Reflexões Trabalhistas

Redução de jornada para mãe de menino com paralisia cerebral

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24 de junho de 2022, 8h03

Muito se tem falado sobre a necessidade de ampliação da proteção social em razão das transformações nas variadas formas de contratação de trabalhadores, bem como no modelo da entrega do trabalho, porque se evidenciou um vazio enorme que a legislação de proteção destinada quase exclusivamente para aqueles trabalhadores sob o vínculo de emprego ainda não conseguiu acolher. Mas não é disto que se trata a reflexão sugerida neste artigo.

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A legislação trabalhista tem por objeto atender o trabalhador empregado em razão de eventos que impossibilitem sua capacidade laboral, com benefícios e eventualmente garantias de subsistência diante da perda temporária de salários. Há, lateralmente, certas imposições às empresas, chamadas ações afirmativas, para cumprir quotas oportunizando a inclusão de pessoas deficientes e aprendizes.

Constata-se, por outro lado que, quando se trata de proteção social de trabalhadores com vínculo de emprego, os fatos da vida surpreendem e muitas vezes não encontram suporte legal que garanta o mínimo de previsibilidade e de segurança para cuidar de adversidades. Neste ponto, a Justiça do Trabalho tem produzido jurisprudência acolhedora de situações não previstas em lei e que se sustentam pelo respeito à garantia constitucional do respeito à dignidade do trabalhador, afastando-se da usual aplicação fria da previsão na lei que é incapaz de atender a todos.

Assim, temos observado que, ao longo dos últimos cinco anos, algumas situações de amparo a empregados que, por eventos da vida, imprevisíveis, têm sido objeto de decisões nas diferentes instâncias da Justiça do Trabalho e que, malgrado ausente previsão legal, tem recebido acolhimento com fundamentos na natureza social da obrigação de proteção.

Neste sentido, o sítio do Tribunal Superior do Trabalho publicou, dia 8/6/22, notícia com a seguinte manchete: "TST mantém redução de jornada para mãe de menino com paralisia cerebral". Trata-se de decisão da Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2), voto da ministra relatora Maria Helena Mallmann, em ação rescisória (RO-80265-93.2016.5.22.0000), que rejeitou recurso ordinário para manter a redução de jornada de 40 horas para 20 horas semanais, de empregada técnica de farmácia de Teresina, que necessita prestar assistência ao filho menor com paralisia cerebral.

Independentemente dos aspectos processuais, o mérito da discussão nos remete à prevalência da decisão proferida pelo regional (22ª Região) com fundamento nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, firmada em 2007 pela Organização das Nações Unidas (ONU) e promulgada em 2009 no Brasil, cujo conteúdo merece a citação de algumas passagens:

"É incontroverso nos autos o estado de saúde peculiar do filho da autora, que nasceu prematuro na 28ª semana da gestação, em 12/8/2013, pesando 995g e portando paralisia cerebral, CID G 80.9, permanecendo os primeiros 56 dias de vida internado na UTI Neonatal, evoluindo com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor. Em 04/10/2014, foi submetido à procedimento cirúrgico para tratamento de cranioestenose. Nos termos de diversos laudos de profissionais de saúde que o acompanham, colacionados aos autos, sobretudo da neuropediatra (id 40d4054, fl. 38 dos autos integrais), o menor necessita ser submetido a uma série de terapias (fisioterapia, musicoterapia, terapia ocupacional, hidroterapia e fonoterapia) para estimular/favorecer o seu desenvolvimento global, sendo salutar o acompanhamento da cuidadora direta da criança, in casu, a mãe, a fim de aprender e implementar na rotina da família as condutas orientadas pelos terapeutas, além de acompanhar o infante permanentemente, visto ser uma criança que precisa de cuidados especiais (CID F 83).

