Opinião

Acesso dos povos indígenas à Justiça: a necessária Resolução 454 do CNJ

Autores

  • André Augusto Salvador Bezerra

    é juiz de Direito em São Paulo professor no curso de mestrado profissional da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados mestre doutor e pesquisador com pós-doutorado concluído na Universidade de São Paulo (USP).

  • Raffaela Cássia de Sousa

    é juíza federal substituta e mestranda em Direito e Poder Judiciário pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

21 de maio de 2022, 11h18

Nas décadas finais do século 20, a necessidade da elevação do acesso à Justiça à condição de direito autônomo foi tema colocado na ordem do dia nos debates travados na comunidade jurídica e na sociedade civil. A chamada inafastabilidade da jurisdição, presente no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal (CF) de 1988 foi produto de tais discussões, reforçado ainda pelo ambiente de ampla participação social ocorrido durante a Assembleia Constituinte (1987-1988) e pela preocupação, já existente no período, de se garantir efetividade aos novos direitos que estavam sendo constitucionalmente definidos.

O problema é que o acesso à Justiça foi prevalentemente visto, tanto na literatura acadêmica quanto na prática jurídica, sob a perspectiva da igualdade formal perante a lei, ignorando-se a heterogeneidade e as desigualdades da sociedade brasileira, de modo a fomentar ainda mais as injustiças sociais que marcam secularmente as relações jurídicas públicas e privadas país.

As desvantagens processuais suportadas pelos povos indígenas são, nesse sentido, exemplos de desigualdade que marcam o sistema jurídico. Sem embargo de ostentarem a posição de titulares de direitos que legitimam suas formas de existência, tais populações frequentemente desconhecem os meandros procedimentais vindos de um sistema jurídico que lhes foi imposto por práticas históricas colonialistas do homem branco e, por vezes, até mesmo não fazem da língua portuguesa falada e escrita nos ambientes forenses e nos autos processuais.

Sob tal situação, como assegurar a tais populações o socorro ao Judiciário, em igualdade real de oportunidades dos demais litigantes, quando seus direitos são violados?

A Resolução nº 454, de 22 de abril de 2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi criada para proporcionar efetividade ao direito de acesso à justiça dos povos indígenas. Editada com base na atribuição do CNJ de controle de políticas judiciárias nacionais (artigo 103-B, §4º da CF), a Resolução preocupa-se com as especificidades das chamadas populações originárias, assim fazendo pela consideração da pluralidade cultural e das desvantagens que enfrentam em um sistema de justiça que, por sua gênese eurocêntrica, nem sempre está adaptado ou pronto para compreender formas de existência não eurocêntricas.

A edição da Resolução 454/2022 ocorre no âmbito do contexto de maior atenção do CNJ aos povos indígenas, iniciada cerca de três anos antes com a elaboração da Resolução nº 287, de 25 de junho de 2019. Esta, contudo, tem aplicação apenas para as pessoas indígenas rés, acusadas ou privadas de liberdade. A Resolução de 454/2022, por seu turno, possui caráter mais geral pela preocupação de assegurar o acesso à justiça indistintamente a esse estrato populacional, incluindo tanto as pessoas indígenas consideradas individualmente, quanto os povos indígenas analisados sob o aspecto da coletividade.

Para isso, o documento normativo em questão traz os princípios que devem reger os processos envolvendo indígenas: autoidentificação, diálogo interétnico e intercultural, territorialidade, reconhecimento de organização social própria e dos meios de resolução de litígios, vedação de aplicação do regime tutelar e autodeterminação.

A autoidentificação, que é o direito de se reconhecer como indígena, a territorialidade, como o direito ao território ancestral, e a organização social própria reafirmam direitos já previstos na Constituição e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A vedação de aplicação de regime tutelar e a autodeterminação ratificam a interpretação dos direitos contidos no artigo 231 da CF e se somam ao que já se encontrava em toda sistemática da Convenção 169 da OIT e ainda no artigo 3º Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

Da mesma forma ocorre no tocante ao reconhecimento dos meios de resolução dos conflitos. Baseada no consagrado nos documentos internacionais e constitucional acima referidos, a norma do CNJ explicita, aos agentes do Judiciário, a superação do disposto no artigo 57 do Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973), que prevê que "Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte". Diferentemente desse dispositivo, a Resolução 454/2022 reconhece os meios de resolução dos litígios dos povos indígenas e não apenas "tolera" sua aplicação.

Mas a grande inovação da resolução em análise é, sem dúvida, a previsão da interculturalidade e do diálogo interétnico, que não encontram correspondência expressa na Constituição. Embora a interculturalidade não seja novidade absoluta na legislação brasileira, pois a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, já trazia esse princípio para tratar da educação escolar indígena, ela (interculturalidade) não possuía aplicação direta nos processos judiciais, pelo menos não em sede de norma jurídica. Agora, por meio da Resolução do CNJ, os processos envolvendo povos indígenas passam a ser vistos sob o aspecto interétnico e intercultural.

