Opinião

Prescrição intercorrente em improbidade: por que tanta resistência? (parte 2)

Autor

  • Rafael Ferreira de Albuquerque Costa

    é advogado especialista em Direito Criminal pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Rio de Janeiro.

24 de maio de 2022, 6h35

Continua parte 1.

Argumentos contrários à aplicação retroativa
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Ministério Público Federal, em novembro de 2021, emitiram a nota técnica 01/2021 e a orientação nº 12 através de suas respectivas 5ª Câmara de Correção e Revisão – Combate à Corrupção acerca das alterações da Lei nº 8.429/92 feitas pela Lei nº 14.230/21.[1] No tocante à prescrição intercorrente, o órgão do CNMP opinou contrariamente à sua aplicação retroativa, posto se tratar de norma de caráter processual, portanto regida pelo princípio do isolamento dos atos processuais, não haver norma que imponha a extinção da punibilidade do agente quando atingida a pretensão estatal por se cuidar de prescrição civil cuja característica é afetar apenas o direito de ação, ser o regime do Direito Administrativo Sancionador distinto daquele do Direito Penal, não havendo que se falar em transposição automática das suas garantias materiais e processuais e, ao fim, haver inconstitucionalidade na aplicação retroativa da prescrição intercorrente dado o princípio da vedação do retrocesso social.

O advento da Lei nº 14.230/21, portanto, ensejou a movimentação de diversos processos em todo o país pelo Ministério Público, que viu em xeque o trabalho desempenhado ao longo de anos. Nesse contexto, selecionaram-se, por amostragem e com extensão territorial delimitada ao Estado do Rio de Janeiro, algumas promoções ministeriais as quais entendeu este autor enfrentarem densamente o tema e exporem posicionamento alinhado com a orientação e nota técnica emitidas pelo CNMP. De antemão, contudo, sublinha-se que, como é de sabença geral, a Constituição confere aos membros do Ministério Público independência funcional, de maneira que não detêm caráter vinculante as normativas exaradas pelo órgão de controle ministerial. Aponta-se, então, que, muito embora seja possível falar de um posicionamento institucional do Ministério Público, uma vez que há um direcionamento de atuação sugerido por um órgão de cúpula da instituição, não há que se presumir uma generalização acerca das posições de cada membro ao largo de toda a extensão do território nacional.

Em caso que tramita perante a Justiça Estadual carioca, o Ministério Público, em atenção a despacho que ordenou o aditamento da Inicial para adequá-la aos ditames da Lei nº 14.230/21, manifestou-se no sentido da realização de um controle difuso de constitucionalidade sob os auspícios do princípio da proibição da proteção deficiente, o qual seria outro viés do princípio da proporcionalidade.

Com esse argumento, defendeu o Ministério Público que a Lei aprovada pelo Poder Legislativo deixa a descoberto o direito fundamental, no caso o direito à probidade administrativa, que deveria o Estado tutelar, assim como o dever de o Estado combater a corrupção, inexistindo “liberdade absoluta de conformação legislativa[2], haja vista que a vedação à proteção deficiente consiste no limite mínimo de aferição da efetividade do ato normativo elaborado pelo legislador.

Nesse sentido, foi endossado que o processo legislativo deve resultar em medidas que alcancem um mínimo de salvaguarda daquilo que prevê a Constituição, sob pena de desconformidade com suas disposições. Utilizou-se a conceituação do princípio proibição da proteção deficiente proposto pelo ministro Luís Roberto Barroso:

Portanto, para assegurar que o Estado cumpra, na justa medida, os seus deveres de proteção, o princípio da proporcionalidade, básico nessa matéria, flui por duas vertentes distintas. A primeira, a proibição do excesso, a qual permite, ou impede, que o Estado interfira indevidamente com liberdades individuais. Mas há uma segunda dimensão para o princípio da proporcionalidade: a vedação à proteção insuficiente que se dá quando o Estado deixa de estabelecer normas e procedimentos adequados à proteção dos valores constitucionais. Logo, é possível — e aqui é o caso — violar-se o princípio da proporcionalidade pela proteção insuficiente de valores condicionais.[3]

A argumentação continua e acrescenta os subprincípios do postulado da proporcionalidade, quais sejam a necessidade, a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito. Quanto ao último, aduz-se que a probidade, em razão de todos os fundamentos constitucionais que a sustentam — república, princípios norteadores da administração pública e conteúdo de direito fundamental não enumerado, como se verá adiante — encontra maior peso constitucional que as restrições e interesses do administrador que a interpretação no sentido de rol exemplificativo impõe. Dito de outro modo, o Constituinte certamente confere maior relevância à probidade administrativa do que as restrições impostas ao gestor e interesses desses, até porque as restrições impostas ao gestor são todas em prol do interesse público, sendo certo que os mesmos detêm total conhecimento em relação a elas quando resolvem voluntariamente optar por essa atividade laborativa.[4]

