Direito Civil Atual

O Direito do Trabalho está "por fora"!

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27 de junho de 2022, 14h59

Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige[1].
Machado de Assis

O TRT da 24ª Região possui uma das ferramentas mais vanguardistas de uniformização de jurisprudência. Haurida a partir do artigo 926, § 1º do CPC, a "Arguição de Divergência", prevista no artigo 145 do Regimento Interno, é suficiente para tornar vinculante uma única decisão, proferida por uma única turma, na medida em que, a partir dela, qualquer desembargador ou juiz convocado que pretenda decidir de modo diverso deve "solicitar o pronunciamento prévio do tribunal".

ConJur
O instrumento possui múltiplos predicados. Colabora para a edificação de uma sociedade mais justa (CF, 3º, I), pacifica conflitos de modo isonômico (CF, 5º, caput), confere segurança jurídica (CF, 5º, XXXVI) e propicia celeridade (CF, 5º, LXXVIII), por meio da garantia de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente (CF, 926, caput). Serve também ao aprimoramento da transparência (CF, 5º, XXXIII). Ela, que, por sua vez, é amiga íntima da publicidade e da moralidade (CF, 37, caput), haja vista luzir todas as controvérsias e suas soluções. Como disse Brandeis, "sunlight is said to be the best of disinfectants; electric light the most efficient policeman"[2].   

Somente com utensílios assim é possível investigar diferenças intelectivas nos posicionamentos e submetê-los à apreciação. A propósito, a Corte terá em breve a missão de padronizar entendimento a respeito de um tema inusitado: se o pagamento de salário "por fora" (caixa dois) por parte do empregador enseja ou não a condenação em diferenças nas parcelas quitadas apenas com base no valor — reconhecidamente falso — estampado nos recibos de pagamento.

É difícil aquilatar se tal questão é ou não objeto de disputa noutros regionais, porque é correta a percepção de Tolstói de que "todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira"[3]. Todavia, mera conjectura acerca da possibilidade de uma fraude ser judicialmente ratificada e, assim, transformar-se em jurisprudência uniforme, basta para justificar algumas linhas sobre o assunto. O escrutínio epistêmico impõe-se, pois, "a ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor que temos"[4].

A tese que ensejou o incidente foi que "em havendo pagamento extrafolha, não necessariamente o empregado deve ter a sua pretensão integrativa de tais verbas atendida, pois não há lógica nem ética na sua ação". "Não há apenas candura na figura do empregado. Se houve pagamento 'por fora', tanto o empregado como o empregador se beneficiaram, deixando de fazer os recolhimentos das contribuições sociais e fiscais. Logo, participaram da mesma ilegalidade. Por que então apenas o empregador deve ser apenado? Não há dúvidas de que, em muitos casos de pagamentos extrafolha, os reclamantes buscam de forma ostensiva tirar proveito, com a chancela do Poder Judiciário, de uma situação da qual se beneficiaram e que, na maioria das vezes, atingem o seu desiderato, consolidando-se a vitória do ardil em detrimento da Justiça"[5]."   

 Desse modo, a partir de um embuste (registro em CTPS de salário inferior ao efetivamente pago) supostamente engendrado por ambos os atores de determinada relação jurídica, a resposta mais adequada do Direito seria a da absolvição mútua, sem consequências outras, porque a ilegalidade trouxe benefícios recíprocos.

A premissa é de duvidoso acerto. Ainda que se possa assumir o pressuposto de um contrato entre partes iguais, com simetria perfeita de forças entre contratantes — o que está longe de ser a regra nos contratos de emprego —, há um leque de vulnerabilidades a serem esquadrinhadas.

Há um caráter cogente nas normas que regem os salários, porquanto a tolerância à sonegação fiscal é deletéria ao erário; usurpa, dos cofres públicos, aportes essenciais à consecução de direitos sociais. Como "não existe almoço grátis"[6], o cumprimento das promessas constitucionais depende de um pacto republicano no qual cada um arca com a sua cota. A Seguridade Social, destinada a "assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social" (CF, 194, caput), é financiada pelas contribuições sociais do empregador e do empregado (CF, 195, caput, I e II). Possui, ademais, caráter contributivo e filiação compulsórios, e é pautada por regras que preservam o seu equilíbrio financeiro e atuarial (CF, 201, caput). Tolerada a evasão fiscal, ficam comprometidos, e. g., o custeio de todos os benefícios da Previdência Social e do seguro-desemprego.

