Opinião

Prescrição intercorrente em improbidade: por que tanta resistência? (parte 1)

Autor

  • Rafael Ferreira de Albuquerque Costa

    é advogado especialista em Direito Criminal pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ) associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e coordenador da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional Rio de Janeiro.

23 de maio de 2022, 6h04

Foi publicada em 26/10/2021 a Lei nº 14.230, a qual promove substanciais alterações na Lei nº 8.429/92, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA). Dentre as incontáveis alterações, afetou-se o regime de prescrição sobre os atos de improbidade. O regramento da prescrição a partir da nova redação do artigo 23 foi integralmente modificado. O prazo prescricional passa a ser único, de 8 (oito) anos contados da data do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência. Essa lógica aproximou bastante a dinâmica prescricional da Improbidade Administrativa da dinâmica prescricional na seara Penal. Não obstante, o §4º do artigo 23 dispõe sobre causas interruptivas da prescrição, o que é inovador no regramento da prescrição no âmbito da Improbidade Administrativa, uma vez que, inexistindo norma nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça rechaçava a possibilidade de reconhecimento da prescrição uma vez já proposta a ação. O §5º do artigo 23, em sequência, estipula que o prazo a ser contado a partir da data da interrupção é reduzido pela metade, ocasionando um prazo de prescrição intercorrente de quatro anos.

As novas normas vem causando bastante celeuma no universo jurídico, em especial quanto ao prazo da prescrição intercorrente, eis que, segundo alguns, é demasiado exíguo, a tornar praticamente inviável a persecução de agentes que praticaram atos de improbidade administrativa dado que a duração média de uma ação de improbidade em primeira instância é de quatro anos e três meses[1], bem como que a aplicação retroativa desse novo instituto prescricional colocaria em cheque anos de trabalho dos agentes legitimados a propor ações civis públicas por atos de improbidade administrativa. A relevância do tema é tamanha, tanto do ponto de vista dogmático-jurisprudencial quanto prático, resultando na afetação pelo Ministro Alexandre de Moraes do Agravo em Recurso Extraordinário nº 843.989 como representativo da controvérsia sobre a (ir)retroatividade das disposições da Lei nº 14.230/21, sob o tema de repercussão geral nº 1.199, já reconhecida pelo Plenário, estando pendente de julgamento seu mérito.

Independentemente das objeções meta-jurídicas, far-se-á neste texto um apanhado dos argumentos prós e contra a aplicação retroativa da prescrição intercorrente, realizando, ao final, uma análise crítica sobre a incidência do instituto a fatos anteriores à vigência da Lei nº 14.230/21.

Arguentos favoráveis
A polêmica sobre a questão do direito intertemporal inicia-se com a extinção de figuras ímprobas e a instituição de outros regimes de prescrição, os quais impõe um regramento mais benéfico ao réu. Sobre o ponto, Neves e Oliveira[2] expõe que, por exemplo, "seria possível a aplicação retroativa da atual redação do artigo 10 da LIA, dada pela Lei 14.230/2021, para alcançar os fatos pretéritos, com a descaracterização dos atos de improbidade praticados na forma culposa". O posicionamento dos sobreditos autores calca-se na incidência da garantia constitucional da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpida no artigo 5º, XL da Constituição da República, a qual teria plena incidência no âmbito do Direito Administrativo Sancionador.

De acordo com Voronoff [3], o Direito Administrativo Sancionador, braço do Direito Público Sancionador ao lado do Direito Penal, apresentaria proeminentemente um viés preventivo-dissuasório, isto é, a sanção estatal assume papel inibitório por meio da imposição de custos e incentivos econômicos a fim de que as benesses econômicas decorrentes do cometimento da infração se tornem menos atrativas do que o impacto financeiro de eventual responsabilização.

O entendimento doutrinário que milita em favor do espelhamento das garantias constitucionais penais no seio do Direito Administrativo Sancionador passa a adquirir ainda mais notoriedade a partir do reconhecimento de sua incidência pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Em ambas as Turmas competentes para julgamento de matérias de Direito Público, no RMS nº 37.031/SP[4] e no REsp nº 1.153.083/MT[5], decidiu-se que a retroatividade de lei mais benigna é princípio geral do Direito Sancionador, aplicável induvidosamente às Ações de Improbidade Administrativa.

