Opinião

A "automutilação" e a (in)competência do Tribunal do Júri

Autor

  • Almir Santos Reis Junior

    é doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professor do Curso de Doutorado em Direito Público da Universidade Católica de Moçambique docente do curso de Mestrado em Direito Penal na Universidade Católica de Moçambique professor Adjunto TIDE do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) ex-presidente da Comissão de Advogados Criminalistas da Ordem dos Advogados do Brasil na subseção de Maringá.

4 de maio de 2022, 7h05

A Lei 13.968/19, nominada "pacote anticrime" trouxe a inclusão, no artigo 122, do Código Penal, da figura típica do induzimento, instigação e/ou auxílio à automutilação. Pela nova redação desse tipo penal quem: "Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça" terá a imposição de pena de reclusão que varia de seis meses a dois anos.

A reforma que deu origem a nova constituição típica do artigo 122, do Código Penal, desperta especial atenção dos operadores do direito, especialmente no que tange a determinação da competência para o processo e julgamento do delito correspondente, especificadamente, ao induzimento, instigação ou auxílio à automutilação. Isso porque, o artigo 74, §1º, do Código de Processo Penal, impõe que: "Compete ao Tribunal do Júri o julgamento dos crimes previstos nos artigos 121, §§1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do Código Penal, consumados ou tentados". Tal dispositivo embora pretérito à Carta da República, de 1988, com ela guardava perfeita harmonia, pelo fato de que ao dispor sobre a competência constitucional do Tribunal do Júri, seu artigo 5º, inciso XXXVIII, "d", determina ser de competência do júri o processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Até o advento da Lei 13.968/19, que deu nova redação ao artigo 122, do Código Penal, não havia relevante discussão sobre tal matéria, já que a doutrina sempre convergiu estarem englobados no âmbito do Tribunal do Júri os crimes (dolosos) de homicídio, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, infanticídio e aborto. Contudo, agora a realidade é outra, em razão da nova modulação típica.

Defender que em razão da interpretação literal dos dispositivos descritos acima, a competência para o processo e julgamento de ambas as modalidades descritas no artigo 122, do Código Penal, seja do Tribunal do Júri parece não ser a mais adequada, pois não corresponde ao mandado constitucional explícito e, portanto, não encontra arrimo no texto infraconstitucional subjetivo. Apesar desse tipo penal ser classificado, doutrinariamente, como tipo misto alternativo, onde a conjugação de mais de um núcleo, em ambas as modalidades, revela a prática de único crime, com elevação da pena na análise da culpabilidade do agente (artigo 59, caput, do Código Penal), o que se observa é a tutela de bens jurídicos díspares no mesmo molde penal. Consequentemente, pode-se afirmar que o legislador não observou a correta técnica legislativa e acabou por agasalhar dois bens jurídicos dessemelhantes (a vida e a integridade física  no artigo 122, do Código Penal), em um dispositivo com posição geográfica no capítulo I (Dos crimes contra a vida), do Título I (Dos crimes contra a pessoa), da Parte Especial. Em outras palavras, enquanto a primeira parte do dispositivo: "induzir ou instigar alguém a suicidar-se" (ou, ainda, auxiliar para prática de tal ato) tutela a vida, a segunda parte, constituída pela conduta de induzir ou instigar alguém "a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça" tem como bem jurídico a integridade física ou corporal e, por extensão, a saúde; fato que, por si só, afasta a competência do Tribunal do Júri. Aliás, tal interpretação coaduna com o §6º, do artigo 122, que dispõe: "Se o crime de que trata o §1º deste artigo resulta em lesão corporal de natureza gravíssima e é cometido contra menor de 14 anos ou contra quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime descrito no §2º do artigo 129 deste Código". Ora, se o agente responde por tal dispositivo, em razão da maior reprovabilidade das condutas descritas, afastando, assim, a competência do Tribunal do Júri, com muito mais acerto serão as condutas anteriores nele dispostas relacionadas à automutilação.