Discorre-se sobre uma suposta prevalência entre o direito fundamental a uma administração proba e as garantias constitucionais do administrador público. Não obstante, em seguida se inicia a alegação de que as disposições trazidas pela Lei nº 14.230/21 afrontariam o princípio da vedação do retrocesso social, ou seja, um sancionamento supostamente mais brando implicaria no abandono de uma conquista social insculpida na Constituição da República, o que seria inviável diante do caráter prospectivo das suas disposições e do alcance indevido ao núcleo essencial do direito fundamental à administração proba.[5]

Trata-se, pois, de uma construção jurídica que visa à deslegitimação de atos que, sob uma aparência de legalidade formal, afetam substancialmente uma liberdade pública consagrada no texto constitucional, podendo ser impugnado judicialmente por meio dos instrumentos processuais destinados ao controle de constitucionalidade. Por via de consequência, a supressão de direitos fundamentais pelo poder constituinte derivado e pelo legislador ordinário mostra-se indevida.

O último aspecto da argumentação do Ministério Público no caso que tramita perante a justiça estadual consubstancia-se no desrespeito da Lei nº 14.230/21 à Convenção de Mérida, internalizada pelo Decreto nº 5.687/06, a qual teria status supralegal e, portanto, haveria incompatibilidade da legislação ordinária em comento com as suas disposições, notadamente a que se refere à positivação à vedação do retrocesso no âmbito do combate à corrupção.[6]

Apontamentos críticos
Tenhamos em mente que o sistema de responsabilização por atos ímprobos é um braço da persecução judicial do Estado. Nenhuma novidade. Afinal de contas, o Estado pode e deve buscar a tutela dos interesses públicos, dentre os quais se encontra a probidade administrativa. No entanto, essa persecução, se bem-sucedida, impõe uma responsabilização por meio de sanções. Das mais graves, aliás. E o que fez a Lei nº 14.230/21 foi a racionalização e elevação da fasquia para imputação. Eis o ponto: a lei amplia direitos fundamentais.

Soltou os olhos a utilização do controle incidental de constitucionalidade para buscar a inaplicabilidade de lei que visa justamente à ampliação de direitos fundamentais, matéria, como se sabe, por excelência afeita à Constituição. Seria a Constituição inconstitucional?

A invocação da vedação ao retrocesso social como fio condutor do argumento pela inconstitucionalidade da Lei nº 14.230/21 é problemática em, ao menos, três aspectos. (I) Vale-se do postulado da proporcionalidade, que é diferente do princípio penal da proporcionalidade, (II) confunde improbidade administrativa com combate à corrupção e (III) esquece-se da mens legislatoris na construção do argumento.

Arguir que haveria retrocesso social na ampliação de direitos é comparável ao sofisma de que o devido processo legal e a aplicação das garantias constitucionais aos réus no processo penal geram impunidade. Nada mais do que ladainha falaciosa. Até porque a história da civilização ocidental aponta que o desenvolvimento e o progresso sociais são filhos da liberdade, que se alcançou por meio da ampliação de direitos individuais frente o Estado. Falar de aumento das garantias, ou, dito de outro modo, de elevação do ônus estatal para a procedência de sua persecução in iudicio como retrocesso é, no mínimo, inverter o que se concebe sobre liberalismo político até então. Não se cogita, pois, de proteção deficiente da probidade estatal. Ora, os atos ímprobos continuam sendo ilícitos, mas agora se exige do Estado mais diligência, estratégia e robustez probatória. Que mal há nisso? Provar o dolo ou atuar com rapidez em casos de corrupção, cuja prescrição pela penal em concreto pode ser regulada por um prazo de, em média, de 4 a 8 anos, no processo penal nunca foi óbice à consecução de éditos condenatórios.

Adicionalmente, pretender regular a restrição de um direito fundamental, que por si só já é inviável e absurdo, por um conceito aberto como o postulado da proporcionalidade parece ser incompatível com um Estado democrático de Direito. Os conceitos abertos servem a qualquer senhor. E já nos alertava disso o ministro Eros Grau no voto proferido no HC nº 95.009-4/SP.[7]Se a ponderação com base no princípio da proporcionalidade é cabível em qualquer situação, quando precisarmos nos socorrer num direito, a discricionariedade bastará dizer que não é este aplicável ante a ausência de proporcionalidade no caso concreto.

