Opinião

Da CF/88 ao Convênio ICMS16/22: entre obscuridades e esperanças na tributação

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1 de maio de 2022, 15h24

Orlock Xoumes da Silva é amigo de longa data da minha família. De origem inglesa, escolheu o Brasil para viver, aqui estando há mais de 30 anos, desde a promulgação da Constituição da República de 1988. Filho de pai brasileiro que havia feito o caminho inverso décadas antes — fugindo da ditadura militar —, crescera ouvindo histórias da vida na metrópole tropical, encravada entre o mar e a montanha. Dono de mente curiosa e observadora, desde criança alimentara a expectativa de explorar a terra paterna, vivenciando a realidade da cultura lhe cantada "linda e cheia de graça". Jovem adulto, aproveitara a dupla cidadania, o conhecimento da língua portuguesa e a formação como advogado especializado em impostos para concretizar a ambição, imaginando ter a contribuir na concretização dos ideais progressistas da recém-aprovada Carta Cidadã, com seu um terço de matéria tributária.

Assim, desembarcou no Rio de Janeiro. Embora tenha de fato se encantado pelas belezas da cidade e pela simpatia do seu povo, logo de cara desistiu da vida jurídica. Pragmático e incrédulo quanto à existência de heróis — "E se houver, não sou eu" —, percebeu de imediato que o sistema brasileiro e sua forma de pensá-lo, interpretá-lo e implementá-lo era muito diferente do milenar e empírico modelo do common law anglo-saxão. Dessa forma, convenceu-se de que lhe faltaria bagagem cultural para exercer com excelência a advocacia, optando então por investir suas economias na compra de um posto de combustíveis na zona sul carioca, bem próximo à sede do governo fluminense.

Como óbvia e esperada consequência de suas escolhas, em pouco tempo duas premissas ficaram ainda mais claras ao jovem Xoumes. Primeira, de que, com trabalho duro, seu negócio poderia sim prosperar. E isso, graças à abertura do mercado automobilístico e à interessantíssima variedade de combustíveis produzidos e comercializados no país, em especial o pulsante etanol. Segunda, de que seu britânico conhecimento em tributos era quase pueril mesmo que somente para a gestão contábil e fiscal do seu pequeno empreendimento. Siglas como "PIS", "Cofins", "ICMS" e a posterior "Cide" só não eram mais desafiadoras do que a forma de visualizar, com precisão, qual a carga tributária de cada um dos produtos que comprava e vendia. Nesse ponto, mesmo seu talento de semidetetive encontrara um "adversário" à altura.

"Como amigos são pessoas com as quais você deseja dividir as coisas, logo busquei conhecer o melhor contador e advogado tributarista da cidade. Foi aí, caro Alves, que conheci seu pai", Orlock sempre me repetia com orgulho. "Precisava me concentrar na parte do trabalho que eu poderia dar resultado. Entender a tributação do Brasil não seria uma delas."

Aliás, essa conclusão não era gratuita. A endêmica e contraditória "clara obscuridade" tributária brasileira desde sempre intrigara Xoumes. Na verdade, não apenas a obscuridade em si, mas, sobretudo, a passividade nacional em relação a ela. Criado sob a enraizada cultura do taxpayer — cidadão "pagador de impostos" que colabora financeiramente com o Estado para a construção do bem comum, exigindo desse a devida contrapartida —, lhe era quase ofensivo não ter convicção de quanto "one pint" de sua sagrada cerveja seria revertido para tapar as crateras da rua onde morava. Ou para pagar professores e manter a escola do filho da frentista do seu posto. Ou para comprar remédios e equipamentos para o hospital onde o porteiro do seu prédio esperara nove horas por atendimento.

"É elementar, meu caro Alves", me dizia Orlock. "'Cálculos por dentro', 'diferenciais de alíquota', 'repartições entre origem e destino', 'fundos diversos', 'imunidades interestaduais', 'complementos e restituições' são todas formas de esconder a realidade da carga tributária. Se a lei diz que a alíquota de ICMS da gasolina é de 25%, pode acrescentar, pelo menos, mais um terço aí."

De fato, essas "artimanhas" tupiniquins nunca passaram despercebidas aos olhos críticos de Xoumes. Calejado pelas três décadas no posto, sentia "na pele" como a obscuridade tributária era nociva ao seu negócio e aos seus clientes. Toda vez que, por exemplo, um fundo (constitucional ou não) qualquer era criado — o último fora o sugestivo "Fundo Orçamentário Temporário", ou apenas "FOT", — o custo de seus produtos era majorado sem reflexo direto nas alíquotas divulgadas ao público. Resultado? Preço mais alto e papel de vilão perante os consumidores, ainda que sua margem fosse, mais uma vez, estrangulada.

"O brasileiro vê, mas não observa. E quem não observa, não cobra", insistia ao se referir a criativos "jeitinhos" como esse, encontrados, ironicamente, pelos representantes do povo para elevar a arrecadação sem o necessário desgaste político do visível aumento de alíquotas.

