Direito Civil Atual

Direito de não-nascer: entendendo o acórdão Perruche

Autor

  • Daniel Amaral Carnaúba

    é professor adjunto da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

2 de maio de 2022, 10h07

Algumas decisões judiciais entram para os anais da ciência jurídica menos pela regra de Direito que reconhecem e mais pela comoção social que provocam. O fenômeno é comum nos julgamentos de crimes bárbaros ou de importantes figuras políticas. Mas é raro que disputas na esfera civil atraiam equivalente atenção da opinião pública. O acórdão proferido em 17 de novembro de 2000 pela Assembleia Plena da Corte de Cassação francesa é uma franca exceção a essa regra. Nenhum outro litígio relativo à responsabilidade civil provocou debates tão apaixonados ou ganhou tanto destaque na mídia, francesa e internacional, quanto o denominado "caso Perruche"[1]. Passados mais de 20 anos desde sua prolação, o julgado ainda está envolto em infindável clima de polêmica e incompreensão[2].

ConJur
O acórdão versava sobre um típico litígio que, nos países de língua inglesa, é conhecido como wrongful life claim. Trata-se de ações reparatórias ajuizadas por crianças nascidas com deficiência congênita, geralmente em face de um médico ou de uma instituição de saúde, em que os autores pretendem reparação dos danos decorrentes de seu estado de saúde debilitado. O que torna as ações de wrongful life peculiares é a falha imputada ao réu: o médico ou a instituição são acusados de terem praticado um erro que permitiu que a criança com deficiência, autora da ação, nascesse. Normalmente, esse erro consiste no fato de que o médico, por sua negligência, impediu que a mãe da criança com deficiência realizasse um aborto voluntário e interrompesse a gravidez. É por essa razão que as ações de wrongful life são mais comuns em países em que o aborto voluntário é legalizado.

É exatamente o que ocorreu no caso Perruche. Em 10 de maio 1982, a sra. Perruche, então no início de sua gravidez, apresentou erupções cutâneas associadas a febre e inchaço dos gânglios; um quadro indicativo de infecção por rubéola. O problema é que a rubéola, no mais das vezes inofensiva para adultos e crianças, pode implicar graves malformações fetais se contraída pela mãe no começo da gestação.

Foi por esse motivo que a sra. Perruche se submeteu a um exame de sangue para verificar a presença da doença, tendo manifestado seu desejo de interromper a gravidez, caso a suspeita de rubéola se confirmasse. Em razão de uma falha conjunta, cometida tanto pelo médico que a atendeu, quanto pelo laboratório que realizou o exame, a sra. Perruche foi erroneamente assegurada de que não estava com rubéola. Eis que, meses mais tarde, veio ao mundo Nicolas Perruche, uma criança com graves problemas de saúde causados pela rubéola de sua mãe. Nicolas era surdo, quase completamente cego, e sofria de cardiopatia e problemas neurológicos. Sua condição de saúde extremamente debilitada exigiria cuidados médicos intensos durante toda sua vida.

Foi então que a família Perruche decidiu ajuizar uma ação reparatória em face do médico e do laboratório responsáveis erro de diagnóstico. O problema é que essa ação foi proposta não apenas em nome do casal Perruche, mas também do próprio Nicolas, que pretendia reparação em razão dos danos à sua saúde decorrentes da doença. Depois de um longo processo, que percorreu diversos tribunais da França, a Corte de Cassação, no fatídico 17 de novembro de 2000, tomou decisão definitiva e acolheu o pedido de Nicolas.

Corte reconheceu um "direito de não-nascer"?
Desde sua prolação, a decisão Perruche tem sido submetida às mais severas críticas. A mais frequente entre elas é a de que, na decisão, a Corte de Cassação teria supostamente afirmado a existência de um "direito de não-nascer" em favor das pessoas com deficiência; que, no entender da Corte, a vida de certas pessoas, como Nicolas, seria tão miserável, tão dolorosa, que não valeria a pena de ser vivida, a tal ponto que essas pessoas fariam jus à indenização pelo simples fato de terem nascido.

Assim, para seus críticos, o julgado Perruche teria adotado uma fundamentação evidentemente discriminatória e que violaria a dignidade humana, em razão de sua forte conotação capacitista. Esse horror à decisão Perruche acabou por comover a opinião pública francesa e, poucos anos mais tarde, levou à promulgação de um dispositivo legal destinado a impedir a reparação nesse tipo de situação apelidado, de forma bastante ilustrativa, de "Lei Anti-Perruche"[3].

