Opinião

Litigiosidade predatória: o fenômeno das "fake lides"

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2 de maio de 2022, 6h06

O presente texto faz parte de uma série de três artigos a respeito da litigiosidade "predatória". Neste primeiro artigo será feita a contextualização do tema, a partir de um breve histórico de sua evolução, trazendo alguns números; no segundo artigo, serão abordados alguns conceitos e características relacionados ao fenômeno e, por fim, no terceiro artigo, será discutida a relação do tema com o modelo econômico de litigância civil e a influência do regime de gratuidade para a viabilização de determinadas condutas.

O tema da litigiosidade predatória está diretamente relacionado ao fenômeno da explosão de litigiosidade que se verificou no Brasil, especialmente após a promulgação da Constituição de 1988. As estimativas indicam que o número de processos nas instâncias ordinárias aumentou cerca de 270 vezes desde então, saltando de 350 mil para mais de 96 milhões de processos em 2012 [1]. Pouco tempo depois, em 2014, foi ultrapassada a marca de 100 milhões de processos em tramitação, com quase 30 milhões de processos ajuizados apenas naquele ano [2].

Esse fenômeno, vale mencionar, não é exclusivo do cenário nacional. Doutrinadores de diversos países apontam a judicialização como uma tendência mundial [3], ligada a fatores como a modificação nos perfis dos Estados, cada vez mais deixando o modelo exclusivamente liberal para assumir obrigações sociais, além de transformações nas relações socioeconômicas, com a massificação da produção, do consumo e da distribuição de bens e serviços, e, mais recentemente, a globalização econômica e o avanço da tecnologia da informação.

Essas novas relações não apenas fizeram surgir novos tipos de conflito, como têm um efeito multiplicativo importante. Enquanto anteriormente a violação de um direito podia ser compreendida pelo escopo da relação jurídica individual, a violação de um direito social assumido pelo Estado ou uma falha na fabricação de um produto ou o fornecimento de um serviço colocado à disposição de toda a população tem a capacidade de afetar um número enorme de pessoas e potencial de gerar um igual número de litígios repetitivos e de massa.

Toda essa problemática é ainda agravada se, pelo raciocínio do agente, a violação passa a ser parte de uma estratégia maior para aumentar seus ganhos ou desincumbir-se de suas obrigações, confiando que indivíduos não procurarão o Poder Judiciário, sobretudo se os danos forem de pequena monta (o que, em linhas gerais, alguns chamam de ilícito lucrativo ou lucros ilícitos).

Os dados confirmam esse cenário no Brasil. A partir de uma análise do panorama do acesso à Justiça cível, é possível perceber que os litígios são concentrados em litigantes habituais [4], basicamente o poder público, instituições financeiras e concessionárias de serviços, que, juntos, respondem por mais de metade dos processos [5]. Ademais, e talvez até como consequência dessa concentração, muitos processos realmente dizem respeito às mesmas questões de direito ou a relações de massa [6], alguns inclusive indiciando condutas oportunistas desses agentes.

Não obstante, além de questões repetitivas e de massa, alguns juízes começaram a perceber em alguns casos que as coincidências eram exageradas, com o ajuizamento em série de demandas com petições iniciais idênticas ou muito semelhantes, com o mesmo relato fático, seguindo determinados padrões, como, por exemplo, pedidos de gratuidade, dispensa de conciliação e instrução, por pessoas domiciliadas em comarcas distantes [7].

Ao aprofundar na instrução, esses mesmos juízes passaram a perceber que os mesmos vícios se repetiam nessas ações: em alguns casos foi verificado que o relato era absolutamente divorciado da versão apresentada pelo autor; em outros, os próprios autores não tinham conhecimento ou interesse na distribuição da ação; e, em casos mais graves, foi apurado ações que se valiam de documentos fraudados. Não apenas fatos isolados, as condutas, por grupos diversos de pessoas, revelaram um autêntico modus operandi de uso abusivo do Poder Judiciário. Essas ações, por sua vez, passaram a ser conhecidas como "demandas predatórias" ou "demandas agressoras" [8].

