Direitos Fundamentais

Considerações sobre o direito fundamental à "renda básica familiar" (parte 2)

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24 de junho de 2022, 8h02

Na última coluna, após a exposição das razões pelas quais o direito fundamental à "renda básica familiar" (RBF), positivado no parágrafo único do artigo 6º da Constituição de 1988 (CF), não se enquadra exatamente naquilo que a literatura especializada define como "renda básica", duas questões foram deixadas em aberto, designadamente: a) seria a RBF do artigo 6º da CF o mesmo que a "renda básica de cidadania" (RBC), prevista na Lei nº 10.835 e cuja regulamentação foi objeto do Mandado de Injunção nº 7.300? B) O Programa Auxílio Brasil (PAB) seria o detalhamento legal do direito fundamental previsto no parágrafo único do artigo 6º da CF?

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Ao contrário da RBF, a RBC, tal como configurada pela Lei nº 10.835, de 8/1/2004, não só atende a todos os requisitos considerados pela literatura especializada para a caracterização de uma renda básica, como colocou o Brasil na posição de primeiro país a prever juridicamente a implementação de tal direito em âmbito nacional.

A Lei nº 10.835/2004 estabelece que a RBC, a partir de 2005, seria instituída como direito de todas as pessoas brasileiras residentes no país e estrangeiras residentes há pelo menos cinco anos, independente de sua condição socioeconômica, receberem anualmente um benefício monetário (artigo 1º). Os parágrafos do artigo 1º definem que o pagamento da RBC poderá ser feito em parcelas iguais e mensais (§ 3º), mas deverá ser de igual valor para todas as pessoas, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada uma com alimentação, educação e saúde, respeitados o grau de desenvolvimento e as possibilidades orçamentárias do país (§ 2º). Nota-se que se trata de uma medida vocacionada a proteger o mínimo vital, não sendo suficiente para — de maneira isolada — assegurar todo o conteúdo do mínimo existencial fisiológico e sociocultural, razão pela qual necessária a sua coordenação com outras ferramentas de proteção social.

A mesma lei prevê que a universalidade da fruição do direito será alcançada por etapas, priorizando-se as camadas mais necessitadas da população, de acordo com critérios a serem definidos pelo Poder Executivo (§1º) [1]. Nesse contexto, importa notar que a discricionariedade que a Lei atribui ao Executivo não alcança o início da implementação do Programa, que deveria ocorrer em 2005, tampouco outros aspectos do direito, além do estabelecimento de requisitos de sua fruição direta e razoavelmente relacionados à definição daquilo que se consideram como "camadas mais necessitadas da população". Em outras palavras, e tendo-se em mente os cinco elementos que caracterizam uma renda básica, a discricionariedade deixada ao Executivo está no escalonamento das fases em direção à universalidade, não na incondicionalidade. Ou seja, uma vez que um indivíduo esteja entre o universo de titulares do direito que, segundo critérios de necessidade estabelecidos para cada etapa de implementação da RBC, estejam aptos a receber o pagamento, não cabe a imposição de qualquer outra condição em relação à sua conduta para que se faça jus à prestação.

Ocorre que no dia seguinte à publicação da Lei nº 10.835, veio à luz a Lei nº 10.836, que criou o Programa Bolsa Família (PBF), cuja implementação e desenvolvimento ao longo dos anos acabou deixando de lado — como se isso fosse constitucionalmente admissível — os deveres que a Lei nº 10.835 impôs ao Poder Executivo para que, já em 2005, fossem dados os primeiros passos no caminho rumo à plena implementação da estrutura de garantia do direito à RBC.