As decisões do Poder Judiciário orientam condutas. Se indulgentes com o sonegador, todos tenderão a replicar seu comportamento, pois ele assegura uma vantagem competitiva ilícita, na medida em que o custo de produção diminui. Espera-se que os empregadores internalizem esse custo[7], de modo que o valor dos tributos seja capturado pelo sistema de preços. Porém, como as pessoas agem por meio de análises de custo-benefício[8] [9], a reação natural a um sistema de incentivos complacente será replicar o padrão de sonegação, sob pena de ser alijado do mercado. Isso acarreta uma perda marginal denominada "custo da desonestidade"[10], que significa fomentar um mercado de concorrência imperfeita, formado majoritária ou monopolisticamente por pessoas predispostas à inadimplência. Há também os "custos ocultos da evasão fiscal", consistentes na perda de eficiência e qualidade — o sujeito pouco escrupuloso e inclinado a transgredir obrigações tributárias pode ter maior propensão de violar padrões de qualidade, já que o cumprimento da lei não constitui seu éthos[11].

No âmbito do Direito Privado, é proibida a celebração de ajustes contrários às normas de ordem pública cujo teor comprometa a função social dos contratos (CC, 2.035, parágrafo único). A sonegação de contribuições sociais tem implicações que transcendem os lindes privados da relação de trabalho. Por isso, validá-las — sob a justificativa de a ilicitude gerar benefício mútuo aos contratantes — constitui nítido desvirtuamento teleológico (DL nº 4.657/1942, 5º), que negligencia a regra de que a interpretação deve ser feita "sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público" (CLT, 8º, caput).

Há também um problema de validade — assim entendida como a "qualidade que o negócio deve ter ao entrar no mundo jurídico, consistente em estar de acordo com as regras jurídicas"[12]. Macula a forma prescrita em lei (CC, 104) o contrato que possibilita a evasão fiscal, além de constituir objeto ilícito, até de contrato coletivo, a supressão ou redução de tributos (CLT, 611-B). Mesmo o Código Napoleônico de 1804, ao atribuir força de lei aos contratos, exigiu que eles fossem "legalmente formados" —  Les contrats légalement formés tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faits (artigo 1.103).

Aliás, a inserção de dados falsos na CTPS pode constituir, em tese, frustração, mediante fraude, de direito assegurado em legislação trabalhista (CP, 203), além de eventual incursão no fato descrito como "suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social e qualquer acessório", caracterizado pelas declarações falsas às autoridades fazendárias (Lei nº 8.137/1990, 1º, I). No que tange à evasão específica de contribuições previdências, o ato jurídico penalmente relevante está catalogado no art. 337-A do Código Penal.

Portanto, a sonegação fiscal não é meramente "vedada por lei", mas também pode configurar, a um só tempo, crime contra a organização do trabalho (CP, 203), a organização tributária (Lei nº 8.137/1990, 1º e 2º) e a administração em geral (CP, 337-A). A sua constatação não permite homologação judicial sob pretexto algum. Antes, acarreta o dever de expedição de ofício, ao Ministério Público Federal, para apurar possíveis condutas criminosas (CPP, 40).

Não há, entretanto, como presumir que o empregado tenha aderido à prática do ilícito perpetrado, porquanto o sujeito passivo da obrigação tributária —  "a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade pecuniária" (CTN, 121, caput) — é o empregador (Lei nº 8.212/1991, 30, I). O trabalhador não dispõe de meios para ingerir nas informações prestada, pelo empregador aos órgãos governamentais.

Mesmo que se cogitasse de um empregado desonesto se aproveitar da inocência do empregador, aceitar o pagamento de salário "por fora" e, num segundo momento, ao ser dispensado, cobrar impiedosamente as diferenças sobre as verbas que lhe foram prometidas também sobre o valor "por fora", não poderia o julgador, em decisão equitativa (Dl nº 4.657/1942, 4º), absolver o empregador. A equidade tributária só é possível na ausência de disposição expressa e, ainda assim, sem resultar dispensa de pagamento do tributo (CTN, 108, IV, § 2º).

A averiguação da ilegalidade por múltiplas vertentes é importante para não render ensejo à velha cantilena segundo a qual o Direito do Trabalho protege o trabalhador demasiadamente etc. Sonegação é sonegação em todas as áreas. Contudo, enquanto o Direito do Trabalho for um ramo específico, dotado de princípios e peculiaridades próprios, e os conflitos decorrentes das relações entre capital e trabalho contarem com uma Justiça Especializada para dirimi-los, de acordo com as suas peculiaridades, é preciso perscrutar o caso também na sua ótica.

