Opinião

A doutrina de Joseph Raz: uma breve homenagem

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Luis Henrique Braga Madalena

    é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela Uerj mestre em Direito Público pela Unisinos vice-diretor Financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.

  • Lucas Sipioni Furtado de Medeiros

    é mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em Direito Constitucional e em Teoria do Direito Dogmática Crítica e Hermenêutica pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

5 de maio de 2022, 14h01

É com profundo pesar que recebemos na última segunda-feira (2/5) a notícia de falecimento do professor Joseph Raz, um dos maiores filósofos do século 20.

Divulgação
O filósofo Joseph Raz (1939-2022)Divulgação

Nascido em 1939 no então Mandato Britânico da Palestina, Raz foi aluno, entre os anos de 1964 e 1967, de H. L. A. Hart, de quem se tornou grande amigo, durante o seu doutorado. Inclusive, Raz, juntamente com Penelope Bulloch, a pedido de Jennifer Hart (esposa de Hart), foi o responsável por editar o pós-escrito que posteriormente veio a fazer parte da segunda edição de "O Conceito de Direito".

Autor de inúmeros livros que flutuam entre filosofia moral, política e jurídica, tais como "The Authority of Law" (1979), "Practical Reason and Norms" (1999), "The Morality of Freedom" (1994), "Between Authoority and Interpretation" (2009), Raz deixa um imenso legado, não sendo exagero afirmar que, com sua morte, os três gigantes da Filosofia do Direito de tradição anglo-saxã/anglo-americana se foram: Herbert Hart, Ronald Dworkin e, hoje, Joseph Raz. Que ele descanse em paz! Suas ideias por certo nos acompanharão por muito tempo.

Com o objetivo de homenagear Raz é que escrevemos esse singelo texto expondo de forma resumida alguns pontos de sua vasta teoria. Esperamos que ele instigue alguns de seus leitores a conhecer mais de sua obra, que ainda é muito pouco estudada e reconhecida no Brasil. Raz se situa entre os positivistas, o que soa a muitos ainda como anátema, haja vista a quantidade de incompreensões que esse modo de pensar desperta. Não raro ainda se encontram autores a afirmar que o positivismo contribuiu para a consolidação do nazismo, nada mais equivocado.

Pois bem. Raz é defensor do assim chamado positivismo excludente, teoria segundo a qual a moral não exerce qualquer papel da determinação do Direito válido. É bem verdade, diz Raz, que a moral influencia o Direito em diversos momentos, mas mesmo em tais casos as leis são leis não porque moralmente justificáveis, mas porque postas no sistema por uma autoridade política legitimada para tanto; porque podem ser reconduzidas a um fato social. Nas palavras do autor: "[…] a existência e o conteúdo de toda lei são completamente determinados por fatos sociais" [1]. Eis o ponto central.

Nesse sentido, entre as teses subscritas por Raz está a tese da fontes, segundo a qual uma teoria do direito somente é adequada para explicar seu objeto caso os testes que ela prevê "[…] para a identificação do conteúdo do direito e determinação de sua existência dependem exclusivamente de fatos do comportamento humano capazes de ser descritos em termos livres de valores e explicados sem recursos a argumentos morais" [2]. De se observar que a tese das fontes é uma reformulação mais rigorosa da tese social (chamada por Raz de fraca), essa subscrita por autores defensores do positivismo includente como H. L .A. Hart, Matthew Kramer, Wilfrid Waluchow, Jules Coleman, dentre outros.

Diz Raz que a tese social fraca é equivocada pois não impede expressamente que considerações morais determinem, em algum grau, a identificação de determinados direitos e deveres jurídicos, isto é, "a diferença entre as teses sociais fraca e forte é que a forte insiste, enquanto a fraca não o faz, que a existência e o conteúdo de toda lei são completamente determinados por fontes sociais" [3].

Enunciado esse aspecto mais geral da teoria, e em razão do pouco espaço, agora focaremos em dois pontos centrais do positivismo de Raz: a sua visão sobre razões práticas e a tese da autoridade como serviço.

Segundo Raz, existem duas espécies de razões que guiam as vidas dos indivíduos: razões de primeira ordem e razões de segunda ordem. As primeiras representam quaisquer razões que o indivíduo tenha para agir em uma determinada situação, ao passo que as segundas são razões sobre razões, elas dizem respeito às razões de primeira ordem [4]. Um exemplo: o fato de eu gostar de cachorros é uma razão de primeira ordem para que eu adote um cachorro. Já o fato de eu ser alérgico a cachorros e ter decidido que quaisquer decisões relacionadas à adoção de animais devem ser tomadas levando em conta esse fato é uma razão de segunda ordem que impõe que eu não adote um cachorro.

