grande que, se toda a população ir assistir a uma partida, não lotará a tal arena. Veja que, em si, construir um estágio de futebol não é ilícito — está aí o direito ao desporto para não nos desmentir —, mas será que não é uma conduta violadora do interesse público, ou seja, tachada com desvio de finalidade? Então, no caso, a atual Lei nº 8.429/1992 não parece ter alcance em punir esta conduta.

2) A determinação de incidência dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador no âmbito da improbidade administrativa pode ser considerada uma ótima providência (artigo 1º, §4º). O problema maior é saber quais são os princípios de que estamos a falar, porque a lei nada disse. E se mirarmos o texto da Constituição Federal, vamos ver que muitos dos princípios reconhecidos pela dogmática jurídica não são expressos. Então, julgamos que essa omissão não é boa, porque deixará uma margem muito ampla para se criarem princípios até mesmo "por encomenda". Essa não é uma boa técnica, repito, e comprovo isto comparando com outras legislações, como a Lei nº 14.133/2021, artigo 5º (que lista os princípios incidentes nas licitações e contratos públicos) e da Lei nº 8.987/1995, artigo 6º, §1º (que lista uma série de princípios que regem os serviços públicos concedidos).

3) O artigo 16 da Lei nº 8.429/1992 ora reformulado ia bem até o §9º. O §10 descamba ao vedar arresto sobre "os valores a serem eventualmente aplicados a título de multa civil ou sobre acréscimo patrimonial decorrente de atividade lícita". Então, a medida cautelar incide só sobre casos de lesão ao erário. Ao que parece, o legislador "incentiva" o cometimento de ilícitos do artigo 9º, quando o agente enriquece ilicitamente, porque esta vantagem patrimonial ilegal sequer poderá ser objeto de indisponibilidade de bens. Afinal, a lei parece não tratar isonomicamente todos os atos típicos.

Deixo aqui uma solução provocativa: poderia se deferir a indisponibilidade de bens para assegurar o pagamento de multa e enriquecimento indevido (vedados pelo artigo 16), mas com base no artigo 17, § 6º-A: "§6º-A O Ministério Público poderá requerer as tutelas provisórias adequadas e necessárias, nos termos dos artigos 294 a 310 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)". Em outras palavras, a indisponibilidade nestes casos tomaria por base o poder geral de cautela do magistrado, e não teria fundamento na cautelar especificamente cotejada pelo referido artigo 16 da Lei nº 8.429/1992.

4) E a cautelar do artigo 16 ainda revela outros efeitos perversos. O seu §11 determina a prioridade na constrição de ativos, permitindo, "apenas na inexistência desses" (sic.), o bloqueio de contas bancárias, "de forma a garantir a subsistência do acusado e a manutenção da atividade empresária ao longo do processo". Ora, em situações como esta, é claro que o réu alocará o produto do ilícito em contas bancárias, deixando outro ativo de parco valor a espera da constrição. Quando esta eventualmente acontecer, o corrupto sumirá com os ativos depositados em contas bancárias. Outro grande "incentivo" do legislador à fraude.

5) O artigo 16 ainda revela outros rompantes. Tentaremos não ser injustos com o "espírito" do §13 do artigo 16. Ele pretendia — veja o tempo verbal — seguir a linha do Código de Processo Civil a impedir a indisponibilidade da quantia de até 40 (quarenta) salários mínimos depositados em caderneta de poupança. Mas foi além do que diz o referido código, a proibir a cautelar "em outras aplicações financeiras ou em conta-corrente" (sic.). Logo, a Lei de Improbidade ampliou a impenhorabilidade justamente em casos graves de dilapidação de patrimônio público. Então, o legislador foi mais bondoso com um corrupto do que com um devedor de uma nota promissória, por exemplo, porque este último não conta com a impenhorabilidade de outras contas (só da poupança, cf. artigo 833, inciso X, do CPC).

6) Em tese, regras que tratam de prazos tendem a ser objetivas e no mais das vezes pouco aptas a serem confusas. Não é o caso do artigo 17, §7º da Lei de Improbidade, que determina que a contestação dos requeridos seja protocolada em "trinta dias" (sic.). A dúvida reside em saber se este prazo é contado em dias úteis ou em dias corridos. Veja que o "caput" do artigo 17 afirma que o processo das ações de improbidade seguirá o procedimento comum previsto no Código de Processo Civil, salvo o disposto da própria lei.  E o próprio §7º do artigo 17 que trata do prazo para a referida defesa faz referência ao código. Sabendo que o CPC impõe a contagem em dias úteis, o referido dispositivo da Lei de Improbidade Administrativa estaria ou não contando o prazo desta forma? Retomando a fala inicial deste item: um tema que não deveria despertar dúvidas, acaba por trazer mais uma nova celeuma.