Análises de jurimetria, por sua vez, revelaram que a movimentação processual gerada por essas demandas era, e ainda é, de fato, significativa.

Em um dos casos, por exemplo, relacionado a uma comarca de grande porte do interior paulista, foi denunciado que a atuação de um mesmo grupo de advogados levou ao ajuizamento de mais de 50 mil ações padronizadas, com inúmeras irregularidades, como, por exemplo, a omissão ou alteração de verdade dos fatos visando induzir em erro o Judiciário, cautelares desnecessárias, inclusive pedidos de exibição de documentos que já tinham posse, além ajuizamento de demandas sem o conhecimento do autor, dentre outras, valendo-se de pedido indistinto de gratuidade como estratégia para deixar de pagar sucumbência em caso de derrota.

A atuação desse grupo elevou a média de demanda de 23 mil casos novos por ano para 27 mil casos novos por ano e um atraso no tempo médio de sentença que passou de 364 dias em 2012 para 930 dias [9] para todos os demais casos. Ou seja, provocou atraso generalizado na resolução de demandas reais, relacionadas a pessoas que efetivamente precisavam da jurisdição, patrocinadas por outros advogados que atuavam regularmente.

Em recente estudo realizado pelo Centro de Inteligência do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, por sua vez, foi apurado que, de 64.037 ações ajuizadas sobre o tema empréstimo consignados, 34.471 eram do mesmo grupo de advogados. Analisados 300 processos, em 100% dos casos a narrativa era hipotética, relatando que a parte autora não se recorda se celebrou o empréstimo cuja inexistência é postulada, em todos os casos a inicial não foi instruída com o extrato bancário do período questionado, a procuração era genérica e essa generalidade permitiu o uso da mesma procuração para ajuizamento de outras demandas em 100% dos casos [10]. Em 80% dos casos, além de improcedente o pedido, o autor foi condenado em litigância de má-fé.

É importante observar, a litigância predatória não se estabelece apenas pelo número de processos, mas pela distorção de institutos processuais e a própria ideia de acesso à Justiça, valendo-se da massificação da conduta como forma de potencializar ganhos. Há uma aposta inerente no sentido de que, sendo vitorioso em alguns casos (o que pode se dar por inúmeras razões, inclusive pela incapacidade da parte contrária de defender-se de tantas demandas) a conduta já gerará ganhos, sendo irrelevante o número de casos em que for derrotado, já que institutos como a gratuidade isentam do custo de ingresso e responsabilidade pela sucumbência.

O fenômeno, em diversos aspectos, vai além das balizas tradicionais do ato atentatório à dignidade da Justiça e litigância de má-fé, invadindo a seara do ato ilícito pela via do abuso do direito. Ao distorcer o conceito de acesso à Justiça, é viabilizado o ajuizamento de ações sem litigiosidade real, ou, numa terminologia mais contemporânea, autênticas "fake lides". Esse tipo de conduta, como indicado, além de prejudicar a parte contrária, prejudica toda a sociedade, pois consome recursos do Poder Judiciário, inclusive o tempo de análise das ações pelos juízes, colaborando para o aumento dos índices de morosidade e congestionamento.

Tais questões, entretanto, deverão ser objeto de aprofundamento nos próximos artigos sobre o tema.

