Paradoxo da Corte

A Resolução CVM nº 80/22 e a publicidade do processo arbitral

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

24 de maio de 2022, 8h03

Dúvida não há de que a publicidade das demandas constitui uma garantia para o procedimento legal e imparcial dos tribunais, que se sobrepõe à vontade dos litigantes, devido à influência disciplinadora propiciada pela possibilidade que concede ao jurisdicionado de vigiar os atos e termos do processo. Ao mesmo tempo, a publicidade desvela a vertente pedagógica da Justiça. No mundo, a publicidade é a mais adequada técnica para uma boa justiça e um dos melhores meios de informação para a sociedade e para o desempenho da economia (Joan Picó i Junoy, "Las Garantías Constitucionales del Proceso", Barcelona, Bosch, 1997, página 116 ss).

Spacca
Legenda

Na mesma linha, Eduardo Couture, ao conceber a publicidade e transparência dos atos processuais como a própria essência do modelo democrático de tutela jurisdicional, assevera que representa ela um elemento necessário "para a aproximação da Justiça aos cidadãos" ("Fundamentos del Derecho Procesal Civil", 3ª ed., Buenos Aires, Depalma, 1966, página 87).

Atualmente, tem sido muito discutida a extensão da publicidade no âmbito do processo arbitral, regido, em regra, pelo princípio da confidencialidade, e, portanto, em regime de publicidade restrita.

A esse respeito, como já frisei em precedente artigo, as Varas Empresariais e de Conflitos Relacionados à Arbitragem da Comarca de São Paulo, de um modo geral, têm afastado a exceção constante do artigo 189, inciso IV, do Código de Processo Civil, em relação ao processo das ações anulatórias de sentença arbitral, por entendê-la incompatível com o texto constitucional.

A rigor, inconstitucionalidade não existe, mas, sim, uma antinomia com o princípio da ampla publicidade, sempre que o interesse público sobrepujar o interesse particular das partes.

Tanto é assim que a Comissão de Valores Mobiliários realizou audiência pública (SDM nº 01/21), visando a alterar a Instrução Normativa CVM nº 480, para estabelecer o dever de informação de demandas judiciais e arbitrais, em prol da proteção dos acionistas minoritários no mercado de valores mobiliários.

E, assim, diante da profícua cooperação de inúmeros especialistas, depois de intenso debate, foi baixada, em 29 de março de 2022, a Resolução CVM nº 80/22, que, dentre outras finalidades, determinou, às companhias abertas, "a comunicação sobre demandas societárias, nos termos e prazos estabelecidos no Anexo I".

Dispõe esse aludido Anexo I:

"Artigo 1º — Este anexo se aplica às demandas societárias em que o emissor, seus acionistas ou seus administradores figurem como partes, nessa qualidade, e:
I – que envolvam direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; ou
II – nas quais possa ser proferida decisão cujos efeitos atinjam a esfera jurídica da companhia ou de outros titulares de valores mobiliários de emissão do emissor que não sejam partes do processo, tais como ação de anulação de deliberação social, ação de responsabilidade de administrador e ação de responsabilidade de acionista controlador.
§ 1º. Para fins deste anexo, considera-se demanda societária todo processo judicial ou arbitral cujos pedidos estejam, no todo ou em parte, baseados em legislação societária ou do mercado de valores mobiliários, ou nas normas editadas pela CVM.
§ 2º. Obrigações decorrentes de convenções de arbitragem, de regulamentos de órgãos arbitrais institucionais ou entidades especializadas ou de qualquer outra convenção não eximem o emissor do cumprimento das obrigações de divulgação previstas neste anexo, respeitadas as hipóteses e observados os limites de sigilo decorrente de lei.
§ 3º. Na hipótese de uma informação acerca da existência de demanda ou de algum de seus desdobramentos configurar ato ou fato relevante, nos termos estabelecidos em norma específica, o emissor deverá também observar os termos e prazos estabelecidos naquele normativo.
§ 4º. Na hipótese do § 3º, é facultado ao emissor divulgar apenas o aviso de fato relevante, desde que contenha todas as informações exigidas por este anexo e esclareça que a divulgação se dá em atendimento tanto à presente norma como à norma específica sobre divulgação de informações sobre ato ou fato relevante.
Artigo 2º —  O emissor deve divulgar ao mercado as principais informações relativas à demanda, incluindo:
I – notícia acerca da sua instauração, no prazo de 7 (sete) dias úteis a contar, conforme figure a parte na condição de demandante ou demandado, da data de propositura da ação ou da citação ou, em caso de arbitragem, da apresentação do requerimento de sua instauração ou do seu recebimento, indicando:
a) partes no processo;
b) valores, bens ou direitos envolvidos;
c) principais fatos;
d) pedido ou provimento pleiteado;
II – no caso de processo judicial, decisões sobre pedidos de tutelas de urgência e evidência, decisões sobre jurisdição e competência, decisões sobre inclusão ou exclusão de partes e julgamentos de mérito ou extintivos do processo sem julgamento de mérito, em qualquer instância, no prazo de 7 (sete) dias úteis a contar de seu conhecimento pela parte;
III – no caso de arbitragem, apresentação de resposta, celebração de termo de arbitragem ou documento equivalente que represente estabilização da demanda, decisões sobre medidas cautelares ou de urgência, decisões sobre jurisdição dos árbitros, decisões sobre inclusão ou exclusão de partes e sentenças arbitrais, parciais ou finais, no prazo de 7 (sete) dias úteis a contar de seu conhecimento pela parte; e
IV – qualquer acordo celebrado no curso da demanda, no prazo de 7 (sete) dias úteis da apresentação de sua celebração, indicando valores, partes e outros aspectos que possam ser do interesse da coletividade dos acionistas.
Parágrafo único. Na apresentação das informações de que trata este artigo, não é necessária a disponibilização do inteiro teor dos documentos a que se refiram".

A comunicação das respectivas informações, acima especificada, torna-se obrigatória apenas para as demandas societárias que forem ajuizadas após a entrada em vigor da Resolução CVM nº 80/22, ou seja, a partir de 2 de maio p. passado.

Verifica-se facilmente que a confidencialidade, característica marcante do processo arbitral, deixa de existir em tais situações.

Ademais, como tais regras não têm o condão de revogar o artigo 189 do Código de Processo Civil, entendo que continua ele a vigorar integralmente, sendo que a segunda parte do caput desse dispositivo continuará incidindo em hipóteses excepcionais, podendo o juiz ou o tribunal arbitral deferir, de forma justificada, a publicidade restrita sobre determinados documentos protegidos pelo direito constitucional à intimidade ou que contenham, por exemplo, segredo industrial de patente.

Anoto, por fim, que o princípio da publicidade é de ordem pública e, por esta razão, não é passível de negócio jurídico processual celebrado entre as partes (artigo 190 do Código de Processo Civil), seja na esfera judicial, seja na arbitral, devendo ser considerado totalmente ineficaz.

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