Ambiente Jurídico

Regularização de desmatamentos sem licença

Autor

  • Andrea Vulcanis

    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU) advogada mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR professora de Direito Ambiental pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado.

2 de maio de 2022, 10h20

O desmatamento ilegal realizado no Brasil na última década, assim considerado todo aquele efetivado em desacordo com a Lei 12.651, de 25 de maio de 2012, ou seja, aquele feito sem autorização do órgão ambiental competente, suscita um tema que tem passado ao largo da discussão jurídica nacional. A questão posta é: o ordenamento jurídico posto autoriza a regularização, a posteriori, do desmatamento feito sem licença?  

Jos Barlow
Jos Barlow

A lei geral que trata da proteção da vegetação nativa brasileira, supra citada, dispõe sobre as medidas a serem adotadas em caso de desmatamento sem licença, num único dispositivo, nos seguintes termos:

Art. 51. O órgão ambiental competente, ao tomar conhecimento do desmatamento em desacordo com o disposto nesta Lei, deverá embargar a obra ou atividade que deu causa ao uso alternativo do solo, como medida administrativa voltada a impedir a continuidade do dano ambiental, propiciar a regeneração do meio ambiente e dar viabilidade à recuperação da área degradada.
§ 1º O embargo restringe-se aos locais onde efetivamente ocorreu o desmatamento ilegal, não alcançando as atividades de subsistência ou as demais atividades realizadas no imóvel não relacionadas com a infração.
§ 2º O órgão ambiental responsável deverá disponibilizar publicamente as informações sobre o imóvel embargado, inclusive por meio da rede mundial de computadores, resguardados os dados protegidos por legislação específica, caracterizando o exato local da área embargada e informando em que estágio se encontra o respectivo procedimento administrativo.
§ 3º A pedido do interessado, o órgão ambiental responsável emitirá certidão em que conste a atividade, a obra e a parte da área do imóvel que são objetos do embargo, conforme o caso.

Como se vê a lei determina como consequência ao desmatamento ilegal, a ação do poder público dirigida ao embargo da obra ou atividade implantado no imóvel onde a vegetação nativa foi convertida para o uso alternativo do solo.    

Sabe-se que o embargo de atividades irregulares está previsto como sanção administrativa ambiental no âmbito da Lei 9.605/98 e exige, para a sua aplicação, o devido processo legal que se inicia com a lavratura do auto de infração, obedecidas regras prescricionais.

Importante destacar que a lei confere dois objetivos a serem atendidos por meio do embargo da área desmatada ilegalmente consubstanciados em eventos em cadeia, quais sejam: a cessação do dano ambiental provocado com o desmatamento, ao qual se segue, à recuperação da área degradada.

Nada mais trata a lei florestal brasileira sobre o tema, remetendo, portanto, à interpretação sistemática do arcabouço legal para que tenhamos resolvida a questão sobre a possibilidade jurídica ou não de regularização desses passivos ambientais.

Dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) constantes do relatório intitulado "Avaliação Global de Recursos Florestais (FRA 2020)" apontam que o Brasil perdeu 1,5 mil km2 de floresta a cada ano na última década (2010-2020).

Nesses dados de desmatamento globais, descontando as áreas que receberam autorização dos órgãos ambientais competentes, milhares de hectares efetivamente não receberam avaliação de impactos e autorização dos órgãos ambientais como condição prévia para à conversão do uso do solo.

Desse montante de áreas desmatadas ilegalmente encontram-se áreas de especial preservação como áreas de preservação permanente, reservas legais, áreas indígenas, áreas em unidades de conservação, destinadas em geral para a preservação e não passíveis de desmatamento, mas também, áreas em que o desmatamento é possível, para as quais faltou a devida autorização do órgão ambiental competente.

Os motivos para a não obtenção das devidas autorizações ambientais, em áreas passíveis de desmatamento são vários, podendo-se citar, desde a falta de titularidade e regularização fundiária dos imóveis, dificuldades para a obtenção das licenças, envolvendo custos de estudos e prazos de análises, até o modelo extrativista que envolve historicamente a ocupação do território nacional.

A maioria das áreas de desmatamento ilegal são transformadas em pastagens, a baixo custo de formação e tem como objetivo central a exploração madeireira e sobretudo a grilagem de terras, dada para a fixação da posse, de fato, da terra.

Nos deteremos, para os objetivos da reflexão ora posta, a tratar exclusivamente das áreas em terras de domínio privado não caracterizadas por áreas de proteção especial, portanto, aquelas que, em tese, são consideradas áreas passíveis de desmatamento, licenciáveis.

Os números de hectares dessas terras privadas, passíveis de autorização de desmatamento, porém efetivados sem licença, não são claros mas representam, sem qualquer sombra de dúvida, milhares de hectares, portanto, que deveriam, nos termos da lei, terem sido alvo de fiscalização, autuação e embargo. Uma parte dessas terras efetivamente se submeteu ao procedimento fiscalizatório, outras não. Algumas respeitaram embargos, outras não. Não há dados disponíveis totalizando esses números para o território nacional.

Fato é que, do ponto de vista jurídico, a legislação que trata das infrações, notadamente o Decreto federal 6.514/08, que dá base a praticamente todas as legislações subnacionais sobre o tema das infrações administrativas ambientais, estabelece em seu artigo 15 B que: "A cessação das penalidades de suspensão e embargo dependerá de decisão da autoridade ambiental após a apresentação, por parte do autuado, de documentação que regularize a obra ou atividade".