Ainda que a decisão Perruche seja, de fato, bastante contestável, essas críticas incorrem em uma simplificação um tanto injusta dos propósitos da Corte de Cassação. A leitura do acórdão Perruche, de fundamentação, aliás, bastante curta, é essencial para a compreensão dos contornos e do contexto da decisão:

"Considerando […] que o julgado recorrido, proferido pela Corte de reenvio, afirmou que ‘o menino Nicolas Perruche não sofreu um prejuízo indenizável que tenha relação causal com as falhas cometidas [pelo médico e pelo laboratório]’ sob o fundamento de que as sequelas que ele sofreu foram causadas somente pela rubéola transmitida por sua mãe e não por essas falhas, e que ele não poderia se valer da decisão de seus pais de interromper a gravidez.
Considerando, todavia, que, uma vez que as falhas cometidas pelo médico e pelo laboratório na execução dos contratos celebrados com a sra. Perruche impediram-na de exercer sua escolha de interromper sua gravidez, a fim de evitar o nascimento de um filho com deficiência, este último pode demandar a reparação do prejuízo resultante desta deficiência e causado pelas falhas constatadas”[4].

Nota-se que não há, no texto de decisão, qualquer menção expressa a um suposto "direito de não-nascer" ou à ideia de que a vida de certas pessoas com deficiência não merece ser vivida. O que a Corte de Cassação de fato afirmou é que o erro de diagnóstico teria "causado" os danos decorrentes da deficiência de Nicolas Perruche. E isso nos leva à verdadeira origem da controvérsia: o fato de que "Perruchistas" e "Anti-Perruchistas" enxergam as ações de wrongful life sob perspectivas bastante distintas.

Direito de não-nascer vs. lesão à saúde
Um ponto importante a ser destacado é que, para maioria dos defensores das ações de wrongful life, o dever de indenizar a criança com deficiência não decorre da suposta violação ao seu direito de não-nascer. Essa corrente tende a analisar a questão como um problema de lesão à saúde: ao impedir que a gestante realizasse o aborto, o responsável teria dado causa à deficiência do filho. Tanto assim que o prejuízo a ser indenizado não é a vida com deficiência, mas as consequências patrimoniais e extrapatrimoniais da doença. Na verdade, a expressão "direito de não-nascer" é geralmente empregada por aqueles que se opõem às ações de wrongful life, como argumento ad absurdum contra a indenização.

Tendo isso por base, é possível compreender os motivos que levaram a Corte de Cassação a acolher o pedido reparatório: por meio da indenização, o tribunal tentava garantir que o jovem Perruche teria condições financeiras de arcar com os gastos de saúde que sua doença exigia os quais, diga-se, eram bastante altos.

Essa preocupação da Corte de Cassação é mais um exemplo da importância que o Direito francês atribui à reparação dos danos corporais. Ao longo do século 20, a França desenvolveu um amplo sistema de socialização das lesões à integridade física, calcado na imposição de seguros obrigatórios de responsabilidade civil, na criação de fundos de indenização às vítimas de lesões corporais e no desenvolvimento de regimes jurídicos especiais para regular os acidentes corporais mais comuns.

A proteção das vítimas de danos corporais é, nesse sentido, o principal foco da responsabilidade civil francesa atual; uma preocupação, aliás, plenamente compreensível. Os acidentes corporais tendem a provocar efeitos devastadores na vida do atingido. O infortúnio muitas vezes deixa sequelas na vítima que comprometem sua capacidade para realizar tarefas cotidianas ou mesmo para trabalhar, privando-a, assim, de seu sustento. É também comum que a vítima precise incorrer, durante toda a sua vida, em gastos vultosos com serviços médicos e de assistência, medicamentos e equipamentos de acessibilidade. A indenização ampla e facilitada foi uma forma encontrada pela responsabilidade civil francesa para garantir que essas novas necessidades da vítima serão supridas e que ela terá uma vida digna, a despeito do acidente.

Essa perspectiva assecuratória claramente influenciou o julgado Perruche. Nesse sentido, é importante notar que a legislação francesa impõe um sistema de seguros obrigatórios de responsabilidade civil aos médicos e demais profissionais da saúde. Com isso, cria-se uma rede de proteção aos pacientes, que terão a garantia de indenização em casos de erros cometidos durante o tratamento. De outro lado, esse sistema de seguros obrigatórios permitiu que jurisprudência francesa expandisse a passos largos hipóteses de responsabilidade médica. Afinal, é muito mais reconfortante conceder uma indenização quando se sabe que quem arcará com o valor da condenação será, não o médico, pessoa natural, mas uma seguradora.

