Opinião

Litigiosidade predatória: o modelo econômico da litigância

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16 de maio de 2022, 6h05

Este texto é o terceiro e último de uma série de três artigos a respeito da litigiosidade predatória. O primeiro artigo dedicou-se a contextualizar o debate, traçando um breve histórico da discussão. O segundo artigo buscou caracterizar o fenômeno com o auxílio de alguns casos documentados. Este terceiro artigo, por fim, visa explicar a relação da litigiosidade predatória com o modelo econômico da litigância civil. Para que se possa compreender melhor a questão, vale a pena, em primeiro lugar, estabelecer a contraposição entre a concepção clássica de acesso à Justiça e a visão apresentada pela Análise Econômica do Direito.

O acesso à Justiça insere-se no rol de direitos e garantias fundamentais, constituindo-se, para alguns [1], um dos mais importantes, tendo em conta seu especialíssimo caráter de direito condição para a efetivação das demais prerrogativas da cidadania. De acordo com essa visão, a concepção clássica de acesso à Justiça [2] busca assegurar a todos, de forma igualitária, o recurso ao sistema legal. As custas são vistas como barreiras que devem ser transpostas, sendo subjacente a ideia de que, "quanto mais pessoas estiverem litigando, melhor, já que o Judiciário terá condições de distinguir entre pretensões fundadas e infundadas, tutelando o direito dos que precisam" [3].

A crise da justiça civil, a partir dessa visão, é frequentemente atribuída à falta de estrutura material e humana e uma suposta cultura de litigância ou cultura da sentença. A solução, a partir desse diagnóstico, é aumentar o "parque instalado", com a criação de mais varas judiciais e a contratação de mais juízes e servidores etc. e/ou buscar conscientizar as pessoas, sobretudo as partes e advogados diretamente envolvidas no litígio, as benesses da solução consensual, ainda que isso possa significar ter de abdicar de parte de sua pretensão ou de benefícios econômicos que seriam decorrentes de eventual vitória.

Muito embora ninguém negue a importância do acesso à Justiça, diversos aspectos dessa concepção tradicional são contrariados pela Análise Econômica do Direito, que se propõe a analisar quando a litigância civil é socialmente benéfica e quando pode impactar negativamente a comunidade [4].

Como exposto por Steven Shavell, não há uma conexão necessária entre "os benefícios privados de um processo e os benefícios sociais" [5]. Os benefícios privados referem-se ao que o indivíduo espera receber, enquanto os benefícios sociais são inerentes a uma externalidade — o efeito (positivo) que o litígio irá causa sobre o comportamento das pessoas. Assim, por exemplo, antevendo que poderá ser condenado a reparar as vítimas, aquele que desenvolve atividades com alto potencial de causar danos investirá em condutas preventivas até o limite do que considera a probabilidade de ser condenado, o valor da condenação e os custos do litígio.

O litígio, por outro lado, gera custos não apenas para os litigantes, que contratam advogados, perdem tempo e investem recursos na produção de provas, mas também para toda a sociedade, seja pelo dinheiro do contribuinte investido para financiar o Judiciário [6], seja pela insegurança gerada. Dessa forma, a princípio, a litigância será socialmente benéfica apenas se o benefício social esperado superar a soma dos custos que a própria litigância gera.

O litigante individual, entretanto, ao ajuizar uma ação, analisa apenas os custos que irá suportar à luz da probabilidade e o valor que espera receber em caso de vitória, ignorando os custos suportados pelo adversário e pelo Estado, bem como o eventual impacto que a demanda terá no comportamento das pessoas. Por essa razão, a forma de custeio do litígio e a responsabilidade dos litigantes têm importância primordial para determinar se uma demanda será ou não ajuizada: incentivos insuficientes farão com que ações socialmente benéficas não sejam ajuizadas; incentivos exagerados, por outro lado, explicam o ajuizamento de demandas frívolas e que, pela perspectiva social, não se justificam.

A diminuição exagerada — ou a própria exclusão dos custos — por sua vez, deixa o Poder Judiciário vulnerável à superexploração e a congestionamentos, acarretando morosidade na entrega da prestação jurisdicional e/ou diminuição da qualidade dos julgamentos. E, não fosse o bastante, o atraso na prestação jurisdicional pode gerar um aspecto ainda mais sério e pernicioso que é a seleção adversa, incentivando que alguns sujeitos se valham do sistema apenas para postergar suas obrigações, naquilo que se referenciou demandas ou condutas procrastinatórias.

Diversos desses fatores estão presentes no cenário brasileiro: a maior parte do orçamento para financiar os litígios não decorre de arrecadação com custas, mas provém diretamente dos cofres públicos, ou seja, dos tributos em geral. Isso faz com que os custos dos litígios sejam dispersos pela sociedade, não sendo considerados — na maior parte — nem pelo litigante individual no momento do ajuizamento, nem pelo potencial causador de dano para a adoção de condutas preventivas.

A gratuidade, tal como estruturada no direito brasileiro, agrava ainda mais esse quadro, pois, além de tratado por vezes de forma pouco criteriosa, "concedida a virtualmente qualquer pessoa que a pedir, sendo, portanto, irracional deixar de fazê-lo" [7] —, não apenas elimina o custo imediato do ajuizamento das ações, como também exclui a responsabilidade do litigante em caso de derrota. Assim, diante da perspectiva da gratuidade, não haveria qualquer razão para deixar de ajuizar uma demanda, ou mesmo agir de maneira econômica, o que explica igualmente a fragmentação de pedidos e a pulverização de ações.

