Opinião

Crime de atentado violento ao pudor transformado em estupro de vulnerável

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28 de junho de 2022, 7h09

Sabemos que não são raros os casos que ainda tramitam em nosso Judiciário que tratam do antigo e revogado crime de atentado violento ao pudor, que, magicamente, se "transformou" no crime de estupro de vulnerável.

Até 2009, o Código Penal não previa o crime de estupro de vulnerável, que passou a existir a partir daquele ano por meio da Lei 12.015/09, previsto atualmente no artigo 217-A do Codex repressivo. Muitos casos que ocorreram antes da criação do referido dispositivo aconteceram sob a égide do artigo 214 do Código Penal, que previa a conduta como crime de atentado violento ao pudor. Sua previsão era a seguinte:

"Art. 214 — Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal:
Pena – reclusão de dois a sete anos.
Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos:
Pena – reclusão de três a nove anos."

Com o advento da Lei 12.015/09 o tipo penal de atentado violento ao pudor foi revogado e sua conduta foi inserida dentro do crime de ESTUPRO, previsto no artigo 213 do Código Penal. É o que estabelece a melhor doutrina e jurisprudência.

Sobre a questão, Nucci ensina que: "A reforma trazida pela Lei 12.015/09 unificou numa só figura típica o estupro e o atentado violento ao pudor, fazendo desaparecer este último, como rubrica autônoma, inserindo-o no contexto do estupro, que passa a comportar as condutas alternativas" (Curso de Direito Penal: parte geral: artigos 213 a 361 do Código Penal / Guilherme de Souza Nucci. — Rio de Janeiro : Forense, 2017. p.8.).

Israel Domingos Jorio, no mesmo sentido, diz: "Vê-se, com clareza, que ocorreu a junção das elementares referentes ao extinto atentado violento ao pudor ao delito de estupro. Não se pode falar em abolitio criminis referentemente à conduta tipificada no antigo art. 214. O seu conteúdo foi imediata e integralmente transportado para o art. 213, de modo que o comportamento nele previsto jamais deixou de estar previsto em lei como fato criminoso. (…) O certo é que a única coisa que mudou foi a localização da figura típica em outro artigo de lei, sem que tenha havido descriminalização ou mesmo interrupção da vigência da norma incriminadora" ("Crimes Sexuais" / Israel Domingos Jorio. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 55 e 56).

Allesandra Orcesi Pedro Greco e João Daniel Rassi também caminham na mesma trilha doutrinária: "A redação nova do artigo teve duas finalidades: fundir num mesmo dispositivo o estupro (art. 213) e o atentado violento ao pudor (antigo art. 214); (…)" ("Crimes contra a Dignidade Sexual" / Alessandra Orcesi Pedro Greco, João Daniel Rassi. 2ª ed. — São Paulo: Atlas, 2011, p. 163).

Finalizando as necessárias citações doutrinárias no presente caso, Rogério Greco nos fornece o seguinte entendimento: "Embora, à primeira vista, pareça ter ocorrido a chamada abolitio criminis quanto ao crime de atentado violento ao pudor, expressamente Revogado pela Lei 12.015/09, de 7 de agosto de 2009, na verdade, não podemos cogitar desse instituto pelo fato de que todos os elementos que integravam a figura típica do revogado art. 214 do Código Penal passaram a fazer parte da nova redação do art. 213 do mesmo diploma repressivo" ("Código Penal: Comentado" / Rogério Greco. 13ª ed. — Niterói, RJ : Impetus, 2019. p. 867).

Demonstrando que não estamos navegando em mares sinuosos, a jurisprudência (TJ-DF, Ap. 2006.01.1.085254-6/DF, 1ª T. C., rel. João Egmont, 28.09.2010, v.u.; Precedentes do STJ e STF (STJ, HC 238.917/SP, rel. min. Ribeiro Dantas, 5ª T., DJe 22/3/2017; STJ, Resp. 1.320.924/MG, rel. min. Rogério Schietti Cruz, 6 ª T., DJe 29/8/2016; STJ, HC 166.229/SP, 6ª T., rel. Maria Thereza de Assis Moura, 21/3/2013; STJ, HC 169.910/SP, 6ª T., rel. Sebastião Reis Júnior, 26.03.2013; TJ-SP, Agravo de Execução Penal 0209788-74.2011.8.26.0495, 4ª C.C.E., rel. Alexandre Almeida, 15.05.2014, v.u) possui o mesmo entendimento daquilo que a doutrina estabelece e, assim, comprova que o nosso entendimento acerca da matéria é legítimo, legal e idôneo.

Conforme já analisamos acima, o crime de atentado violento ao pudor foi inserido dentro do tipo penal do crime de ESTUPRO a partir do ano de 2009 e, dessa forma, a conduta do autor que atuara sob o revogado artigo 214 do Código Penal passou a ser classificada como crime de ESTUPRO (art. 213) e não de estupro de vulnerável (artigo 217-A).

O raciocínio acima é lógico e sem maiores dificuldades, pois o tipo penal de atentado violento ao pudor já previa os atos libidinosos com menor de 14 anos, tanto que em seu parágrafo único estabelecia que tal prática era uma causa de aumento de pena:

"Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos:
Pena – reclusão de três a nove anos."

Dessa forma, não existe nenhuma possibilidade legal do crime de atentado violento ao pudor "se transformar" no crime de estupro de vulnerável, tendo em vista que a sua conduta que já existia fora inserida dentro do tipo penal do crime de ESTUPRO. Caso o legislador quisesse inserir a conduta descrita anteriormente no crime de atentado violento ao pudor dentro do crime de estupro de vulnerável ele o teria feito e, como não o fez, não cabe ao julgador fazê-lo.

Caso pensemos de outra forma, estaremos estripando o princípio constitucional da legalidade, que nas palavras de Nucci "é o princípio central do direito codificado, guarnecendo a indispensável segurança jurídica no âmbito das figuras típicas incriminadoras, bem como no contexto dos instrumentos processuais de persecução penal" ("Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais" / Guilherme de Souza Nucci. – 4ª ed. ver., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 530).

Continua o doutrinador: "Há mecanismos criados pelos operadores do Direito, e até mesmo pelo legislador, que são capazes de colocar em sério risco de esvaziamento o princípio da legalidade" ("Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais" / Guilherme de Souza Nucci. – 4ª ed. ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense, 2015. p. 92).

Concluindo o exposto, nos posicionamos sem nenhuma dúvida e de forma concreta baseada no ordenamento jurídico que vige pela legalidade, que o crime de atentado violento ao pudor fora abarcado pelo "novo crime de ESTUPRO" em 2009 e, assim sendo, a imputação do crime de estupro de vulnerável para os antigos casos de atentado violento ao pudor é completamente equivocada e ilegal.

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