Nessa perspectiva, o processo e julgamento do crime de instigação, induzimento ou auxílio à automutilação é do juiz singular. Isso porque, a competência do Tribunal do Júri atualmente, embora mínima, é para o processo e julgamento, unicamente, dos crimes dolosos contra a vida  tentados ou consumados  e aqueles que lhes sejam conexos. É genuíno que por meio da interpretação literal do artigo 74, parágrafo 1º, poder-se concluir ser a competência do Tribunal do Júri. Contudo, por ser norma de direito material (artigo 122, Código Penal) deve ser interpretada no bojo do artigo 5º, inciso XXXVIII, "d", da Carta da República, que estabelece a competência mínima do Tribunal do Júri para o julgamento de crimes dolosos contra a vida. Não se discute que a competência do júri é mínima e que, por isso, nada obsta que a norma infraconstitucional elasteça o rol de crimes de sua competência. Contudo, não faria o legislador a modificação de competência por meio de norma de direito material, mas sim, de direito processual penal, ou seja, recorreria a reforma legislativa com intuito de dar nova redação ao parágrafo primeiro do artigo 74, do Código de Processo Penal, com objetivo de incluir novas figuras típicas.

Por outro lado, pode-se extrair nesse debate que houve absoluta ausência de técnica legislativa na composição das elementares desse tipo penal, pois o bem jurídico primário tutelado, referente a automutilação, jamais será a vida, porquanto compatibiliza com a tutela ao bem jurídico "integridade física". Ademais, ainda que o agente tenha o dolo de induzir alguém a se automutilar e por meio da execução dessa tarefa a vítima venha morrer (preterdoloso), o bem jurídico primário continuará sendo a integridade física e, secundariamente, a vida; fato que, per si, afasta a competência do júri [1].

A pretensão do legislador em incluir a instigação, induzimento e auxílio à automutilação como crime, na legislação brasileira, deveria ter sido feita de forma adequada, observando a técnica legislativa, especialmente em um campo tão relevante como o direito penal, que prima pela legalidade, incluindo as elementares da automutilação no artigo 129, do Código Penal, por meio da inclusão de novo parágrafo nesse dispositivo [2] ou, então, como delito autônomo (exemplo 129-A, Código Penal).

Aqueles que defendem ser de competência do júri, possivelmente o fazem por meio de interpretação literal dos artigos 74, parágrafo primeiro, do Código de Processo Penal e 122, do Código Penal. Entretanto, a melhor interpretação para excluir a competência do júri é a sistemática, que permite analisar a norma jurídica não apenas em sua singularidade, mas em sincronia com as demais normas que integram a ordem jurídica, com escopo de garantir a coerência e unidade do sistema.

Sob tais argumentos, pode-se concluir que a figura típica do crime de induzimento, instigação e/ou auxílio a automutilação, descrita no caput, do artigo 122, é de competência do Juizado Especial Criminal (artigo 61, da Lei 9.099/95), tendo esta, assim como a do júri, natureza constitucional, dada sua previsão no artigo 98, inciso I, da Carta da República.


[1] Não obstante, é importante ressaltar que por ser um tipo misto alternativo, é possível que o auxílio a automutilação, por exemplo, seja julgado pelo Tribunal do Júri, quando vier acompanhado da primeira figura típica (exemplo auxílio ao suicídio), ainda que, cronologicamente, seja esta praticada, sequencialmente, àquela, dada a força atrativa do Tribunal do Júri para o julgamento da primeira figura típica.

[2] A título de sugestão, poderia ser criado o §14, ao artigo 129, com a seguinte redação: Se a lesão corporal derivar de induzimento, instigação ou auxílio prestado a alguém para a prática de automutilação a pena será aquela correspondente a lesão praticada diminuída em até metade.

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    é doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do curso de doutorado em Direito Público da Universidade Católica de Moçambique, docente do curso de mestrado em Direito Penal na Universidade Católica de Moçambique, professor adjunto Tide do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e advogado.

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