Opinião

Relações tributárias continuativas e coisa julgada em processo intersubjetivo

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23 de maio de 2022, 6h40

Consoante a doutrina budista, a impermanência [1]  termo que reflete as constantes transformações em todas as coisas, seres, energias e vínculos  é elemento nuclear na descrição da relação de um sujeito consigo mesmo e com tudo e todos que o rodeiam.

Segundo esse conceito, tudo muda o tempo todo, inclusive nós mesmos, não sendo nada efetivamente permanente e imutável.

Contudo, um sistema jurídico se faz com o objetivo de garantir estabilidade as relações apesar da impermanência intrínseca à vida. Exatamente por isso, todos os sistemas jurídicos modernos visam a estabelecer marcos e padrões de modo a deixar claro a todos que naquele ambiente praticam atos, qual será a regra aplicável e os limites temporais dela.

Por isso, o Direito, ao assumir como valores fundamentais os deveres de motivação e de respeito à isonomia, confere-nos uma resposta (ao menos abstratamente) satisfatória, que pode ser sintetizada em uma expressão latina: rebus sic stantibus estando assim as coisas, assim lhes daremos tratamento. Enquanto esses forem os fatos, esse será o Direito aplicável, e, por isso, a decisão administrativa ou judicial emanada a partir desses elementos deve continuar a ser observada.

O começo dessa construção parte de uma ideia mais próxima da Jurisdição declaratória de Chiovenda (o juiz apenas diz o Direito preexistente), mas mostraremos o quanto ela também se retroalimenta na doutrina de Carnelutti, para a qual a Jurisdição é constitutiva (o juiz cria o Direito) [2].

Hoje não existem mais sistemas puros, sendo necessário avaliar nos sistemas mistos existentes a prevalência de regras mais próximas a um ou outro. Quanto maior a proximidade de um sistema jurisdicional com o polo clássico da Common Law e da normatização valorativa e principiológica, mais amplo é o espaço de ativismo Judiciário, e mais a Jurisdição se aproxima do conceito de Francesco Carnelutti, como criadora dos direitos; quanto maior a proximidade com o polo da Civil Law, mais perto a Jurisdição estará da visão de Giuseppe Chiovenda, para o qual se trata apenas de declarar (e não criar) um direito preexistente ao caso concreto.

Os atuais Código de Processo Civil e Constituição da República Federativa do Brasil apontam para o exercício da função jurisdicional em um sistema misto, que transita ordinariamente entre o Civil e o Common Law; há momentos e situações em que o Judiciário apenas declara o direito, enquanto há aqueles nos quais efetivamente o compõe.

A jurisdição constitucional traz os controles concentrados, os julgados em repercussão geral e a possibilidade de edição de súmulas vinculantes. Todos esses mecanismos têm por fim vincular a interpretação que o guardião da Carta Constitucional  Supremo Tribunal Federal  deu a um determinado dispositivo: verifica-se aqui claramente a possibilidade do exercício de uma função criadora de normas.

Mas pela sistemática de precedentes instaurada pelo Código de Processo Civil de 2015, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar algum tema em repetitivo, também vincula o Poder Judiciário, e pode criar normas, sendo extensível essa possibilidade aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais por meio do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR).

Exatamente por isso, hoje a jurisprudência é considerada fonte de direito no Brasil, pois ela fixa normas de conduta, que vinculam e geram consequências a quem as descumprir.

Em um contexto Republicano e Democrático, com vistas a superar a chamada dificuldade contramajoritária  pois os membros do Judiciário não são eleitos pelo povo  a sistemática de formação de precedentes pelo Poder Judiciário deve permitir ao máximo a participação da sociedade, até para que o precedente fixado consiga absorver os diversos vieses que determinados temas trazem. Exatamente por isso, figuras como a do amicus curiae ganham grande relevância, bem como o fenômeno da advocacia de rede, não é à toa que o próprio CPC prevê isso no artigo 927, § 2º.

Então, partindo do pressuposto de que as normas do sistema podem ter fontes diversas  judiciais ou legislativas , precisamos focar na forma de aplicação dessas normas, bem como em seus limites temporais.

Quando aplicamos uma norma a um fato que tem começo, meio e fim, no qual não se vislumbram efeitos continuados no tempo, a situação é menos complexa: a lei do tempo rege o ato; a decisão judicial transitada em julgado, ao tratar daquela situação, aplicou o direito ao caso concreto e pacificou a questão. Não havendo nenhum vício que permita o ajuizamento de uma ação rescisória ou de querela nullitatis, a questão se encontra resolvida e imutável.

Mas não podemos aplicar a mesma lógica para as relações de trato sucessivo, dentre as quais se inserem as relações tributárias.

Em apertadíssimo resumo: nascido sempre da lei, o vínculo tributário estabelece a sujeição ativa do Fisco, a sujeição passiva do contribuinte e tem como objetos as prestações tributárias principal e instrumentais [3].

Quando um contribuinte se insurge contra uma determinada cobrança e obtém uma decisão judicial que transita em julgado no sentido de que não existe relação jurídica tributária entre ele e o ente por ser a lei inconstitucional, por exemplo, qual será a amplitude dessa decisão? Ela representa uma carta em branco ao contribuinte para nunca mais recolher aquele tributo? Mesmo que, por exemplo, tenha o STF alterado seu entendimento sobre o tema e passado a entender, em controle concentrado ou difuso com repercussão geral, que aquela norma é constitucional?