Aliás, ainda nesse tortuoso caminho das sombras tributárias, Xoumes costumava lembrar também do "pacto mental diabólico" que fizera em 2002, com a tal "definitividade da substituição tributária", então declarada pelo Supremo Tribunal Federal (ADI nº 1851/AL). À ocasião, a corte decidira que a base de cálculo presumida — no caso dos produtos por ele comercializados, aquela estimada pelo produtor ou pelo importador de combustíveis na venda aos distribuidores — seria "definitiva" quando da efetiva venda ao consumidor final (preço praticado na bomba). Mas isso, desde que regularmente ocorrido o fato gerador do ICMS. Com essa "marretada", eventuais diferenças entre presunção e realidade não gerariam complemento de imposto aos Estados, nem restituição aos contribuintes.

"Obviamente, meu caro Alves, em 99% das vezes a presunção superava a realidade, enriquecendo 'com causa' os cofres da Fazenda. Porém, ao menos era previsível e estável", comentava nosso amigo em quase constrangido sussurro, entre uma forte e amarga cerveja inglesa e outra.

Acontece que, até mesmo esse "direito" à previsibilidade lhe foi tirado. Quatorze anos depois, no julgamento do RE nº 593.849/MG, o mesmo Tribunal que decidira pela definitividade mudava (mais uma vez) por completo de posição em questões tributárias. Com o passar dessa quase década e meia, a suprema reflexão foi agora de que os Estados já estariam tecnologicamente preparados para restituir, com precisão e celeridade, as diferenças entre ICMS presumido e real.

"Eu, que vim do outro lado do Atlântico, já sei há tempos que 'restituição' e 'Estado', no Brasil, se misturam menos do que Fla e Flu. Por mais que o mundo esteja cheio de coisas óbvias que ninguém observa, difícil acreditar que esse elefante tenha passado sorrateiro por 11 vividos e escolados pares de olhos."

Como os pequenos detalhes são sempre os mais importantes, nessa selva tributária não havia nada de ruim que não pudesse piorar. Assim, o golpe de misericórdia foi dado nas entrelinhas da mesma suprema conclusão do RE nº 593.849/MG: sob a batuta da estrofe do "vento que venta lá, venta cá", vossas excelências já anteciparam à ocasião que, embora aquela discussão específica fosse sobre restituição do ICMS, na situação oposta de "presunção menor que a realidade" caberia complemento do imposto por parte dos contribuintes aos Estados. Tudo em respeito à isonomia (?!) entre Fisco e contribuintes.

"Isonomia…", murmurava…

Alguns anos depois, tão previsível quanto as ressacas constantes de meu cervejeiro amigo, o resultado das fictícias decisões se impões "na realidade": para restituir os contribuintes, empecilhos infinitos por parte dos Estados; para exigir o complemento, mera guia exigida "na cabeça", quando do recolhimento ordinário do imposto.

"A tributação no Brasil é infinitamente mais estranha do que tudo que a mente humana seria capaz de imaginar", filosofava Orlock entre um bar e outro da sua querida rua Farani, bem em frente ao (cada vez mais desafiador) posto. "O tributo faz-de-conta, que deveria me ser restituído, vira custo. E quem suporta somos meus clientes, pagando mais caro pelo combustível, e eu, vendo meu negócio minguar."

Fosse como fosse, Orlock era trabalhador convicto e inimigo de vitimismos. Nada mais lógico, portanto, que a sua aversão a esperanças, em especial as falsas. Por isso, promessas de mais racionalidade, previsibilidade e, sobretudo, transparência ao Sistema lhe pareciam tão ilusórias quanto o fato óbvio de que, no fim, nada mudaria. E que ele retornaria, de dia, à obscuridade tributária de seu posto e, de noite, ao bar.

No entanto, entre 2019 e 2022 quase se deixou contaminar pela ilusão que tanto combatera. Como se tivesse estendido sua usual embriaguez boêmia à sobriedade que vida de empreendedor lhe demandava na extenuante rotina, por um breve instante teve a impressão de acreditar que a mítica Reforma — ainda que apenas a do mercado de combustíveis — seria, enfim, concretizada.

Durante a reclusão pandêmica, todo um clima de esperança foi criado: debates sobre as principais propostas de Emenda à Constituição (PECs 45/19 e 110/19) preencheram diversas lives, webinars, canais de TV por assinatura e páginas de YouTube, quase merecendo série à parte nas mais famosas plataformas de streaming. No fim, entretanto, "fato óbvio" mantido: nenhuma das "grandes" reformas da tributação do consumo foi aprovada (agora é aguardar pelas próximas temporadas).