Resta também incontroverso que cumprir a carga horária de 40 horas semanais de trabalho, levando-se em conta ainda o intervalo intrajornada, impede que a autora permaneça o necessário tempo disponível para seu filho em horário comercial, no qual acontecem as atividades terapêuticas indispensáveis ao seu quadro de saúde. Cumpre destacar que o processo de reabilitação precoce de uma criança portadora de necessidades especiais é um fator decisivo para favorecer o melhor prognóstico do indivíduo no futuro. É cediço que quanto mais cedo é iniciado o tratamento, mais frutífero ele será para o desenvolvimento da pessoa com deficiência."

[……..]

"Rotineiramente, requer-se desta Justiça Especializada a aplicação de dispositivos da CLT que regulam diretamente os conflitos havidos entre as partes. O caso dos autos é singular na medida em que postula a apreciação jurisdicional a partir da ausência de previsão legal na CLT que regule a controvérsia dos autos. Todavia, em que pese a lacuna na lei, não é dado ao juiz esquivar-se de proferir solução jurídica para o caso concreto. Esse é o comando perfilhado no artigo 126 do CPC que disciplina que "o juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não havendo recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito."

"Respeitado posicionamento em contrário no sentido de que não havendo previsão na CLT, não há como ser analisado o pleito da autora, pelo que o julgamento deveria ser improcedente, por ausência de amparo legal, filio-me à corrente intelectiva que enxerga, em casos como o presente, um viés superior ao legalista disciplinado na CLT."

[……]

"Pelas razões retro mencionadas, através da exegese finalística dos dispositivos constitucionais citados, formo convicção no sentido de preencher a lacuna existente na CLT, com fundamento nos preceitos normativos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade material, da razoabilidade, da assistência à infância, da proteção à família, à saúde e à pessoa com deficiência e da valorização ao trabalho, para acolher o pleito autoral…"

O teor finalístico da decisão já fora objeto de artigo de nossa autoria nesta coluna, em 2 de fevereiro de 2018, sob o título "A responsabilidade do empregador além da relação de emprego" em que tratamos do acórdão da 8ª Turma do TRT da 2ª Região (Processo 10009605020175020037) da juíza Liane Martins Casarin, que reconheceu "o direito de a empregada reduzir sua jornada de trabalho pela metade sem redução de salário para cuidar de seu filho autista" e que, dissemos na época, trazia um rompimento dos limites da responsabilidade do empregador na proteção do trabalhador na relação de emprego.

No mesmo sentido, mereceu destaque a decisão da juíza de primeira instância Sandra Miguel Abou Assali Bertelli (37ª Vara da Justiça do Trabalho de São Paulo), também sobre a proteção de empregada com filho autista afirmando, quanto ao argumento de ausência de fundamento jurídico da pretensão, o seguinte:

"Portanto, amparo jurídico há, de forma suficiente, a permitir o acolhimento da pretensão deduzida pela trabalhadora [sic], assim como, ao revés do quanto afirmado na defesa, há comprovação cabal de que o transtorno autista de que é portador do filho da reclamante inspira cuidados especiais e acompanhamento permanente de sua mãe que desafiam a aplicação de todo o arcabouço constitucional, legislativo e fontes internacionais mencionadas a amparar o tratamento adequado à inserção da criança na família e na sociedade".

Importante observar que (1) os três casos referiam-se a empresas públicas o que torna mais efetiva a pretensão que fora deduzida em juízo pelas autoras e a decisão é aplicada sem risco de eventual dispensa injusta; (2) a orientação jurisprudencial poderá servir de estímulo para negociações coletivas que possam abranger situações semelhantes; (3) a orientação jurisprudencial pode servir de paradigma para projeto de lei que venha a amparar trabalhadores que estejam nestas condições e que precisariam de uma forma de proteção do emprego sem abandonar o cuidado de pessoas que vivam sob sua dependência; (4) a Justiça do Trabalho pode deixar de lado o espírito legalista e fazer a diferença no campo da proteção social.

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