A razão para essa simetria dar-se-ia, consoante o voto exarado pelo Ministro Teori Zavascki, no julgamento do REsp 885.836/MG[6], pois: o objeto próprio da ação de improbidade é a aplicação de penalidades ao infrator, penalidades essas substancialmente semelhantes às das infrações penais. Ora, todos os sistemas punitivos estão sujeitos a princípios constitucionais semelhantes, e isso tem reflexos diretos no regime processual. É evidente, assim — a exemplo do que ocorre, no plano material, entre a Lei de Improbidade e o direito penal —, a atração, pela ação de improbidade, de princípios típicos do processo penal

Em resumo, a aproximação dos fins e da dinâmica tanto do Direito Administrativo Sancionador quanto do Direito Penal justificariam a aplicação das garantias próprias deste àquele. Afinal, situações fáticas semelhantes merecem solução jurídica análoga.

Parece importante sublinhar que, independente da igualdade de tratamento que se pretenda conferir a ambos os ramos do Direito Público Sancionador no bojo do direito interno, o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, internalizada por meio do Decreto nº 678/92, que dispõe em seu artigo 9º sobre a legalidade e a retroatividade e não ressalva a incidência dessa garantia ao âmbito do Direito Penal. O mesmo ocorre com o Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos, internalizado pelo Decreto nº 592/92, em seu artigo 15, 1[7].

Dado que a Convenção possui status supralegal, segundo entendimento firmado no julgamento do RE nº 466.343/SP[8] (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2009), bem como não se encontra em conflito com nenhum dispositivo constitucional, a Lei nº 14.230/21 seria válida do ponto de vista do controle de constitucionalidade e de convencionalidade. Descaberia até mesmo a arguição de inconstitucionalidade da lei mais benéfica no âmbito do Direito Administrativo Sancionador em função do artigo 5º, § 2º da Constituição da República, que encarta cláusula aberta em que os direitos e garantias previstos na Constituição não excluiriam outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos Tratados e Convenções de que o Brasil seja signatário.

Tão sedimentada doutrinária e jurisprudencialmente é a aplicação das garantias penais e processuais penais no bojo do Direito Administrativo Sancionador que, conforme expõem Mudrovitsch & Nóbrega [9], existem amostras da aplicação do citado princípio nos diversos segmentos do Direito Administrativo sancionador militam em favor de sua assimilação por esse ramo como um todo. A esse respeito, vale mencionar: 1) o artigo 106 do Código Tributário Nacional e o Parecer nº 11.315/2020/ME PGFN, na seara tributária; 2) o Processo Administrativo Sancionador nº 12/03, junto à Comissão de Valores Mobiliários; 3) o Parecer 0427/2012/PHE-Aneel-PGF/AGU, junto à Agência Nacional de Energia Elétrica; 4) o acórdão no Processo Administrativo 08012.001183/2009-08, junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica; e 5) o Acórdão nº 1.036/2019, proferido pelo Tribunal de Contas da União.

Não obstante, parece ser o caminho enveredado por diversos ordenamentos jurídicos europeus, tais quais os de Portugal[10], de Espanha[11] e da Alemanha[12].

Há corrente, entretanto, que defende a retroatividade das normas mais benéficas no âmbito do Direito Administrativo Sancionador, ressalvando a impossibilidade de equiparação desse ramo do Direito ao Direito Penal.[13]

A ilustração dessa corrente é relevante, uma vez que foi utilizada da decisão que afetou o ARE nº 843.989 como doutrinária refratária à aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21, quando, na realidade, o próprio autor teve a ocasião de manifestar-se favoravelmente à retroação do diploma normativo que reformou a Lei de Improbidade Administrativa em parecer, endossando que se tata, pois, de lei posterior mais benéfica, o que implica em sua retroatividade, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, pois as garantias penais, por simetria, se aplicam ao direito administrativo sancionador, conforme nossa doutrina preconiza desde longa data quanto às ações de improbidade e consoante jurisprudência remansosa dos Tribunais Superiores pátrios.[14]

E que a razão para a retroatividade da lei mais benéfica decorreria não apenas do reconhecimento da unidade do poder de punir estatal, o que por si ensejaria a transposição de garantias penais ao Direito Administrativo Sancionador, mas sobretudo pelo respeito ao devido processo legal e pela possibilidade de aplicação de sanções cível-administrativas pelo Poder Judiciário.[15]

Com efeito, parece que a jurisprudência, tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto do Supremo Tribunal Federal[16], e a literatura especializada vêm convergindo no sentido de transpor garantias penais ao Direito Administrativo Sancionador, o que sugere no mérito do ARE nº 843.989 o seguimento da remansosa jurisprudência.