7) Na linha das sanções criminais, o legislador quis evitar que a soma das condenações gerasse uma pena perpétua. Então, colocou limites, mas o fez com sérios problemas. O artigo 18 da Lei de Improbidade Administrativa, dispõe que, "a requerimento do réu, na fase de cumprimento da sentença, o juiz unificará eventuais sanções aplicadas com outras já impostas em outros processos (…)". A primeira pergunta que se faz é: o juiz não poderia fazer de ofício? A pergunta se faz, porque o artigo dispõe que a unificação deve se dar a "requerimento" da parte. Entendemos que pelo princípio da oficialidade, o magistrado poderia unificar as penas independentemente de pedido específico.

Continuemos a ver outros problemas: "Artigo 18 (…) I – no caso de continuidade de ilícito, o juiz promoverá a maior sanção aplicada, aumentada de 1/3, ou a soma das penas, o que for mais benéfico ao réu;". Mas, afinal, o que é "continuidade"(sic.)? Temos três possibilidades: a) continuidade de ilícitos se dá em tipos punitivos idênticos (praticar o tipo do artigo 9º (enriquecimento indevido) não geraria continuidade se, na sequência, a conduta viola o artigo 10 (lesão ao erário); b) a continuidade deveria se operar mesmo se repetidos tipos diferentes; c) a continuidade se daria entre tipos punitivos da Lei nº 8.429/1992 e de outras leis (verbi gratia licitações, Lei nº 12.846/2013 etc.), porque estamos hoje diante de um "sistema de tutela à probidade"— conforme artigo 1º "caput" da Lei nº 8.429/1992.

8) A determinação de que exista compensação de penas poderia estar até na lista do "melhor da Lei de Improbidade". Essa compensação de penas é inserida na linha do que já determinava o artigo 22, §3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro: "As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato". Mas cuide bem, o artigo 21, §5º, da Lei nº 8.429/1992, não fala que as sanções eventualmente aplicadas em outras esferas deverão ser compensadas com as sanções "de mesma natureza". A lei de improbidade silencia a respeito, deixando a dúvida: poder-se-ia compensar uma pena de advertência aplicada no âmbito das licitações com uma pena de multa ministrada na seara da improbidade?

9) O artigo 21, §4º, da Lei nº 8.429/1992 vincula os efeitos da absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, impedindo o trâmite da ação de improbidade, não importando qual seja o fundamentos de absolvição na seara criminal. E essa vinculação será processada desde que a "confirmada por decisão colegiada" (sic.). Essa expressão deve ser reputada como se referindo à "segunda instância"? Veja esta situação: uma autoridade estatal desvia recursos públicos, e, então, por este fato, sofre uma ação de improbidade e também é processada criminalmente. Tempos depois, o acusado é absolvido por um juiz de primeiro grau. Neste caso, a ação de improbidade com fundamento no mesmo fato deverá continuar. Caso o Tribunal respectivo decida pela extinção da ação penal, a julgar recurso da acusação, a ação de improbidade não deverá mais ser processada, porque somente aqui temos uma decisão colegiada.

Tomando por base a mesma situação: imagine que da decisão de Segunda Instância tenham sido interpostos Recurso Especial ou Extraordinário. E, ao julgar o tema, o STJ ou o STF venham a reformar a decisão criminal absolutória, a ação de improbidade extinta deveria retomar seu curso? Pensamos que sim.

Vamos ver outra situação. E se um governador de estado esteja sendo processado criminalmente no STJ — dado seu foro é privilegiado neste caso —, e exista ação de improbidade correndo na 1ª Instância, a decisão absolutória pelo colegiado da referida Corte de Justiça já de plano extinguiria a pertinente ação que corre pelos termos da Lei nº 8.429/1992.

10) Até aqui, apesar de alguns percalços, consegue-se chegar a um bom termo hermenêutico do referido artigo 21, §4º, da Lei nº 8.429/1992. Mas a comunicação entre as esferas criminal e de improbidade administrativa feita pelo dispositivo pode ser reputada inconstitucional, porque a parte final do artigo 37, §4º, da Constituição é bastante clara ao dizer que a ação de improbidade não prejudica a respectiva ação penal cabível. Então, de um lado, a Lei nº 8.429/1992 faz uma vinculação entre as esferas criminal e de improbidade, e a Constituição, ao contrário, deixa claro que não pode existir esta prejudicialidade. E isto leva à mencionada virtual inconstitucionalidade.

Encaminhando-me ao final e, conforme prometido, pergunto ao leitor: estou exagerando?


[1] Como a incidência retroativa dos novos prazos de prescrição fixados no artigo 23 da Lei nº 8.429/1992.

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