Controvérsias Jurídicas

Crimes contra a honra via direct

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

12 de maio de 2022, 8h03

A configuração do Estado Democrático implica no estabelecimento de direitos e garantias individuais destinadas a assegurar a existência digna da pessoa humana. Para tanto, a Constituição Federal estabelece, dentre outras, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurando o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (CF, artigo 5º, X). Tutela-se um bem imaterial, relativo à personalidade humana. Assim, o indivíduo tem direito à vida, à integridade física e psíquica, como também a não ser ultrajado em sua honra, pois o seu patrimônio moral também é digno da proteção constitucional [1].

Segundo Uadi Lammêgo Bulos, "tutelando a honra, o constituinte de 1988 defende muito mais o interesse social do que o interesse individual, uti singuli, porque não está, apenas, evitando vinditas e afrontes à imagem física do indivíduo. Muito mais do que isso, está evitando que se frustre o justo empenho da pessoa física em merecer boa reputação pelo seu comportamento zeloso, voltado ao cumprimento de deveres socialmente úteis" [2].

A honra, segundo Magalhães Noronha, conceitua-se como "o complexo ou conjunto de predicados ou condições da pessoa que lhe conferem consideração social e estima própria" [3].

Quando se fala em honra, a doutrina costuma classificá-la em honra objetiva e honra subjetiva, honra dignidade e honra decoro e, honra comum e honra profissional.

A honra objetiva diz respeito à opinião de terceiros com relação aos atributos físicos, intelectuais e morais de alguém. A afirmação de que determinada pessoa possui boa ou má reputação no seio social decorre da aferição de sua honra objetiva. É aquela que se refere à conceituação do indivíduo no meio social. A honra subjetiva, por sua vez, refere-se à opinião que o sujeito tem de si próprio.

A honra dignidade compreende aspectos morais como a honestidade, a lealdade e a conduta moral como um todo. Já a honra decoro consiste nos demais atributos desvinculados da moral, tais quais a inteligência, a dedicação ao trabalho, a forma física etc.

A honra comum é aquela inerente a todos os seres humanos. Como o próprio nome diz, é comum a todos os indivíduos. Ao passo que a honra profissional se refere a determinado grupo profissional ou social. Fere-se a honra profissional de um médico ao chamá-lo de açougueiro [4], por exemplo.

A proteção da honra é de tamanha relevância que o legislador infraconstitucional também inseriu no Código Penal, no Título I ("Dos Crimes Contra a Pessoa"), um capítulo próprio (Capítulo V) definindo os delitos pelos quais responderão aqueles que, de alguma forma, atingi-la.

Sob a rubrica "Crimes contra a honra" cuida o Código Penal daqueles delitos que ofendem bens imateriais da pessoa humana, no caso, a honra pessoal. São eles: calúnia (CP, artigo 138), difamação (CP, artigo 139) e injúria (CP, artigo 140).

A calúnia tutela a honra objetiva do indivíduo, ou seja, a sua reputação. O verbo caluniar significa imputar falsamente fato definido como crime. O agente atribui a alguém a responsabilidade pela prática de crime que não ocorreu ou de que sabe ser o imputado inocente.

Assim como a calúnia, a difamação também protege a honra objetiva do indivíduo. O núcleo do tipo é o verbo difamar consistente em imputar a alguém fato ofensivo à sua reputação.

A injúria, por sua vez, tem como bem jurídico tutelado a honra subjetiva, constituída pelo sentimento próprio de cada pessoa acerca de seus atributos, ou seja, sua honra moral e sua honra decoro. De acordo com Nélson Hungria injuriar consiste na "manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém" [5] .

No tocante ao momento consumativo, tanto a calúnia quanto a difamação se consumam quando a imputação se torna conhecida por terceiro, que não o ofendido. Já a injúria se consuma quando o sujeito passivo toma ciência da imputação ofensiva, independentemente de sentir-se ou não atingido em sua honra subjetiva. A identificação do momento consumativo do delito é importante, pois a partir daí são definidas outras questões tais como a fixação da competência (CPP, artigo 70). Via de regra, na calúnia e na difamação a competência para a apuração do delito é definida pelo local em que o comentário ofensivo atingiu o conhecimento de terceiros, ao passo que na injúria, a competência permanece com o juízo do local no qual a vítima tomou conhecimento da atribuição negativa.