Ora, se a relação tributária é de trato sucessivo e o Poder Judiciário reconheceu a um contribuinte em decisão definitiva que ele não deve recolher esse tributo, essa decisão vale para o tributo não recolhido no passado e será aplicável ao presente e futuro enquanto mantidas as premissas fáticas e jurídicas que suportaram a decisão definitiva.

Desse modo, se houve uma alteração de entendimento pelo STF, por exemplo, no sentido de entender que a norma é constitucional, tem-se uma alteração do contexto jurídico que suportou a decisão transitada em julgado, não sendo possível continuar a sua aplicação para o futuro, se essa alteração jurídica se deu de modo definitivo e vinculante (em repercussão geral ou controle concentrado).

Até porque imaginar o contrário, isto é, que a coisa julgada possa afetar o futuro mesmo que mudem as premissas fáticas ou jurídicas que a suportaram, não significa proteger a coisa julgada, mas usar mal um instituto para gerar situações de desigualdade absurdas. E a superação, se realizada com adequação, não viola a segurança jurídica, pois não afeta o passado, que foi pacificado, mas sim olha para o futuro.

É fundamental, nesse passo, fixar marcos para que o novo entendimento passe a ser aplicado, pois a segurança na impermanência só pode ser alcançada se houver critérios objetivos, isonômicos e suficientemente claros, os quais precisam ser veiculados pelo Poder Judiciário ao se estabelecerem precedentes novos ou alterarem antigos.

E temos uma importante oportunidade de fixar esses marcos, pois o STF está analisando os limites da coisa julgada em matéria tributária [4] (viabilidade e a forma de se romper a eficácia da coisa julgada material em um processo que trata de relação tributária continuada quando o STF firma jurisprudência de modo contrário ao decidido naquele processo), nos Recursos Extraordinários nº 949.297/CE [5] e 955.227/BA [6] (Temas 881 [7] e 885 [8] da repercussão geral).

Os ministros Edson Fachin e Roberto Barroso, relatores dos recursos em análise, apresentaram seus votos, que foram complementares. Abaixo, listamos pontos importantes de convergência entre eles:

 As decisões do STF, quando em controle concentrado/abstrato, cessam os efeitos da coisa julgada material anteriormente firmada nos demais processos;

— A rescisão é automática, não sendo necessário que a União ajuíze ação revisional ou rescisória;

 É de se modular o pronunciamento, em nome da segurança jurídica, permitindo sua aplicação (superação da coisa julgada anterior e restabelecimento da cobrança) apenas a partir da publicação da ata de julgamento do acórdão; e

 Devem ser observadas as regras constitucionais da irretroatividade e, quando aplicável, da anterioridade.

O ministro Barroso considera que os pronunciamentos do STF em controle incidental/difuso, desde que proferidos na sistemática da repercussão geral, têm o mesmo efeito automático de superação da coisa julgada.

A ministra Rosa Weber acompanhou os votos dos ministros Fachin e Barroso.

Em seguida, o ministro Gilmar apresentou divergência, que se pautou nos seguintes aspectos:

 Os efeitos pretéritos ou pendentes de atos passados podem ser atingidos por ação rescisória ou alegação de inexigibilidade do título executivo judicial quando a coisa julgada contrariar exegese conferida pelo Plenário do STF;

 Quanto aos efeitos futuros de atos passados, bem como os atos futuros, entende cessada a ultratividade do título judicial fundado em "aplicação ou interpretação tida como incompatível com a Constituição" quando o pronunciamento jurisdicional for contrário ao decidido pelo Plenário do STF, no controle difuso ou concentrado, independente de ação rescisória ou qualquer outra ação.

Esses foram os votos proferidos até agora. O julgamento termina na sexta-feira, dia 13/05, e, como se observa, o cenário ainda está nebuloso, apesar de, no momento, a maioria pender para o entendimento que consideramos ser o mais adequado ao tratamento da questão.

Não temamos a impermanência em si. Eduquemo-nos e preparemo-nos para reconhecer, abraçar e estimular a "boa impermanência" no exercício da atividade jurisdicional, aqui sugerida como toda aquela que nos permite fomentar essa instável jornada adiante rumo ao aperfeiçoamento dos direitos fundamentais de todos com as responsabilidades deles decorrentes: vida, liberdade, isonomia, livre iniciativa, provimento do básico e busca da felicidade.

Quando a impermanência, todavia, se mostrar um argumento artificial e for chamada em socorro apenas da arbitrariedade ou do desejo de ocasião, para encobrir interesses escusos ou a desídia orçamentária, armemo-nos dos melhores instrumentos jurídicos para identificá-la e combatê-la.

Em seu "Estudo Tributário em Verde-Amarelo" [9], nosso amigo tributarista Fabio Silva Alves demonstra, de modo lúdico e com precisão cirúrgica, parte das dificuldades que permeiam o sistema tributário brasileiro.

Uma das barreiras a superar, parece-nos, é a de ao menos garantir que as impermanências, mais ou menos atrativas a qualquer das partes, apliquem-se de modo mais isonômico e transparente a todos os destinatários do "novo Direito", sejam eles quem forem.


[2] CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo, 19ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 133.

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