Opinião

Sujeição do crédito decorrente de ato cooperativo à recuperação judicial

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26 de junho de 2022, 11h14

Uma das muitas inovações da Lei 14.112/2020, que reformou a 11.101/2005, foi o acréscimo do §13 ao artigo 6º, que prevê: "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do artigo 2.o quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica [1]". O dispositivo chegou a ser vetado pela Presidência da República [2], mas em sessão conjunta em 17/3/2021 o veto foi derrubado pelo Congresso.

A técnica legislativa é das piores possíveis. Além da redação confusa e da total falta de relação entre a primeira e a segunda partes do dispositivo, ele ainda foi mal alocado, pois, existindo um rol de créditos não sujeitos à recuperação judicial nos parágrafos do artigo 49, da Lei 11.101/2005, o ideal é novos créditos tidos como não sujeitos fossem lá arrolados.

Além disso, uma leitura apressada do novo dispositivo poderia fazer supor que, a partir da reforma de 2020, crédito decorrente de ato cooperativo não se sujeitaria aos efeitos da recuperação judicial, o que não parece ser correto, todavia.

No trâmite legislativo da reforma de 2020 na redação que havia sido aprovada pela Câmara dos Deputados e enviada ao Senado constava tão somente a não sujeição aos efeitos da recuperação judicial de créditos decorrentes de atos cooperativos e estava prevista no §15, também do artigo 6º: "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971".

Embora tenha sido tratada pelo Senado como emenda de redação — supostamente visando apenas melhorar a qualidade do texto, sem alteração de conteúdo  não foi isso que ocorreu. Não é difícil verificar que o conteúdo do texto aprovado pela Câmara dos Deputados é muito diferente daquele aprovado pelo Senado.

Na Câmara foi aprovada a não sujeição aos efeitos da recuperação judicial de créditos decorrentes de atos cooperativos. Já no Senado, houve um significativo aumento de conteúdo, pois o que se pretendeu foi permitir o ajuizamento de recuperação judicial por cooperativa médica. Porém, talvez para tentar mascar a inovação realizada, a mudança foi conduzida como mero ajuste de redação, com o emprego indevido da expressão "consequentemente", tentando fazer crer que a segunda parte do §13, do artigo 6º, decorreria da primeira.

Tratou-se, dessa forma, de uma adição substancial ao conteúdo do texto que implicou, inclusive, na tentativa de alteração do próprio regime jurídico até então em vigor, o qual veda, ao menos em duas passagens da Lei 11.101/2005 [3], o ajuizamento de recuperação judicial pelas cooperativas médicas.

Por conta disso, parece clara a inconstitucionalidade pela violação ao parágrafo único, do artigo 65, da Constituição, que determina que, "Sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora". Dessa forma, frente à clara inovação de conteúdo fica patente que o papel desempenhado pelo Senado Federal foi muito além da revisão do texto do projeto de lei, revisão esta prevista no caput do mesmo artigo, que dispõe que "O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar". É importante ficar claro que esta regra existe justamente para garantir a formação do consenso democrático. Uma casa legislativa não pode legislar à revelia da outra — a não ser que esteja dentro de seu campo de competência privativa, o que não é o caso.

Portanto, o §13 ao artigo 6º, da Lei 11.101/2005, acrescentado pela Lei 14.112/2020, é formalmente inconstitucional, por violação ao sistema bicameral, previsto no artigo 65, da Constituição, de maneira que a não sujeição ali prevista não deve ser aplicada. Contudo, este não é o único vício contido no dispositivo em questão.

A primeira parte do §13, do artigo 6º, da Lei 11.101/2005, como visto, acrescentou uma nova modalidade de crédito não sujeito aos efeitos da recuperação judicial dispondo que "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971". Ou seja, caso o cooperado  um produtor rural, por exemplo  ajuíze pedido de recuperação judicial, eventuais obrigações provenientes de ato cooperativo que este tiver perante a cooperativa  agrícola ou de crédito  seriam considerados créditos não sujeitos aos efeitos de sua recuperação judicial.

Talvez, com a questão sobre o cabimento ou não de recuperação judicial para produtor rural praticamente resolvida [4], o que se pretendeu foi criar algum nível de proteção e privilégio às cooperativas, excluindo dos efeitos da recuperação judicial os créditos decorrentes de atos cooperativos, que são aqueles realizados, no desempenho do objeto social da cooperativa, entre esta e o cooperado.

No entanto, ao fazer isso, a reforma de 2020 criou indevida desequiparação entre credores constituídos sob a forma de cooperativas e credores não cooperativas (empresário de todos os portes, empregados, outros agentes econômicos não empresariais etc.), pois, muitas vezes, o ato cooperado se difere do ato não cooperado tão somente pela qualidade das partes que o celebram (cooperativa e cooperado). Por exemplo, tomar um empréstimo junto a um banco ou perante uma cooperativa de crédito, ou adquirir um implemento agrícola de uma cooperativa agrícola ou de uma concessionária constituída sob a forma empresarial.