O combate à corrupção não se resume à Lei de Improbidade Administrativa. Isso porque (I) nem todas as condutas previstas como ilícitas na Lei de Improbidade Administrativa se tratam de corrupção e (II) a prevenção e a repressão de atos de corrupção são também objeto de atuação dos órgãos de controle interno e externo da Administração Pública, do Poder Legislativo, das Controladorias etc. O bravejo de quem diz que o combate à corrupção acabará com a Lei nº 14.230 é o mesmo dos escravocratas que defenderam que a abolição levaria à economia à bancarrota e das fúteis senhoras burguesas que reclamavam que ninguém mais limparia seus banheiros, como jocosamente comenta Lenio Streck.[8]

A justificativa do projeto de lei que originou a Lei nº 14.230/21 registra que, após o jubileu de prata da Lei nº 8.429/92, para usar a expressão do relator, era necessária uma adequação das previsões legais às mudanças da sociedade e às construções interpretativas da própria jurisprudência, assumindo que "Algum paralelo foi feito com o processo penal".[9] Nesse sentido, por que tratar a prescrição intercorrente como se estivéssemos no processo civil? A prescrição intercorrente deve ser encarada assim como o é no processo penal: como instituto de direito material e, portanto, com incidência retroativa quando a lei mais benéfica apresenta um prazo menor, ou melhor, institui esse regime prescricional.

É compreensível a resistência em aplicar a prescrição intercorrente retroativamente nas ações por improbidade. Mexe-se com a vaidade de operadores do direito em várias esferas e fulminam-se anos de trabalho. Acontece. É preciso conviver com isso. O Direito não é aquilo que queremos que ele seja, não é um mero instrumento de poder. Não obstante, entristece que uma instituição pública, encarregada das mais nobres funções do ordenamento jurídico, adote uma posição avessa ao que os próprios doutos falam do Direito. Não se é contrário à extirpação das leis inconstitucionais, evidentemente. Elas não merecem figurar no ordenamento. Mas é preciso que as leis sejam inconstitucionais. E o parâmetro não pode ser uma orientação interna corporis desconectada de grande parte da produção do meio acadêmico-profissional.


[1] BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. 5ª Câmara de Correção e Revisão. Nota Técnica nº 05/2021: Aplicação da Lei nº 8.429/1992, com as alterações da Lei nº 14.230/2021, 11 nov. 2021. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/NTOrientao12.2021.pdf. Acesso em: 23 mar. de 2022; BRASIL. Ministério Público Federal. 5ª Câmara de Correção e Revisão. Orientação nº 12/5ªCCR: Diretrizes iniciais sobre a Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, que alterou a Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa., 12 nov. 2021. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/PGR00413785.2021Orientao12.20215CCRLIA.pdf. Acesso em: 23 mar. de 2022.

[2] BRASIL. Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Aditamento nos autos nº 0077777-34.2015.8.19.0001, 2021, p. 6.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.874/DF, Relator Min. Luís Roberto Barroso, Relator para acórdão Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno. Brasília. Julgamento 09/05/2019, Publicação DJ-e-265 DIVULG 04-11-2020 PUBLIC 05-11-2020.

[4] BRASIL. Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Aditamento nos autos nº 0077777-34.2015.8.19.0001, 2021, p. 8.

[5] Op. Cit., p. 11

[6] Op. Cit., p. 13

[7] Tenho criticado aqui – e o fiz ainda recentemente (ADPF 144) – a “banalização dos ‘princípios’ [entre aspas] da proporcionalidade e da razoabilidade, em especial do primeiro, concebido como um ‘princípio’ superior, aplicável a todo e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciário a faculdade de 'corrigir' o legislador, invadindo a competência deste. O fato, no entanto, é que proporcionalidade e razoabilidade nem ao menos são princípios — porque não reproduzem as suas características —, porém postulados normativos, regras de interpretação/aplicação do direito". No caso de que ora cogitamos esse falso princípio estaria sendo vertido na máxima segundo a qual "não há direitos absolutos". E, tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional. Deveras, a cada direito que se alega o juiz responderá que esse direito existe, sim, mas não é absoluto, porquanto não se aplica ao caso. E assim se dá o esvaziamento do quanto construímos ao longo dos séculos para fazer, de súditos, cidadãos. Diante do inquisidor, não temos qualquer direito. Ou melhor, temos sim, vários, mas como nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhecível na oportunidade em que deveria acudir-nos.

[8] STRECK, Lenio Luiz. O ativismo judicial e a vitória de Pirro na decisão de Fux. Consultor Jurídico, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-27/streck-ativismo-judicial-vitoria-pirro-decisao-fux. Acesso em: 17 maio de 2020.

[9] BRASIL. Câmara dos Deputados. Justificativa do projeto de lei nº 2.505 de 2021. Altera a Lei n° 8.429, de 2 de junho de 1992, que dispõe sobre improbidade administrativa. Brasília: Câmara dos Deputados, 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0ap277f0v4omk9v4c4tcq07rt1983344.node0?codteor=1687121&filename=PL+2505/2021+%28N%C2%BA+Anterior:+pl+10887/2018%29. Acesso em: 17 maio de 2021.

Autores

  • é criminalista, pós-graduando em Direito Criminal Contemporâneo pela FGV-Rio. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Membro do Grupo de Estudos Avançados de Direito Penal Econômico do IBCCrim em Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Subseção da OAB-RJ da Barra da Tijuca.

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