Entre as diversas espécies de razões de segunda ordem, Raz destaca as razões exclusionárias, que são razões para não agir de acordo com determinadas razões — não todo tipo de razões de primeira ordem, mas apenas as que se aplicam ao caso por ela abrangido, ou seja, uma razão exclusionária exclui da deliberação as razões de primeira ordem que se aplicam ao caso e que com ela conflitam [5]. Dessa forma, em caso de conflito, as razões de segunda ordem prevalecem sobre as razões de primeira ordem.

Raz estabelece essa distinção para afirmar que o Direito age mediante razões de segunda ordem exclusionárias, no sentido de que independentemente das razões de primeira ordem que o indivíduo possui para agir, caso exista uma diretriz jurídica indicando o comportamento a ser adotado, cabe a esse indivíduo se conformar a ela. O autor exemplifica a questão imaginando a situação de um árbitro que foi chamado para solucionar uma controvérsia jurídica. Proferida a decisão do árbitro, as partes envolvidas na lide passam a possuir uma razão exclusionária para não agir com base nas razões de primeira ordem que se aplicam ao seu caso. Assim, ainda que não concordem com a decisão, não lhes é lícito realizar um novo equilíbrio das razões e agir com base nele, já que, como visto, as razões de segunda ordem prevalecem sobre as razões de primeira ordem [6].

Isso não quer dizer, é claro, que Raz professa aquilo que ficou conhecido na Filosofia do Direito como positivismo ideológico, isto é, necessidade de uma obediência incondicional ao Direito; muito pelo contrário. Como veremos a seguir, Raz somente acredita existir um dever moral de obediência ao Direito quando se trata ele de uma autoridade legítima.

Segundo Raz, existem duas espécies de autoridades práticas: autoridades de fato e autoridades legítimas. A autoridade de fato é aquela que alega ser uma autoridade legítima ou assim é vista por parcela relevante da população, ainda que não o seja [7]. Autoridade legítima, por sua vez, é aquela que satisfaz três requisitos que serão expostos na sequência. A partir dessa diferenciação, Raz afirma que que o Direito é necessariamente dotado de autoridade de fato [8], o que nos leva a três conclusões preliminares fundamentais: a) o Direito, seja ele dotado de autoridade legítima ou não, se trata de algo diferente de um mero sistema de poder baseado no uso ou na ameaça de uso da força; b) um sistema que não reivindica legitimidade ou não é aceito como legítimo pela população não pode ser considerado jurídico; c) um sistema jurídico pode não possuir autoridade legítima, ou não a possuir na extensão que alega.

Essa tese de que o Direito, para ser considerado como tal, deve ao menos reivindicar autoridade legítima, para Raz, é comprovada pela forma com que as diretrizes jurídicas são apresentadas pelas autoridades do sistema aos indivíduos. E isto porque caso o Direito (e os oficiais que o proclamam) não afirmasse(m) possuir legitimidade moral não haveria justificativa para dizermos que as normas jurídicas impõem deveres e obrigações aos indivíduos. Os cidadãos em geral não veriam como jurídico e vinculante um sistema de padrões de conduta que não contém uma afirmação de legitimidade moral ou lhes aparentam ser moralmente iníquos [9].

Para que uma autoridade seja legítima ela deve satisfazer três requisitos: a) tese da dependência, segundo a qual as diretivas dotadas de autoridade devem estar baseadas, dentre outros fatores, nas razões de primeira ordem que se aplicam aos indivíduos a que elas se destinam e ao caso que buscam regular; b) tese da preempção, que afirma que a diretiva dotada de autoridade substitui, no todo ou parcialmente, as razões de primeira ordem aplicáveis ao caso, cabendo ao sujeito agir de acordo com o estabelecido a diretiva ainda que com ela não concorde; c) tese da justificação normal, segundo a qual uma autoridade somente é legítima caso aqueles a ela submetidos tenham mais chances de agir corretamente caso sigam o equilíbrio das razões contido nas diretivas e abstenham de seguir o seu próprio julgamento [10].

Combinadas, essas três teses formam o que Raz denominou de concepção de autoridade como serviço. Serviço porque é o papel da autoridade fornecer aos indivíduos diretrizes a respeito do que deve ser feito nas mais variadas circunstâncias da vida em sociedade, mediando a relação entre eles e as razões que possuem para agir. Um bom exemplo é a regulação de trânsito: a autoridade, ao estabelecer de antemão as ações que devem ser tomadas pelos motoristas nas diversas situações que envolvem o trânsito de veículos, fornece um serviço essencial aos indivíduos, que estariam em constante perigo caso tivessem que decidir individualmente a cada cruzamento como agir. Satisfeitas as teses, portanto, é moralmente legítimo e racional que os indivíduos se submetam à autoridade, assumindo suas diretivas como sendo razões protegidas para ação [11].