A saber, se as obras ou atividades que deram causa ao uso alternativo do solo são passíveis de regularização. Aponte-se que, a par das questões ambientais envolvidas, são milhares de hectares de terra sobre os quais há fortes interesses econômicos envolvidos na regularização de seu uso.

Silente a legislação nacional, as legislações estaduais passaram a regulamentar o tema. É o caso, para exemplificar, do artigo 12 do Decreto 47.749/19 do Estado de Minas Gerais e dos arts. 13, 14 e 18 da Lei 21.231/22, do Estado de Goiás.

Em ambos os casos, admite-se a emissão de autorizações corretivas, obedecidos critérios técnicos e legais estabelecidos na legislação de referência e, nas duas legislações em comento, há uma vinculação a apuração irrestrita da infração ambiental.

Desta feita, no caso dos exemplos citados, a licença corretiva expedida pelo órgão ambiental seria suficiente para levantar os embargos das áreas desmatadas irregularmente, permitindo sua exploração econômica, independentemente, portanto, da sua recuperação ambiental.

O procedimento de licenciamento corretivo é usualmente adotado no Brasil, apesar de não estar previsto em nenhuma norma de caráter nacional, salvo, de forma dispersa, para algumas tipologias de empreendimentos, como é o caso, por exemplo, de ferrovias, nos termos da Resolução nº 479/17 do Conselho Nacional de Meio Ambiente.

Não obstante, a licença de caráter corretivo parece consonante com o ordenamento jurídico nacional e se aplica às hipóteses em que empreendimentos ou atividades passíveis de licença ambiental tenham sido implantados sem a avaliação de impactos ambientais que decorre do procedimento licenciatório.

De fato, nas hipóteses em que o empreendimento ou atividade, apesar de não licenciado previamente, apresente condições ambientais de adequado funcionamento, é razoável que se submeta a procedimento de avaliação a posteriori e obtenha as necessárias autorizações ambientais, não obstante e independentemente da caracterização de infração administrativa e crime ambientais, previstos na Lei 9.605/98.

É dizer que, apesar da licença corretiva, a prática de instalar ou operar atividade sem licença constitui infração e crime ambiental que se consuma, na hipótese, com o desmatamento sem licença, não se podendo admitir a tese de que a licença corretiva possa ser considerada uma situação excludente de culpabilidade ou de ilicitude, até porque somente será concedida após a consumação da infração e do crime.

Esse procedimento corretivo tem suas bases legais lançadas no art. 79-A da Lei 9.605/98 que admite que os órgãos ambientais celebrem termos de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis por empreendimentos potencial ou efetivamente poluidores, com o objetivo de promover as necessárias correções de suas atividades.

Sendo assim, nas hipóteses em que o desmatamento sem licença ocorreu em áreas passíveis de desmatamento, entende-se que é admissível o procedimento corretivo que vise atender as exigências legais, documentais e técnicas, suprindo, de forma o mais integral possível, os pré-requisitos estabelecidos para a obtenção da licença, ab inicio.

Há que se observar que, nessas hipóteses, não será possível a avaliação integral do impacto ambiental, vez que já causado. Não há, portanto, como antever as consequências de impactos, de forma que, no mais das vezes, não será possível mitigá-los.

Assim sendo, ações compensatórias podem e devem ser estabelecidas na legislação de regência como uma medida que procurará, de forma indireta, minimizar os efeitos adversos dos impactos provados sobre os ecossistemas florestais naturais e que não puderam ser conhecidos e avaliados previamente.

Medidas compensatórias que envolvam replantios de espécies ameaçadas ou em perigo de extinção, conservação de áreas naturais, conservação de espécimes da fauna e assim por diante, estejam elas previstas na legislação de regência ou quando decorram da apuração do impacto ambiental presumido, são necessárias não só para equilibrar as consequências da ação sem licença como também para desincentivar tais práticas. É preciso que se impeça, nessas situações, que a licença corretiva seja incentivo a indulgência e ineficiência do sistema administrativo ambiental e penal brasileiros.

Logo, na hipótese, deve-se criar mecanismos para coibir, corrigir e punir com severidade a prática da infração de desmatamento sem licença, apesar da possibilidade e admissão da licença corretiva.

Aponte-se que, na hipótese, tais áreas, em tese, seriam passíveis de autorização, havendo que ser indeferida a licença corretiva quando, no caso concreto, for indicada a recuperação da área como medida para a proteção de ecossistemas e espécies.

Registre-se que, dada a omissão no texto do Código Florestal sobre tal possibilidade, a segurança jurídica decorrente do tema seria dada com maior eficácia em legislação de âmbito nacional que regulamentasse, de forma democrática e uniformizadora, para o território nacional, tal entendimento.

Até lá, os Estados e o Distrito Federal poderão promover a regulamentação devida, haja vista a competência concorrente estabelecida no artigo 24 da Constituição da República sobre matérias afetas à proteção do meio ambiente e as florestas, sobretudo, na ausência de norma geral sobre o tema.

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    é secretária de Estado de Meio Ambiente de Goiás, procuradora federal junto à Advocacia Geral da União (AGU), advogada, mestre em Direito Sócio Econômico pela PUC-PR, professora de Direito Ambiental, pós-graduada em Direito Sistêmico pela Hellinger Schulle e autora do livro "Instrumentos de Promoção Ambiental e o Dever de Indenizar Atribuído ao Estado".

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