Não é por menos, Fábio Tenenblat, em estudo empírico, apurou que a chance de êxito de uma ação ajuizada por pessoa física em que há o pagamento das custas é mais que o dobro do que uma ação com o benefício, havendo "forte indicativo do grau de frivolidade e inconsistência das ações com gratuidade" [8]. Na mesma linha, conforme constou do Relatório de Atividades do Numopede/TJ-SP: a "combinação 'justiça gratuita' e solicitação de 'inversão do ônus da prova' parece, nas ações em análise, potencializar e estimular a distribuição de ações temerárias, por associar uma ação sem risco ao autor e, ao mesmo tempo, sem lhe imputar o ônus de demonstrar os fatos que alega" [9].

Essa estrutura, além de explicar o ajuizamento de demandas frívolas e condutas predatórias, explica, inclusive, violações recorrentes de direitos por determinados agentes, inclusive pela lógica do ilícito lucrativo. Não há razão para investir em prevenção ou em um SAC eficiente se a demanda virá de qualquer forma e o próprio réu não terá de arcar com a maior parte do custo dela. A simples elevação das condenações (por danos morais ou punitivos), por outro lado, tampouco resolveria esse problema, e poderia gerar o ajuizamento de mais demandas sem fundamento, já que os autores tampouco terão de arcar com esses custos, podendo valer-se do processo como uma autêntica aposta.

Não se está, é bom deixar claro, advogando que as custas devem ser sempre elevadas e o benefício da gratuidade seja excluído. É necessário repensar, contudo, alguns "lugares comuns". Custas baixas nem sempre beneficiam o acesso às camadas mais pobres, mas acabam beneficiando os maiores litigantes — e que se valem do sistema com mais frequência — e que repassam para os mais pobres, por meio de tributos indiretos (e por vezes, regressivos), o financiamento do sistema. Da mesma forma, a gratuidade, ao estabelecer preços diferenciados, tem vantagens, mas deve ser pensada na proporção da necessidade e a isenção não pode aproveitar o litigante não beneficiário em caso de vitória, nem excluir por completo os riscos da demanda em caso de derrota.

Como se pode perceber, o debate sobre a litigância predatória encontra raízes em distorções na estrutura do sistema. Dentro desse escopo, pensar no problema da litigância predatória envolve também refletir sobre as condições que permitiram sua existência. E, por outro lado, qualquer tentativa de aprimorar o funcionamento do sistema de Justiça deve também voltar os olhos para esse tipo de litigiosidade e encontrar meios de coibi-la, sob pena de o abuso de alguns a prejudicar o bom uso de todos.


Referências

BRASIL. TJ-SP. Relatório Bimestral de atividades do Numopede Outubro-Novembro/2016. http://www.tjsp.jus.br/PublicacaoADM/Handlers/FileFetch.ashx?id_arquivo=77180. Acesso em 14/4/2022.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.

CAVALCANTE, Henrique Haruki Arake; GICO JÚNIOR, Ivo Teixeira. De graça até injeção na testa. Disponível aqui.. Acesso em 10/4/2019.

FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

MARCELLINO JÚNIOR, Julio Cesar. Análise Econômica do Acesso à Justiça. A tragédia dos custos e a questão do acesso inautêntico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

SHAVELL, Steven. The social versus teh private incentive to bring a suit in a costly legal system. Disponível aqui. Acesso em: 30/10/2021.

TENENBLAT, Fabio. Limitar o acesso ao Poder Judiciário para ampliar o acesso à Justiça. Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 52, p. 23-35, jan./mar. 2011.

TIMM, Luciano Benetti. Judicialização do setor aéreo: por que é um problema e por que o PL 533 ajuda os consumidores. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/aviacao-competitividade/judicializacao-do-setor-aereo-29092021. Acesso em: 17/10/2021.

 


[1] MARCELLINO JÚNIOR, Julio Cesar. Análise Econômica do Acesso à Justiça. A tragédia dos custos e a questão do acesso inautêntico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016. P. 1.

[2] Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.

[3] FUX, Luiz; BODART, Bruno. Processo Civil e Análise Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

[4] Cf. TIMM, Luciano Benetti. Judicialização do setor aéreo: por que é um problema e por que o PL 533 ajuda os consumidores. Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/aviacao-competitividade/judicializacao-do-setor-aereo-29092021. Acesso em: 17/10/2021.

[5] SHAVELL, Steven. The social versus teh private incentive to bring a suit in a costly legal system. Disponível em: http://www.law.harvard.edu/faculty/shavell/pdf/11_J_legal_stud_333.pdf. Acesso em: 30/10/2021.

[6] Cf. FUX, Luiz; BODART, Bruno. Op. Cit. P. 34.

[7] CAVALCANTE, Henrique Haruki Arake; GICO JÚNIOR, Ivo Teixeira. De graça até injeção na testa. Disponível aqui. Acesso em 10/4/2019.

[8] Cf. TENENBLAT, Fabio. Limitar o acesso ao Poder Judiciário para ampliar o acesso à Justiça. Revista CEJ, Brasília, Ano XV, n. 52, p. 23-35, jan./mar. 2011.

[9] Cf. TJSP. Relatório Bimestral de atividades do Numopede Outubro-Novembro/2016. http://www.tjsp.jus.br/PublicacaoADM/Handlers/FileFetch.ashx?id_arquivo=77180. Acesso em 14/4/2022.

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