Agora, se as condições para que uma autoridade seja legítima são condições morais, isso não quer dizer que o próprio Direito precisa se conformar à moralidade? Em outras palavras, como um sistema jurídico moralmente iníquo é incapaz de alegar de maneira justificável a sua legitimidade, não é o caso de se negar a ele o rótulo de Direito? A resposta é negativa. Como vimos, é da natureza do Direito apenas alegar possuir autoridade legítima, e não necessariamente possuí-la, de modo que um sistema que não satisfaz as três teses de autoridade legítima ainda pode ser considerado jurídico.

Com efeito, em uma perspectiva raziana, não podemos negar a um sistema imoral o selo de juridicidade caso os requisitos para a posse de autoridade de fato estejam satisfeitos, o que não quer dizer, porém, que em tais casos os indivíduos estarão moralmente obrigados a obedecê-lo, já que tal dever somente surge nos casos em que a legitimidade da autoridade é justificada, isto é, nos casos em que os requisitos morais para a posse de autoridade estão cumpridos [12].

Finalizando: a tese das fontes sociais não diz respeito à normatividade do Direito, mas tão somente à identificação das normas jurídicas. Reconhecer que dada norma é jurídica a partir da tese das fontes não implica necessariamente na obrigação dos indivíduos de segui-la. Pelo contrário. Sistematizando a teoria de Raz, temos que as normas jurídicas somente são capazes de demandar (moralmente) um cumprimento obrigatório por parte dos cidadãos caso a autoridade que a expediu seja legítima, isto é, caso ela satisfaça os requisitos morais para a posse de autoridade, o que nem sempre, o quase nunca acontece. Portanto, nada na teoria de Raz vai contra a afirmação de que, em certos casos, é possível reconhecer uma norma como jurídica e, ao mesmo tempo, sustentar que ela é moralmente injustificável e não deve ser aplicada pelas autoridades do sistema e/ou obedecidas pelos cidadãos.

Nessas poucas linhas, tentamos apresentar alguns pontos da teoria de Raz. Fica o convite à leitura do autor e compreensão de teses que muito dizem para nosso atual momento, em que o Direito está em crise e que diversos ataques lhe são dirigidos. Atribuir dignidade ao fenômeno jurídico e compreender o seu modo de ser é pressuposto para sairmos do labirinto em que estamos. E, nesse cenário, Raz fará muita falta!

[1] "[…] the existence and content of every law is fully determined by social sources." Em RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality. New York: Oxford University Press, 1979, p. 46.

[2] "[…] for identifying the content of the law and determining its existence depend exclusively on facts of human behavior capable of being described in value-neutral terms, and applied without resort to moral argument." Em RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality. New York: Oxford University Press, 1979, p. 39-40.

[3] "The difference between the weak and the strong social theses is that the strong one insists, whereas the weak one does not, that the existence and content of every law is fully determined by social sources." Em RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality. New York: Oxford University Press, 1979, p. 46.

[4] RAZ, Joseph. Practical reason and norms. New York: Oxford University Press, 1999, p. 15-16 e 39.

[5] RAZ, Joseph. O problema da autoridade: revisitando a concepção de autoridade como serviço. Tradução de Felipe Oliveira de Sousa. In.: Revista Brasileira de Filosofia. Ano 61, vol. 239, jul.-dez. 2012, p. 247.

[6] RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. New York: Oxford University Press, 1995, p. 212-213 e RAZ, Joseph. The morality of freedom. New York: Oxford University Press, 1986, p. 42.

[7] Existem dois principais requisitos que devem ser satisfeitos para uma autoridade ser uma autoridade de fato, mas eles não serão aqui expostos. Ver RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. New York: Oxford University Press, 1995, p. 218.

[8] RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. New York: Oxford University Press, 1995, p. 215.

[9] NEIVA. H. L. M. Introdução crítica ao positivismo jurídico exclusivo: a teoria do direito de Joseph Raz. Salvador: JusPODIVM, 2017, p. 111.

[10] RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. New York: Oxford University Press, 1995, p. 214.

[11] RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. New York: Oxford University Press, 1995, p. 214-215.

[12] RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. New York: Oxford University Press, 1995, p. 215.

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