Até que veio a Lei Complementar 192/22. Por meio desse ato normativo, incidência monofásica, alíquotas únicas — por produto (destaque para gasolina, diesel e álcool anidro), em todo o território nacional — e específicas romperam a casca da promessa e tornavam-se expectativa legítima de alcance das tão aguardadas simplicidade e racionalidade do modelo tributário dos combustíveis. Em tese, seria o fim da cumulatividade (real) do ICMS, com cargas previsíveis e transparentes, em importante passo para a construção de cidadania fiscal ao povo que, tão carinhosamente, o acolhera três décadas atrás.

"No entanto, é um erro grave formular teorias antes de conhecer os fatos", penitenciou-se, ante o único deslize ilusório que cometera em tantos anos de Brasil. "A obscuridade tributária não existe por si só, na natureza. Não é algo que se esbarra e tropeça na rua. É criação humana. E o fato é que quem dela se vale, dela continua querendo se valer. Elementar, meu caro Alves. Estava debaixo do meu nariz, no balanço e nas DREs do meu posto."

Orlock me explicou que o "nome do fato" em questão era "Convênio ICMS 16/22". Se, por um lado, fora editado pelos Estados para, supostamente, disciplinar "a incidência única do ICMS sobre óleo diesel e (definir) as alíquotas aplicáveis, nos termos da LC 192/22", por outro aproveitara para lhes possibilitar a utilização de "instrumentos de equalização tributária". A primeira parte, em linha com o decidido pelo Congresso Nacional. Mas a segunda, muito longe disso: diferente do previsto pelo § 3º do artigo 6º da LC, os Estados transferiram para particulares os ônus que eles próprios deveriam assumir entre si, com a possível criação de mecanismos de compensação, eventualmente necessários em decorrência da uniformização nacional da carga.

Como meu amigo continuou a me narrar, o golpe era baixo. Isso porque, na prática, os Estados criaram, nas operações de comercialização interestaduais, uma "monofasia plufásica". Uma espécie de incidência única que acontece duas vezes: a primeira no produtor ou no importador (artigos 4º e 5º da LC; cláusulas segunda e terceira do Convênio); a segunda, no remetente do combustível ao destino, que deve complementá-lo ou ser ressarcido, a depender da diferença de carga decorrente da aplicação do "fator de equalização" (incisos I e II da cláusula quinta do Convênio 16/22). Ou seja: as mesmas cumulatividade e obscuridade de antes da Lei Complementar.

Ao final da explicação, Orlock me convidou para o bar.

"De todas as ruínas, a de uma mente nobre é a mais deplorável", sussurrou durante essa nossa última bebedeira, enquanto imaginava as conversas entre representantes estaduais na reunião que selara a morte da lógica de que "mono é um e não dois".

Além desse desabafo, naquela madrugada de fim de março de 2022 ouvi muitas histórias do querido amigo inglês. Mais de 30 anos de Brasil, de posto, de amizade com meu pai e nossa família, de desafios, de tributação de combustíveis, de promessas de reforma…Tudo entre muitas cervejas, devidamente pagas, ao fim, da mesma forma como Orlock fizera nas últimas três décadas: sem a convicção de quanto tributo se esconde em cada tulipa.

"Elementar, meu caro Alves."

*****

Já se vai quase um mês da nossa despedida. Ainda está viva na memória a pastinha verde e amarela que meu amigo me entregou à mesa de algum dos bares da Farani. Nela, tudo pragmaticamente organizado: escritura e contrato social transferindo a propriedade do imóvel e o controle da sociedade, respectivamente, para mim.

"Guardei algum dinheiro e vou voltar para a Inglaterra amanhã. Poderia fechar e vender o posto e encerrar mais um negócio, como, às vezes, parece que as autoridades fazendárias desejam. Mas, não. Minha metade brasileira não desiste nunca. Por isso quero que ele seja seu e que você leve adiante o meu legado", sentenciou, firme, Xoumes da Silva, sábio e guerreiro cidadão anglo-brasileiro, melhor conhecedor das virtudes e das mazelas nacionais do que a maioria de nós, nativos. "Tempos difíceis não duram, pessoas duras, sim. Por isso, minha luta pelo Brasil continuará através de você, caro Alves."

E assim será. O desejo de Orlock da Silva — brasileiro que nunca se deixou enganar pela expressão pejorativa "para inglês ver" — segue vivo. Não sei ao certo qual a data em que "cálculos por dentro", "complementos e ressarcimentos", "decisões descoladas da realidade" e outros deixarão de fazer parte do obscuro sistema tributário brasileiro. Ou qual o dia em que se saberá com convicção qual a carga tributária real em um litro de gasolina ou em um copo de cerveja. Ou, muito menos, a época em que a cidadania fiscal será uma realidade, em que brasileiras e brasileiros terão orgulho de pagar tributos e cobrar seus representantes pela sua devida utilização em prol da construção do bem comum. Mas eu sei de duas coisas: que esse dia vai chegar e que ele começa hoje, com minha ida ao escritório de advocacia para me opor à "monofasia plufásica" do afrontoso Convênio ICMS 16/22. E que o posto segue aberto.

Elementar, meu caro Brasil.

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