Por óbvio, não se está a negar a importância do cooperativismo, a qual, inclusive, é reconhecida pela Constituição quando, verbi gratia, impõe que a lei complementar tributária dê adequado tratamento tributário ao ato cooperativo (artigo 146, III, c), ou quando determina que a lei estimule o cooperativismo (artigo 174, § 2º). Mas, seria uma ferramenta adequada de estímulo a exclusão do crédito decorrente de ato cooperado da recuperação judicial? Não parece ser positiva a resposta, até porque levando em conta o que prevê o próprio §13, do artigo 6º, se a recuperação judicial fosse requerida por sociedade operadora de plano de assistência à saúde seria isso prejudicial à cooperativa, autora do pedido.

Situação diferente é a das microempresas e das empresas de pequeno porte, em que a Constituição determina "tratamento favorecido", no artigo 170, IX. Daí gozarem elas, desde a Lei Complementar 147/2014, de uma classe própria dentro da recuperação judicial, sem que isso implique em maiores questionamentos constitucionais.

Note que nem quando a Constituição impôs "tratamento favorecido" a legislação fez prever a exclusão dos créditos titularizados por microempresários e empresários de pequeno porte aos efeitos de eventual recuperação judicial requerida pelos seus devedores, o que também corrobora com o despropósito da previsão do §13, do artigo 6º, da Lei 11.101/2005.

Quanto ao cooperativismo, especialmente o de crédito, este já é devidamente estimulado, por exemplo, pela Lei Complementar 130/2009, que permitiu a atuação das cooperativas de crédito no ambiente financeiro. Ou seja, quando se permite que uma sociedade cooperativa, com os benefícios fiscais inerentes, possa atuar como agente financeiro se está a estimular o cooperativismo e, com isso, satisfazer a determinação constitucional.

A reforma de 2020, ao excluir o crédito decorrente de ato cooperativo, foi além da exigência constitucional de estímulo ao cooperativismo, criando indevido benefício às cooperativas, que devem ser estimuladas e não indevidamente favorecidas.

Ademais, em se tratando de cooperativa de crédito, por mais que a Constituição valorize o cooperativismo, exigindo tanto o seu estímulo quanto o seu adequado tratamento tributário, quando ela trata do sistema financeiro nacional não prevê qualquer tipo de distinção, apenas fazendo menção, no caput, do artigo 192 [5], que o sistema financeiro nacional as abrange  o que não deixa de ser uma regra de estímulo.

Por isso, a previsão de que crédito decorrente de ato cooperado não se sujeitaria aos efeitos da recuperação judicial não está em consonância com a Constituição, violando a isonomia. Não se nega que sociedades cooperativa e empresária sejam distintas entre si. Contudo, é necessário que, pela desequiparação, se pretenda alcançar valores constitucionalmente consagrados. Além disso, há que se estabelecer um liame de pertinência entre a desequiparação criada e o valor que se estará a consagrar. Não é qualquer tipo, portanto, de desequiparação que é constitucionalmente adequada. Os sujeitos devem receber distinto tratamento quando isso for necessário à realização de comandos e valores também constitucionalmente consagrados.

Estimular o cooperativismo implica em encorajá-lo, incentivá-lo, é o que faz a Constituição nos parágrafos do artigo 174 [6] e a já citada Lei Complementar 130/2009, por exemplo. Não se trata da mera criação de um privilégio, mas um verdadeiro mecanismo de promoção ao cooperativismo, diferentemente da previsão do §13, do artigo 6º, Lei 11.101/2005 que cria um privilégio indevido e despropositado, indo além, inclusive, do que foi atribuído aos microempresários e aos empresários de pequeno porte a quem, segundo a Constituição, se deve tratamento favorecido.

Como o cooperativismo, especialmente o de crédito, tem crescido muito, com as cooperativas participando cada vez mais de processos de recuperação judicial na qualidade de credoras, trata-se de tema que certamente desafiará a jurisprudência muito em breve. A inconstitucionalidade, formal e material, parece bastante clara. Resta saber como os tribunais brasileiros entenderão.


[1] A questão sobre o cabimento ou não de recuperação judicial para as cooperativas médicas não será objeto do presente artigo.

[2] Com base nos seguintes argumentos: "a propositura legislativa dispõe que não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do artigo 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, bem como aduz que a vedação contida no inciso II do artigo 2º da Lei nº 11.101, de 2005, não se aplica quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica. Embora a boa intenção do legislador, a medida contraria o interesse público, pois a previsão de recuperação judicial somente para cooperavas médicas, além de ferir o princípio da isonomia em relação as demais modalidades societárias, afasta os instrumentos regulatórios que oportunizam às operadoras no âmbito administrativo a recuperação de suas anormalidades econômico-financeiras e as liquidações extrajudiciais. Ademais, tem-se, ainda, que a criação dessa excepcionalidade impacta nas concessões de portabilidades especiais de carências a beneficiários de operadoras a serem compulsoriamente retiradas do mercado regulado, em prejuízo ao acompanhamento econômico-financeiro das operadoras pela Agência Nacional de Saúde Suplementar  ANS, e submete milhões de brasileiros a riscos de desassistência".

[3] Artigo 1.o e artigo 2º, II.

[4] Ainda pende perante o STJ o tema nº 1145, em que a 2ª Seção decidirá, desta vez sob o rito dos recursos especiais repetitivos, sobre o cabimento de recuperação judicial para produtor rural exercente de atividade há mais de dois anos, mas sem registro perante o registro público de empresas.

[5] "Artigo 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram".

[6] "Artigo 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. §1º A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento. §2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. §3º O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros. §4º As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o artigo 21, XXV, na forma da lei".

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