Referências
CHAER, Márcio (dir.). Anuário da Justiça no Brasil 2014. São Paulo: Conjur, 2014.
CNJ. 100 maiores litigantes. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/100_maiores_litigantes.pdf. Acesso em: 25/3/2016.
CNJ. Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios Disponível em https://paineis.cnj.jus.br/. Acesso em: 28/3/2021.
CNJ. Justiça em Números 2015. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em 17/10/2021.
GALANTER, Marc. Why the Haves Come Out Ahead: The Classic Essay and New Observations. New Orleans: Quid Pro Books, 2014.
LUNARDI, Fabricio Castagna; KOEHLER, Frederico Augusto; FERRAZ, Tais Schilling; O sistema de precedentes brasileiro: demandas de massa, inteligência artificial, gestão e eficiência. Brasília: Enfam, 2021.
MORAES, Vânila Cardoso de (Coord.). As demandas repetitivas e os grandes litigantes: possíveis caminhos para a efetividade do sistema de Justiça brasileiro. Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, 2016.
SANTOS; Alexandre Andretta dos; Palestra proferida na 7ª Caravana Virtual dos Centros de Inteligência. Disponível aqui. Acesso em 9/4/2022.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm. Acesso em: 12/4/2015.
TJ-SP. Processo nº 0055361-16.2011.8.26.0002; J. 16/11/2011.
TJ-RN. Nota técnica 01 do Centro de Inteligência dos Juizados Especiais. Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-rn-advogados-usam-acoes.pdf. Acesso em: 29/10/2021.
TJ-MS. Centro de Inteligência. Nota Técnica 01/2022. Disponível em: https://www.tjms.jus.br/storage/cms-arquivos/62a318e6cbe7019b873fa0a4d8d58599.pdf. Acesso em 9/4/2022.
VIARO, Felipe Albertini Nani. Judicialização: Análise doutrinária e verificação no cenário brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2018.


[1] CHAER, Márcio (dir.). Anuário da Justiça no Brasil 2014. São Paulo: Conjur, 2014.

[2] BRASIL. CNJ. Justiça em Números 2015. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em 17/10/2021.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa; MARQUES, Maria Manuel Leitão; PEDROSO, João. Os tribunais nas sociedades contemporâneas. Disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/
rbcs30_07.htm
. Acesso em: 12 abr. 2015.

[4] Cf. GALANTER, Marc. Why the Haves Come Out Ahead: The Classic Essay and New Observations. New Orleans: Quid Pro Books, 2014.

[5] Cf. BRASIL. CNJ. 100 maiores litigantes. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/100_maiores_litigantes.pdf. Acesso em: 25/3/2016.

[6] A título de exemplo, conforme se extrai do Painel do CNJ, no início de 2021, 1.620.756 processos repetitivos estavam sobrestados na Justiça Estadual aguardando a definição de temas no âmbito dos tribunais superiores ou dos próprios tribunais. Esses números refletem apenas processos sobrestados pela verificação de repetitividade de questão jurídica e não consideram processos pendentes de verificação ou que tratam de questões ainda não afetadas. Cf. BRASIL. CNJ. Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios Disponível em https://paineis.cnj.jus.br/. Acesso em: 28/3/2021.

[7] "A solução do litígio envolve a abordagem de alguns pontos. No último ano, houve a constatação da distribuição de inúmeras ações (mais de mil ações) no Foro Regional de Santo Amaro, todas com idênticas causa de pedir e iguais pedidos. A fundamentação: a) inexistência de contrato entre o demandante e o demandado e b) cobrança indevida de valores com inclusão do nome do demandante em bancos de dados de proteção ao crédito. Os pedidos: a) declaração de inexistência da dívida e b) indenização por danos morais. (…) 'a incomum coincidência chamou a atenção para os seguintes fatos constatados nos inúmeros processos: a) modo de atuação dos quatro advogados que aparentavam ser de um mesmo escritório (fato confirmado), b) apuração na instrução de processos de que a versão da petição inicial estava completamente divorciada da realidade dos fatos, caracterizando-se dolo processual, c) suspeita de desvios éticos dos advogados" Cf. BRASIL. TJ-SP. Processo nº 0055361-16.2011.8.26.0002; J. 16 nov. 2011.

[8] Cf. BRASIL. TJ-RN. Nota técnica 01 do Centro de Inteligência dos Juizados Especiais. Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-rn-advogados-usam-acoes.pdf. Acesso em: 29/10/ 2021.

[9] Cf. SANTOS; Alexandre Andretta dos; Palestra proferida na 7ª Caravana Virtual dos Centros de Inteligência. Disponível aqui. Acesso em 9/4/2022.

[10] TJ-MS. Centro de Inteligência. Nota Técnica 01/2022. Disponível em: https://www.tjms.jus.br/storage/cms-arquivos/62a318e6cbe7019b873fa0a4d8d58599.pdf. Acesso em 9/4/2022.

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