Opinião

Já notaram que só se passa por cima da lei quando é contra o réu?

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28 de junho de 2022, 16h40

Hoje pretendo discutir um tema que aniquila direitos todos os dias. Nosso tempo não venceu velhos problemas. Eis o problema que se apresenta. Intriga-me que que só se descumpra a lei contra os interesses do réu. Ou para fragilizar um instituto.

Spacca
Explicarei. E demonstrarei.

Em meados de 2020, José Rogério Cruz e Tucci escreveu um belo artigo sobre o cabimento de embargos de declaração contra a decisão que nega trânsito aos recursos especial e/ou extraordinário (aqui). Apontou mudanças implementadas pelo atual código processual 1 e considerações da doutrina processual brasileira para salientar que "qualquer decisão judicial" é suscetível de embargos de declaração. Ao final, declarou que não parece sustentável a tese de que a única impugnação cabível contra ato decisório negativo do trânsito do recurso especial e/ou extraordinário é o agravo.

Tendo em vista que o tema foi recentemente problematizado pelo leitor Ronaldo Marinho em comentário acostado a um texto meu, apresento algumas considerações que visam a assentar a ideia de que precisamos olhar o novo com os olhos do novo. Assim:

  1. "O CPC é peremptório no sentido de que de toda decisão cabem embargos de declaração?" Sim.

  2. "O STJ, ao afirmar que de decisão que nega seguimento a REsp não cabem Embargos de Declaração, não estaria violando o princípio da legalidade?" Sim.

  3. "A pretexto de interpretar a norma infralegal dos arts. 1.022/1.026 do CPC não os estaria reescrevendo, como se legislador fosse?" Sim.

  4. "A interpretação, segundo a qual onde a lei não distingue não cabe a intérprete fazê-lo, ainda mais em prejuízo ao destinatário da norma, estaria ou não sendo violada?" Sim, está.

  5. "É juridicamente sustentável decisão do STJ que diz ser intempestivo um AREsp, porque a parte, antes do aludido agravo, opôs embargos de declaração perante o TJ?" Não.

  6. "O que fazer com o Enunciado n. 75 do CJF?". Boa pergunta.

São essas as perguntas respondidas laconicamente acima e que pretendo enfrentar. Mas vamos por partes.

Já escrevi muito sobre a jurisprudência defensiva (aqui e aqui, por exemplo) que pretende fazer com que o Direito seja usado como instrumento para diminuir pilhas de processos. Contudo, a teoria da evolução de Charles Darwin parece ter cometido um desvio em terrae brasilis. Nossas práticas processuais e sua (in)compreensão têm levado a uma verdadeira jurisprudência do escape, que se apresenta enquanto uma involução do próprio Direito.

Em decisões recentes, o STJ tem utilizado a "tese" de que embargos de declaração opostos contra decisão de admissibilidade do recurso especial seriam manifestamente incabíveis (AgRg no AREsp 1.913.610/SC e AgRg no AREsp 1.411.482/SP). Gosto muito de adjetivos como "manifestamente"! Isto quer que, se, por exemplo, o Tribunal de piso troca, manifestamente, alhos por bugalhos, ignora texto de lei e coisas desse jaez na decisão que inadmite Resp, não podemos manejar embargos de declaração. Simples assim.

Não fosse isso suficiente — como terrível efeito colateral — o STJ entende também que a interposição de embargos declaratórios não interrompe o prazo para a apresentação de agravo (AgInt no AREsp 1.950.072/MT). Vários são os problemas.

Veja-se: o art. 1.022 do CPC afirma que cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial e isto não poderia significar outra coisa senão que qualquer decisão judicial pode ser embargada. Cito na íntegra algumas considerações minhas e de Alexandre Freire nos Comentários ao CPC:

"o art. 1.022 buscou aperfeiçoar a redação prevista no art. 535 do CPC/73, explicando que todos os atos judiciais decisórios são passíveis de impugnação mediante oposição de embargos" e "admite-se embargos de declaração contra qualquer decisão judicial, bastando a abstrata existência de deslizes decisórios, o que vale também para decisões irrecorríveis e despachos quando acoimados dos vícios que enseja seu manejo" 2

À época falei para Freire: "— Não vou escrever isso. É tão óbvio. É uma platitude. Se está escrito que cabe, cabe. E li em voz alta o artigo 1022: Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para: I esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; II – suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento; III – corrigir erro material."

Freire respondeu: "— Professor, professor, não conhece o judiciário brasileiro?" Pois é. Por que escrevemos, então, a obviedade? Porque o óbvio no Brasil se esconde. É ladino. Escrevemos, então, que qualquer decisão pode ser embargada porque qualquer decisão pode conter omissões, contradições e obscuridades.

De fato, no Brasil viola-se a lei sempre contra o réu. Ou contra a efetividade de algum instituto jurídico. Nunca a favor. Nem do réu, nem do instituto jurídico. Aliás, já notaram que só se usa livre convencimento contra o réu? E para negar embargos?

A propósito: alguém já viu um embargo conhecido e provido com base no livre convencimento?

