Opinião

Recurso na fase de liquidação da sentença e a fungibilidade recursal

Autor

  • Luiz Roberto Hijo Sampietro

    é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD) bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT) advogado professor de Processo Civil no Núcleo de Direito à saúde da ESA/OAB-SP e em cursos de pós-graduação lato sensu.

    View all posts

25 de abril de 2022, 20h22

No intuito de prestar tutela jurisdicional completa na fase de conhecimento, a regra do artigo 491 do Código de Processo Civil estabelece a obrigatoriedade de a sentença delimitar a certeza (extensão da obrigação), a liquidez (índice de correção monetária e taxa de juros) e a exigibilidade (termos iniciais da correção monetária e dos juros) do título executivo judicial que retrata obrigação de pagar quantia. Porém, essa regra comporta dois temperamentos: 1) quando não houver a possibilidade de se aferir o montante devido de modo definitivo (inciso I) e 2) se a apuração do valor devido depender de produção de prova excessivamente dispendiosa ou de realização demorada, conforme reconhecido na sentença proferida na fase de conhecimento (inciso II).

Diante da ocorrência de quaisquer das hipóteses previstas nos incisos do artigo 491 do CPC, aquele que se sagrou vencedor na fase de conhecimento deverá inaugurar o módulo processual voltado à liquidação do julgado, previsto nos artigos 509 a 512 do mesmo Código. Ainda que porventura a sentença liquidanda tenha registrado que a fase processual de quantificação do crédito deva ser feita pelo procedimento comum ou por arbitramento, o verbete 344 da súmula da jurisprudência predominante do Superior Tribunal de Justiça sinaliza que "[a] liquidação por forma diversa do estabelecido na sentença não ofende a coisa julgada".

O mérito da fase de liquidação da sentença é a aferição da expressão econômica do julgado, deixando-o escorreito para a fase seguinte do processo, que é o cumprimento da sentença. Em decorrência das particularidades do direito material, o procedimento de liquidação da sentença comporta cisão do mérito: é possível que os capítulos liquidandos sejam julgados em instantes distintos do arco procedimental (CPC, artigo 356, por extensão). Assim, o capítulo inicialmente liquidado poderá sofrer impugnação pelo recurso de agravo de instrumento (CPC, artigo 256, §5º). O outro capítulo, responsável pela liquidação do crédito até então remanescente, desafiará o recurso de apelação, na medida em que se amolda à regra do §1º do artigo 203 do Código de Processo Civil.

Como o regramento da liquidação da sentença (CPC, artigos 9 a 512) é lacunoso, nada dispondo sobre quais são os recursos cabíveis nesse módulo processual, o intérprete, também em função do prescrito no parágrafo único do artigo 1.015 do Código de Processo Civil [1], pode incidir no equívoco de que qualquer decisão proferida na fase de liquidação da sentença, seja ela de liquidação parcial, final ou terminativa, comporte a interposição do agravo de instrumento [2].

O referido engano é absolutamente compreensível, uma vez que os contextos que se apresentam na advocacia contenciosa são sortidos, variados e, muita vez, de extrema complexidade, provocando no intérprete a situação de incerteza e de dúvida sobre qual a espécie recursal cabível contra os pronunciamentos que liquidam o julgado [3]. Para superar as agruras dessas verdadeiras situações nebulosas que desafiam a compreensão dos litigantes e evitar que o exercício da advocacia contenciosa cível se torne uma verdadeira armadilha para as partes, a doutrina sugere a incidência do princípio da fungibilidade recursal. Nesse sentido se pronunciam dois dos maiores processualistas civis da atualidade: "[n]ecessário que se volte a repisar, correndo-se o risco da repetitividade: pressuposto da incidência deste princípio é a existência de uma zona cinzenta. Esta zona cinzenta é significativa da existência de opiniões divergentes manifestadas no plano doutrinário e jurisprudencial conflitante no país, (não importando, para fins de incidência do princípio da fungibilidade, que haja unanimidade a respeito do tema no Tribunal) sobre qual seja o veículo correto para formular determinado pedido ou pretensão perante o Poder Judiciário. Obviamente, esta situação não tem lugar exclusivamente no plano dos recursos. E razão genuinamente jurídica inexiste para que não se faça incidir em casos fora desta esfera o princípio da fungibilidade" [4]. "O princípio da fungibilidade recursal deriva diretamente de outro princípio infraconstitucional do direito processual civil, o princípio da instrumentalidade das formas. Trata-se, destarte, de princípio implícito, diferentemente do que se dava ao tempo do CPC de 1939 (…). O princípio justifica-se no sistema processual civil sempre que a correlação entre as decisões jurisdicionais e o recurso cabível, prescrita pelo legislador, gerar algum tipo de dúvida no caso concreto. Os usos e as aplicações do CPC de 2015 já fizeram aparecer fundadas dúvidas quanto à natureza jurídica de certas decisões e, consequentemente, quanto ao recurso delas cabível. É o que basta para justificar a incidência do princípio da fungibilidade para franquear a admissão de um recurso no lugar do outro, independentemente de qualquer consideração ou reparo de ordem formal. A existência de fundada dúvida sobre o recurso cabível conduz a uma necessária flexibilização do sistema recursal, para admitir, dentre as alternativas que dão ensejo à formação da dúvida, o uso de quaisquer dos recursos abrangidos pela dúvida. A forma assumida pelo inconformismo (o tipo de recurso efetivamente interposto, destarte) passa a ser menos importante que o desejo inequívoco de recorrer, de exteriorização de inconformismo com a decisão tal qual proferida" [5].