O que exatamente significa isso?

A interculturalidade é uma forma de enxergar a diversidade cultural, em que os diferentes povos e culturas são colocados em condição de igualdade, sem que um se sobreponha ao outro. A diversidade da população brasileira é enorme, possuindo indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas, negros, brancos, entre outros. Quanto aos povos indígenas, particularmente, são mais de 800 mil pessoas, 305 etnias e 274 línguas faladas, conforme dados extraídos do Censo Demográfico de 2010.

Em meio a tanta diversidade, contudo, o processo brasileiro é, na prática, prevalentemente monocultural, o que certamente é um reflexo da velha ideia isonômica formal do direito do acesso à justiça. Justamente por isso, a inserção da interculturalidade representa um ganho em termos de direitos, trazendo consigo importantes alterações nas dinâmicas processuais.

Dentre as mudanças, encontra-se a possibilidade de adaptação das normas processuais nos litígios envolvendo pessoas e grupos indígenas, consoante as especificidades culturais do povo envolvido, sem necessidade de aguardar alteração legislativa e de forma específica para cada caso. Para tanto, diante de uma norma que represente um obstáculo para que o indígena tenha efetivo acesso ao Poder Judiciário, o (a) magistrado(a) poderá utilizar os meios previstos na Resolução 454/2022 para tornar o processo mais equânime ou, ainda, poderá se valer de outros meios conforme a necessidade verificada em cada demanda.

A Resolução 454/2022 já traz algumas adaptações a serem adotadas nos processos envolvendo pessoas e povos indígenas como, por exemplo, a admissão do depoimento e de testemunho na língua nativa (artigo 16) e o direito de utilizar intérprete da própria comunidade (parágrafo segundo do artigo 16). Além disso, essa norma torna mais claras determinações que se encontram na Constituição, como o direito de ingressar em juízo para defender seus direitos sem precisar de nenhuma instituição estatal intermediária e nem da constituição prévia de uma pessoa jurídica (artigo 232 da CF e artigo 10 da Resolução 454/2022).

A vantagem da inserção da interculturalidade dentro dos processos judiciais se dá por ela ser o que Catherine Walsh chama de um processo e atividade contínua (Interculturalid, Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales de nuestra época, 2009), ou seja, a cada nova interação cultural surgem novos diálogos entre compreensões ontológicas diferentes e outras possibilidades de adaptação do procedimento. Consequentemente, as alternativas trazidas pela Resolução 454/2022 não esgotam todas as possibilidades do diálogo interétnico e intercultural. Na verdade, podem ser visualizadas até mesmo outras hipóteses, tal como, por exemplo, a tradução de sentenças para a língua nativa do povo envolvido.

Faltou, contudo, o tratamento sobre os indígenas de contexto urbano, que possuem especificidades outras em relação àqueles que vivem em situação de aldeamento e longe dos centros urbanos. Poderia a Resolução 454/2002, ao menos, ter mencionado em um artigo que as suas disposições seriam aplicáveis a todos os povos e pessoas indígenas, independente de situação de aldeamento ou de se encontrar o indivíduo em área urbana. É de se lembrar, a título de exemplo, que a diferença de contemplação de direitos entre indígenas urbanos e residentes em terras não homologadas e aqueles que vivem em áreas reconhecidas pelo Estado chegou a ser discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 709, em que, entre outros temas, trouxe a discussão sobre a extensão da vacinação prioritária também aos indígenas que se encontravam em terras não homologadas e em contexto urbano, preferência que havia sido estabelecida apenas para aqueles de áreas já demarcadas.

Tal circunstância, porém, não justifica a ausência de tratamento processual peculiar a todos os povos indígenas, sem discriminações, em conformidade com suas próprias formas de existência. Afinal, como visto, a condição de sujeitos especiais de direitos decorre de normas constitucionais e internacionais. A Resolução 454/2002 apenas explicitou o que já se encontra vigente, indicando importantes caminhos aos agentes do Judiciário, para que supram desvantagens históricas no exercício do direito de acesso à Justiça.

Autores

  • é juiz de Direito, doutor e pesquisador em estágio pós-doutoral na Universidade de São Paulo (USP), professor do mestrado profissional Direito e Judiciário na Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e autor do livro "Povos Indígenas e Direitos Humanos: Direito à Multiplicidade Ontológica na Resistência Tupinambá" (Editora Giostri).

  • é juíza federal substituta e mestranda em Direito e Poder Judiciário pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).

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