A lei acoima com a nulidade os atos tendentes a fraudar os dispositivos de proteção ao trabalhador (CLT, 9º), porque "quando as normas da Consolidação sofrem a ofensa de uma violação, quem sente, na própria carne, os efeitos desse gesto é a sociedade" [13]. O Direito do Trabalho é permeado por normas de ordem pública "visando ao amparo do trabalhador como ser humano e à prevalência dos princípios de justiça social"[14]. É isso que ainda justifica o tão combalido princípio protetivo, que nasceu "como consequência de que a liberdade de contrato entre pessoas com poder e capacidade econômica desiguais conduzia a diferentes formas de exploração"[15]. Não é possível estipular cláusulas que contravenham normas de proteção (CLT, 444, caput).

Além disso, os recibos são a prova da quitação e do valor do salário, por excelência (CLT, 464). Aceitar recibos falsos, em detrimento da boa-fé (CC, 422), comuta o princípio da "primazia da realidade" [16] em "primazia da falsidade".

Supor que o empregado deseja registrar contabilmente salário menor, a fim de: (i) não obter empréstimos, financiamentos e outros créditos que dependam de comprovação de renda; (ii) ter uma base de cálculo minorada para o cálculo de todos os benefícios da Previdência Social; (iii) receber um valor inferior a título de seguro-desemprego; (iv) sacar um montante menor a título de FGTS e respectiva multa e, (v) ter sonegadas as verbas rescisórias sobre o valor correto dos seus ganhos no momento da rescisão contratual, tudo em troca de um valor “por fora” parece, no mínimo, precipitado, e, de todo modo, absolutamente ilegal e nefasto para a sociedade.

Não pode haver um direito "por dentro" e outro "por fora". Admitida a clandestinidade, ela não tem limite algum. Não há diferença epistêmica entre pagar salário "por fora", registrar horas extras "por fora" e manter todo o contrato de trabalho "por fora", não pagando, afinal, tributo nenhum. Basta que tudo seja fruto de um "acordo", segundo a lógica adotada.

Abster-se de refutar, academicamente, esse tipo de escalada rumo à erosão do Estado de Direito é permanecer em "um estado vazio de prolongada espera, em que todos os esforços e toda existência ficam reduzidos à tarefa de passar e vencer o tempo"[17]. É um ser, não sendo. Algum sopro de vida deve restar ao Direito do Trabalho, para que ele sirva, ao menos, para preservar um mínimo de dignidade. Do contrário, não passará de uma memória pálida e melancólica a dormitar em alfarrábios empoeirados. "O resto é silêncio"[18].


[1] MACHADO DE ASSIS. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Antofágica, 2020, p. 163.

[2] BRANDEIS, Louis D. What Publicity Can Do. Harper's Weekly (20 Dec. 1913).

[3] TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. Companhia das Letras, 2017, p. 14.

[4] SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 45.

[5] Processo: 0024738-51.2020.5.24.0101; Data: 22-03-2022; 2ª Turma.

[6] FRIEDMAN, Milton. There's No Such Thing as a Free Lunch. La Salle: Open Court Publishing Company, 1975.

[7] JOHNSTON, A.; AMAESHI, K.; ADEGBITE, E. et al. Corporate Social Responsibility as Obligated Internalisation of Social Costs. Journal of Business Ethics (2021) 170:39–52.

[8] POLINSKY, A. Mitchell. An Introduction to Law and Economics. 3rd ed. New York: Aspen Publishers, 2003, p. 159.

[9] Sem olvidar de razões outras que não a satisfação do autointeresse na tomada de atitudes. Para aprofundamento: SEM, Amartya. Sobre Ética e Economia. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

[10] A esse fenômeno (domínio do mercado por agentes econômicos ímprobos) dá-se o nome de “custo da desonestidade”, tema trabalhado pelo economista e Prêmio Nobel George A. Akerlof, com ênfase no problema de assimetria de informação. (AKERLOF, George A. The Market for "Lemons": Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, Vol. 84, No. 3. (Aug., 1970), pp. 488-500)

[11] BALAFOUTAS, Loukas; BECK, Adrian; KERSCHBAMER, Rudolf; SUTTER, Matthias. The hidden costs of tax evasion: Collaborative tax evasion in markets for expert services. Journal of Public Economics, Vol. 129, September 2015, Pages 14-25.

[12] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 42.

[13] RUSSOMANO, Mozart Victor. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. V. 1. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 47-48.

[14] SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA, Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. V. 1. 11 ed. São Paulo: LTr, 1991, p. 197.

[15] PLÁ-RODRIGUES, Américo. Princípios do Direito do Trabalho. 3 ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 85.

[16] Segundo o qual o conteúdo deve prevalecer sobre a forma estampada em documentos. (PLÁ-RODRIGUEZ, Américo. Op. cit., p. 339-389.

[17] MANN, Thomas. A montanha mágica. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 221.

[18] SHAKESPEARE, William. Hamlet. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 2016.

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