Sigo. Respondendo parte das angústias postas mais acima, o CPC é, sim, manifestamente (o adjetivo agora é meu) taxativo de que de toda decisão cabem embargos de declaração e o que o STJ tem realizado é uma superinterpretação 3 do aludido art. 1.022. Legalidade e hermenêutica são escamoteadas pela superinterpretação. Eis o problema. Imagine-se uma discussão dessas na Supreme Court dos EUA na atual composição. Se lá se usou o textualismo para afirmar direito de usar arma…

Seguindo para a "tese" de que a interposição de embargos declaratórios não interromperia o prazo para a apresentação de agravo, novamente a degeneração jurisprudencial (no sentido de que falam M. Stolleis e B. Rüthers) mostra sua face. Nesse sentido é que vale lembrar a esquecida decisão tomada quando o ministro Teori Zavascki ainda compunha o STJ:

Assim, dada a existência de justa expectativa da parte de que os embargos de declaração opostos haviam interrompido o prazo para a interposição do agravo em recurso especial, esta não pode ser penalizada com a declaração da intempestividade de seu recurso. Nesses termos, deve ser mantido incólume o entendimento da decisão agravada 4

Antes de tudo, estamos diante de uma questão de boa-fé hermenêutica: se embargos de declaração são interpostos para esclarecer obscuridade ou eliminar contradição, suprir omissão ou corrigir erro material de decisão que não admite Recurso Especial ou Extraordinário no Tribunal local, disso se segue que o art. 1.026 não pode ser desprezado. Os embargos de declaração interrompem o prazo para a interposição de recurso. Deve-se respeitar a boa-fé objetiva daquele que observou os termos do Código de Processo Civil. Parece elementar isso.

Nesse contexto, acreditar que Tribunais podem desprezar o mínimo-é-semântico dos textos é apostar em uma hermenêutica da surpresa. Veja-se que considerar incabíveis os embargos de declaração interpostos contra a decisão que não admite o recurso especial e/ou extraordinário na origem é desprezar quaisquer limites textuais. 5

Sobre o Enunciado 75 do CJF 6, mostra-se evidente que existem enunciados que dizem o óbvio e que isso não os torna falsos (a despeito disso). Se Nelson Rodrigues tinha razão quando dizia que as coisas ditas uma vez e só uma vez morrem inéditas 7, registro que cabem embargos declaratórios contra qualquer decisão que não admite recurso especial ou extraordinário, no tribunal de origem ou no tribunal superior, com a consequente interrupção do prazo recursal.

Observo, finalmente, que enunciados como o do CJF (n. 75) são seletivamente desconsiderados pelo judiciário. Bom, não sou a favor de que se façam enunciados. Mas pior do que fazê-los é fazer a aplicação seletiva. O desprezo a um enunciado que repete a própria textualidade da lei desmoraliza a própria fonte emissora. A propósito, eis o teor do enunciado: "Cabem embargos declaratórios contra decisão que não admite recurso especial ou extraordinário, no tribunal de origem ou no tribunal superior, com a consequente interrupção do prazo recursal."

A violação do dispositivo do CPC que estabelece o cabimento de embargos de qualquer decisão é escandalosa. Faz lembrar a Escola do Direito Livre — livre da lei. Claro que a Escola do Direito Livre queria se livrar da velha legislação, que de há muito não dava conta dos influxos da sociedade. Aqui o STJ se livra de um dispositivo que está em vigor há poucos anos. E que faz parte do Código de Processo Civil.

O judiciário precisa comunicar à comunidade jurídica o que efetivamente é uma lei e quando está disposto a cumprir ou ignorar o produto legislativo. Mas precisamos de critérios. Não pode ser ao modo voluntarista.

Peço socorro aos processualistas como Rogerio Cruz e Tucci. No Brasil, o receio de contestar decisões do judiciário enfraquece sobremodo a força da doutrina. Que fica caudatária daquilo que se chama de realismo jurídico. Passo-lhes a palavra. Na forma da lei.


1 Cf: diferença entre o artigo 535 do revogado diploma processual e o artigo 1.022 do atual diploma processual.

2 STRECK, Lenio Luiz. NUNES, Dierle. CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 1394.

3 Umberto Eco trata de forma genial esse tema, que citei na inicial da ADC 44. A possibilidade de um mesmo texto comportar diversas interpretações, em virtude de sua plurivocidade, não significa que desse mesmo texto se possa fazer qualquer interpretação. Em vista disso, certas interpretações são manifestamente equivocadas e não podem prevalecer por violarem a materialidade do próprio texto. Apostar no contrário é o que se chama superinterpretação.

4 AgRg no AREsp 37.144/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/5/12, DJe 24/5/12

5 STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? Revista NEJ — Eletrônica, Vol. 15, n. 1, p. 158-173, jan-abr 2010.

6 "Cabem embargos declaratórios contra decisão que não admite recurso especial ou extraordinário, no tribunal de origem ou no tribunal superior, com a consequente interrupção do prazo recursal"

7 NELSON, Rodrigues. Só os profetas enxergam o óbvio. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020. p. 55

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