Durante a vigência do CPC/73, havia dispositivo legal (artigo 475-H) que indicava o agravo de instrumento como o recurso apropriado para combater as decisões proferidas em liquidação da sentença. No entanto, esse preceptivo disciplinava as situações corriqueiras da liquidação. Foi justamente por isso que o STJ, cioso da complexidade do dia a dia da advocacia contenciosa, averbou que "se o ato judicial proferido no âmbito do incidente de liquidação extingue o próprio processo, determinando inclusive o arquivamento dos autos, sua natureza já não será de simples decisão interlocutória que 'decide a liquidação', mas de verdadeira sentença, contra a qual o recurso cabível será o de apelação" [6]. Como já dito, entretanto, o CPC/15 se omitiu a respeito do assunto.

O silêncio do Código sobre qual é o recurso a ser interposto contra as decisões não interlocutórias proferidas na liquidação da sentença também levou o TJSP a prestigiar a incidência da fungibilidade recursal como meio de resolver o défice legislativo: "CPC vigente que não é claro quanto ao recurso cabível, não tendo repetido a previsão do artigo 475-H do CPC/73. Previsão do artigo 1.015, parágrafo único, insuficiente, por não ser a decisão terminativa da fase de liquidação, em rigor técnico, decisão interlocutória. Necessidade de adequação desse dispositivo legal aos artigos 203, §1º, e 509, II, do mesmo CPC. Situação quando menos propensa a suscitar dúvida relevante, em termos a justificar a aplicação da regra de fungibilidade" [7].

Assim, entendimentos apriorísticos sobre o cabimento de agravo de instrumento ou apelação contra os provimentos exarados em liquidação da sentença podem causar lesão enorme ao litigante desfavorecido. Demais, o CPC em vigência adotou como regras fundamentais a primazia do julgamento do mérito [8] e a cooperação, incidentes na fase de conhecimento e na fase recursal do processo [9]. Por esses motivos, é necessário que o julgador tenha postura cautelosa, e examine se o pronunciamento decidirá uma ou mais questões atinentes as atividades de liquidação ou se ele encerrará o referido procedimento. Em caso de dúvida, deve vir à balha o princípio da fungibilidade recursal, evitando-se a transformação do processo civil em indesejado jogo de azar.


[1] "Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação da sentença (…)".

[2] O próprio enunciado nº 145, aprovado na II Jornada de Direito Processual Civil do Conselho de Justiça Federal, incidiu nesse engano ao pontificar que "[o] recurso cabível contra a decisão que julga a liquidação da sentença é o Agravo de Instrumento". Alguns precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo também caminham nesse sentido. A respeito, ver, por exemplo, a apelação cível n 0008065-48.2008.8.26.0666; apelação nº 0013119-87.2021.8.26.0100; apelação nº 0001731-03.2020.8.26.0011.

[3] Também existe acórdão do TJSP que, diante "da extinção do incidente de liquidação por arbitramento com a consequente remessa dos autos ao arquivo", considerou o pronunciamento como sentença e sustentou que a "hipótese em que o recurso cabível é a apelação e não o agravo de instrumento", configurando-se "erro grosseiro" a interposição do agravo (agravo de instrumento n. 2064567-40.2022.8.26.0000).

[4] ALVIM, Teresa Arruda. O óbvio que não se vê: a nova forma do princípio da fungibilidade. Revista de processo nº 137, jul. 2006, p. 134-138, versão eletrônica.

[5] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Curso sistematizado de direito processual civil, v. 2. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 548.

[6] Excerto do acórdão proferido no AgInt no AREsp 1054164/RJ, relator ministro Mauro Campbell Marques, 2ª T., j. 15.8.2017.

[7] Trecho do acórdão proferido no Apelação Cível n. 0031205-14.2018.8.26.0100, relator desembargador Fabio Tabosa, 29ª Câmara de Direito Privado, j. 24.3.2021. Na mesma linha de raciocínio, ver também os seguintes julgados do TJSP: Agravo de Instrumento n. 2121085-84.2021.8.26.0000, relator desembargador Clara Maria Araújo Xavier, 8ª Câmara de Direito Privado, j. 17.9.2021, Agravo de Instrumento n. 2027216-67.2021.8.26.0000, relator desembargador Alexandre Marcondes, 6ª Câmara de Direito Privado, j. 5.8.2021, Agravo de Instrumento nº 2124731-05.2021.8.26.0000, relator desembargador Alexandre Marcondes, 6ª Câmara de Direito Privado, j. 29.7.2021, Apelação Cível n. 1001263-09.2016.8.26.0481, relator desembargador Enio Zuliani, 4ª Câmara de Direito Privado, j. 23.11.2019.

[8] A respeito, confira-se ARAÚJO, Luciano Vianna. A liquidação do título judicial. Curitiba: Ed. Direito Contemporâneo, 2020, p. 239.

[9] O Fórum Permanente de Processualistas Civis consagra a primazia do mérito no sistema processual civil brasileiro e a imperiosidade da colaboração, nos termos dos Enunciados de n. 278, 372 e 373: "Enunciado 278: o CPC adota como princípio a sanabilidade dos atos processuais defeituosos". "Enunciado 372: o artigo 4º tem aplicação em todas as fases e em todos os tipos de procedimento, inclusive em incidentes processuais e na instância recursal, impondo ao órgão jurisdicional viabilizar o saneamento de vícios para examinar o mérito, sempre que seja possível a sua correção". "Enunciado 373: as partes devem cooperar entre si; devem atuar com ética e lealdade, agindo de modo a evitar a ocorrência de vícios que extingam o processo sem resolução do mérito e cumprindo com deveres mútuos de esclarecimento e transparência".

Autores

  • é advogado, doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD) e professor de Processo Civil em cursos de pós-graduação lato sensu.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!