Com o avanço tecnológico e a globalização, a internet surge como um novo ambiente propício para propagação de ofensas, especialmente devido ao seu alcance intercontinental e a velocidade com a qual os insultos são espalhados. Tais características, aliadas à suposta sensação de impunidade que a rede mundial de computadores traz, tornam-na atrativa para os delinquentes que buscam denegrir a imagem de terceiros de boa-fé. Nesse sentido, o STJ já se manifestou que em razão dessas peculiaridades, não se exige demonstração inequívoca de ciência do conteúdo por parte de terceiros ou do ofendido, de modo que os crimes contra a honra praticados em ambiente virtual são formais, consumando-se independentemente do resultado naturalístico: "Os crimes contra a honra praticados pela internet são formais, consumando-se no momento da disponibilização do conteúdo ofensivo no espaço virtual, por força da imediata potencialidade de visualização por terceiros" [6]. Deste entendimento, extrai-se que nos crimes contra a honra praticados nessas circunstâncias a competência será fixada de acordo com o local onde as ofensas foram veiculadas na internet.

Ocorre que, com a expansão do ambiente virtual como meio de interação entre pessoas e difusão de informação, surgem também novas ferramentas e recursos destinados a modernizar a comunicação entre os usuários da rede. Aplicativos como o WhatsApp, Instagram e Facebook trazem ferramentas de conversa privada, as quais, diferentemente dos outros tipos de publicações constantes dessas redes, limitam o acesso ao seu conteúdo apenas aos usuários interlocutores da respectiva mensagem. São exemplos o Messenger/Inbox do Facebook e o direct do Instagram.

Ao analisar caso de injúria praticada mediante o envio de mensagem de áudio com o conteúdo ofensivo à vítima por meio de aplicativo de troca de mensagens entre usuários em caráter privado, no caso sub judice o Instagram direct, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Conflito de Competência nº 184.269-PB [7], firmou entendimento no sentido de que nesses casos, a competência para apuração e julgamento do delito é do local em que a vítima tomou conhecimento da ofensa. Nas palavras da relatora ministra Laurita Vaz: "A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que no caso de delitos contra a honra praticados por meio da internet, o local da consumação do delito é aquele onde incluído o conteúdo ofensivo na rede mundial de computadores. Contudo, tal entendimento diz respeito aos casos em que a publicação é possível de ser visualizada por terceiros, indistintamente, a partir do momento em que veiculada por seu autor. No caso dos autos, embora tenha sido utilizada a internet para a suposta prática do crime de injúria, o envio da mensagem de áudio com o conteúdo ofensivo à vítima ocorreu por meio de aplicativo de troca de mensagens entre usuários em caráter privado, denominado 'instagram direct', no qual somente o autor e o destinatário têm acesso ao seu conteúdo, não sendo destinado à visualização por terceiros, após a sua inserção na rede de computadores".

Em suma, três são os ensinamentos com relação à consumação dos crimes contra a honra extraídos do caso analisado: a) em regra, a consumação ocorre no momento em que a imputação chega ao conhecimento de terceiro ou do ofendido, a depender da modalidade criminosa (calúnia, difamação e injúria); b) no caso de crime contra a honra praticado pela internet a consumação se dá com a inclusão do conteúdo na rede mundial dos computadores, independentemente do conhecimento inequívoco de terceiro ou do ofendido e; c) no caso de crime contra a honra praticado pela internet mediante aplicativos de conversa privada a competência retorna à regra geral, ou seja, consuma-se no momento em que o terceiro ou o ofendido tomou ciência da mensagem ofensiva à honra.

No mais, a atuação do STJ no sentido de estabelecer regras de fixação de competência aos crimes contra honra demonstra que, ao contrário do que muitos delinquentes pensam, a internet não é terra sem lei. Aos pseudo valentes e àqueles que se encorajam apenas atrás de uma tela de computador fica o recado: imputar falsamente crimes a inocentes, denegrir a imagem de pessoas de bem, imputar ofensas, dentre tantos outros comportamentos igualmente abomináveis e reprováveis na persecução única e exclusiva de destruir reputações, não configura liberdade de expressão, mas sim crime, punido com pena privativa de liberdade de até 2 anos.

 


[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal V.2, 22ª ed., São Paulo, Saraiva, 2022.

[2] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001

[3] NORANHA, E. Magalhães. Direito penal, cit., v. 2.

[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal V.2, 22ª ed., São Paulo, Saraiva, 2022.

[5] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 5ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1979.

[6] CC 173.458/SC, rel. ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, 3ª SEÇÃO, julgado em 25/11/2020, DJe 27/11/2020.

[7] STJ – CC: 184269 PB 2021/0363685-3, relatora: ministra LAURITA VAZ, data de publicação: DJ 18/11/2021

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!