Eis, então, o verdadeiro dilema enfrentado pela Corte de Cassação no julgado Perruche: decidir se o nascimento de uma criança com deficiência, ocorrido após um erro médico que impediu sua mãe de realizar um aborto, poderia ou não ser qualificado como um acidente corporal. A Corte entendeu pela afirmativa, abrindo a Nicolas Perruche as portas do sistema de seguros de responsabilidade civil criado em favor dos pacientes.

O acórdão Perruche e os limites da responsabilidade civil
Fica claro, portanto, que a Corte de Cassação nunca teve a intenção de afirmar que certas vidas não merecem ser vividas ou que existiria um suposto "direito de não nascer" em favor das pessoas com deficiência. Seu real propósito foi o de inserir Nicolas no sistema de proteção aos acidentes corporais, de modo a garantir sua vivência digna. Contudo, é inegável que, ao proceder dessa forma, a Corte extrapolou os limites da responsabilidade civil e incorreu em duas inconsistências.

A primeira delas diz respeito à causalidade. Um problema em se afirmar que o dano a ser reparado é a doença de Nicolas reside no fato de que essa condição de saúde não foi provocada pelo médico ou pelo laboratório. A deficiência é congênita e a criança não poderia vir ao mundo sem ela. O erro imputável aos responsáveis apenas permitiu que essa pessoa de saúde inevitavelmente debilitada pudesse nascer, o que, por óbvio, não é o mesmo que dizer que esse erro causou a debilidade.

Os autores favoráveis ao acórdão Perruche geralmente tentam resolver esse problema recorrendo à teoria causal mais ampla, da equivalência de condições: o médico e o laboratório teriam causado a doença da criança pois, não tivessem cometido o erro, essa doença não existiria. Mas, mesmo quanto a esse aspecto, a tese nos parece fruto de um evidente verbalismo. 

Nos termos da teoria da equivalência de condições, um evento só poderá ser considerado "causa" de um determinado dano quando a supressão daquele evento teria evitado a produção deste dano. Ora, não é o que ocorre nos casos de wrongful life, tal como o caso Perruche. Uma conduta proativa do médico ou do laboratório não teria evitado o dano à saúde de Nicolas. Ele de modo algum estaria curado, caso tivesse sido abortado, mas, ao contrário, o resultado seria ainda mais devastador para a sua existência. Do mesmo modo, é inegável que a tendinite em meu polegar esquerdo deixará de existir caso eu tome a decisão esdrúxula de amputar minha própria mão. Mas disto não decorre que, se eu desistir da ideia da amputação, terei dado causa à minha doença. Por mais ampla que seja, a teoria da equivalência de condições jamais pretendeu sufragar a absurda conclusão de que um mal pode ser validamente evitado provocando-se um mal ainda maior.

Há ainda outra dificuldade técnica em se afirmar que o dano a ser reparado no caso Perruche é a doença da criança. Ela reside na própria identificação da deficiência como um dano. De fato, a vítima de um acidente corporal pode alegar que a deficiência é um prejuízo na medida em que esse fato representa para ela um estado de depreciação: ela não tinha deficiência e foi relegada a essa situação em razão do acidente. Já os casos de wrongful life não guardam paralelo com esse tipo situação. Neles, a criança jamais poderia nascer sem a enfermidade e a falha imputada ao médico em nada alterou essa inevitável conclusão. Ao indenizá-la, estaríamos devolvendo a ela algo que nunca lhe foi verdadeiramente tolhido.

O problema do julgado Perruche é, portanto, um problema da adequação entre meios e fins; entre os limites da responsabilidade civil e as boas intenções da Corte de Cassação. Para tentar inserir Nicolas no sistema de seguros de responsabilidade civil, os magistrados distorceram um litígio que envolvia apenas a lesão ao direito da mãe de realizar um aborto e transformaram-no num caso de lesão à saúde do filho. E esse artifício trouxe contradições insuperáveis. Uma criança que não foi abortada não se encontra em situação equivalente à vítima de um acidente corporal.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[1] Para um estudo mais detalhado das ações de wrongful life e do acórdão Perruche, cf. CARNAÚBA, Daniel Amaral. Responsabilidade civil e nascimento indesejado: fundamentos para a reparação da falha de métodos contraceptivos. Rio de Janeiro: Forense-Método, 2021.

[2] Para um vídeo sobre o assunto: https://www.youtube.com/watch?v=lij082544WM&t=70s.

[3] Tratava-se do art. 1º da Lei 2002-303, relativa ao “direito dos enfermos e à qualidade do sistema de saúde”. Atualmente, esse dispositivo está inserido no art. L114-5 do Código da Ação Social e das Famílias.

[4] Assem. Plén., 17 nov. 2000, n. pourvoir 99-13.701, bull. civ., n° 9. Para a íntegra do acórdão, cf.: aqui.

Autores

  • é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

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