A segunda parte servirá para expor os argumentos contrários à retroatividade da Lei nº 14.230/21, bem como o comentário crítico-reflexivo deste autor.

Continua parte 2.


[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. — Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 201, p. 19; MARTINS, Tiago do Carmo. A prescrição na nova lei de improbidade administrativa. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-03/martins-prescricao-lei-improbidade-administrativa. Acesso em 12 mar. de 2022.

[2] NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à reforma da lei de improbidade administrativa: Lei 14.230, de 25.10.2021 comentada artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 7.

[3] VORONOFF, Alice. Direito administrativo sancionador no Brasil: justificação, interpretação e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 81 a 95.

[4] (RMS 37.031/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/02/2018, DJe 20/02/2018)

[5] (REsp 1153083/MT, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/11/2014, DJe 19/11/2014)

[6] (REsp 885.836/MG, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 26/06/2007, DJ 02/08/2007, p. 398)

[7] ARTIGO 15 1. Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que não constituam delito de acordo com o direito nacional ou internacional, no momento em que foram cometidos. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinqüente deverá dela beneficiar-se.

[8] (RE 466343, Relator(a): CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-104  DIVULG 04-06-2009  PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06  PP-01106 RTJ VOL-00210-02 PP-00745 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p. 29-165)

[9] MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt; NÓBREGA, Guilherme Puppe da. O Tema 1.199 de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. Consultor Jurídico, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-fev-25/improbidade-debate-tema-1199-repercussao-geral-supremo-tribunal-federal.  Acesso em 12 mar. de 2022

[10] Decreto-Lei 433/82, do qual se extrai que "se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada".

[11] Ley 40/2015 constando que "las disposiciones sancionadoras producirán efecto retroactivo en cuanto favorezcan al presunto infractor o al infractor, tanto en lo referido a la tipificación de la infracción como a la sanción y a sus plazos de prescripción, incluso respecto de las sanciones pendientes de cumplimiento al entrar en vigor la nueva disposición".

[12] Naquele que é o marco regulatório do Direito das Contra-ordenações (Gesetz über Ordnungswidrigkeiten), há previsão expressa de que "se a lei vigente ao tempo da conclusão da conduta for alterada antes da decisão, deverá ser aplicada a lei mais favorável".

[13] OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: RT, 2006, p. 337-338.

[14] OSÓRIO, Fábio Medina. Parecer sobre a aplicação retroativa da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, segundo os princípios do Direito Administrativo Sancionador. Parecer normativo facultativo, 29 out. de 2021. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Comissão de Direito Administrativo Sancionador. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/11/C1A0B519BC5D7E_RetroatividadedanovaLeideImpro.pdf. Acesso em: 19 mar. de 2022, p. 9.

[15] [15] OSÓRIO, Fábio Medina. Parecer sobre a aplicação retroativa da Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, segundo os princípios do Direito Administrativo Sancionador. Parecer normativo facultativo, 29 out. de 2021. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Comissão de Direito Administrativo Sancionador. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2021/11/C1A0B519BC5D7E_RetroatividadedanovaLeideImpro.pdf. Acesso em: 19 mar. de 2022, p. 10 e 12.

[16] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 41.557/SP, Relator Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma. Brasília. Julgamento 15/12/2020, Publicação DJe-045 DIVULG 09-03-2021 PUBLIC 10-03-2021.

Autores

  • é criminalista, pós-graduando em Direito Criminal Contemporâneo pela FGV-Rio. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Membro do Grupo de Estudos Avançados de Direito Penal Econômico do IBCCrim em Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa A Sociedade Civil e o Estado de Direito: Mutações e Desenvolvimento. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Subseção da OAB-RJ da Barra da Tijuca.

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