Em 2020, ano em que a Lei nº 10.835 completou 16 anos de vigência sem regulamentação, tal omissão foi questionada perante o STF, por meio do Mandado de Injunção nº 7300, impetrado, sob o intermédio da DPU, por um cidadão brasileiro em situação de rua que à época alegava ter como única renda mensal a quantia de R$ 91 que recebia do PBF. Após um debate pautado pela vedação da proteção insuficiente quanto ao combate à pobreza e pela garantia do mínimo existencial em face da cláusula da assim chamada reserva do possível, o tribunal concedeu parcialmente a ordem injuncional. No julgamento, o relator, ministro Marco Aurélio de Mello, considerou procedente o pedido inicial e se manifestou no sentido de estabelecer a RBC, até a sobrevinda da ação do Executivo (para a qual se fixava o prazo de um ano), no valor de um salário-mínimo, por analogia ao Benefício de Prestação Continuada (artigo 20, caput e § 3º da Lei nº 8.742/1993) e considerando-se o artigo 7º, IV, da CF.

Entretanto, a maioria dos membros do STF, seguindo a posição divergente levantada no voto-vista do ministro Gilmar Mendes, decidiu por: 1) determinar ao presidente da República que fixe, no exercício de 2022, o valor disposto no artigo 2º da Lei n. 10.835/2004 para a população brasileira em situação de vulnerabilidade econômica, assim consideradas as pessoas que vivam em extrema pobreza e pobreza, com renda per capita inferior a R$ 89 e R$ 178, respectivamente, devendo adotar todas as medidas legais necessárias para tanto; e 2) apelar aos demais Poderes para que tomem as medidas necessárias para atualizar os valores dos benefícios do PBF, ademais de aprimorarem, ou mesmo unificarem os programas de transferência de renda em vigor, notadamente o criado pela Lei nº 10.835/2004 [2].

Ou seja, a decisão do STF determinou a implementação da primeira fase do programa de RBC previsto na Lei nº 10.835/2004, direcionada às camadas mais necessitadas da população, tal como estabelece o § 1º de seu artigo 1º, e não do programa completo, que alcançaria universalmente todas as pessoas titulares previstas no caput do mesmo artigo, independente de sua condição socioeconômica. Isto não significa, todavia, que seja inconstitucional a atribuição legal de uma RBC às pessoas que não se encontrem em situação de vulnerabilidade econômica, mas sim, que a definição das etapas de universalização da fruição de tal direito está sob a margem de disponibilidade dos poderes constituídos. Como se lê no voto-vista do ministro Gilmar Mendes, "caso viesse a assegurar judicialmente a renda básica a todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer gradualidade ou planejamento financeiro, o Tribunal, a um só tempo, excederia os limites que, ao longo de mais de 20 anos, foram desenvolvidos por sua jurisprudência no âmbito de mandados de injunção, mas também infringiria a progressividade aventada pelo Legislativo para a implementação do benefício monetário (art. 1º, § 2º)".

Uma vez caracterização o objeto do direito criado pela Lei nº 10.835, bem como sumariamente referido o teor da decisão do STF no MI 7.300, não seria de estranhar que eventuais leitores desta coluna possam sentir-se tentados a afirmar que a RBF equivale à elevação ao status jusfundamental do direito à RBC, ao menos no que se refere à fase inicial desta. No entanto, calha frisar que não se trata disso. Isto porque resta a divergência em dois dos seus elementos: 1) o direito previsto no parágrafo único do artigo 6º da CF é atribuído em base familiar, enquanto o previsto na Lei nº 10.835/2004 é individual e, inclusive em suas primeiras etapas, deve ser pago em valor igual para todas as pessoas que atendam os requisitos para ser consideradas como parte das "camadas mais necessitadas da população"; 2) ao contrário do texto da Lei nº 10.835/2004, o enunciado constitucional não inclui expressamente as pessoas estrangeiras residentes no país. Embora o segundo ponto seja perfeitamente contornável, pela extensão do direito constitucional às pessoas estrangeiras residentes no país — nos moldes apontados na coluna anterior —, o primeiro exigiria um pouco mais de trabalho hermenêutico, pois diz respeito a um elemento caracterizador essencial e, portanto, diferenciador do objeto de cada um dos dois direitos em tela.

Respondida uma das questões levantadas, pode-se caminhar para a segunda (e última), que trata da relação do Programa Auxílio Brasil (PAB) com o direito fundamental à RBF. A Lei nº 14.284, de 29/12/2021 (a partir da conversão da MP nº 1.061, de 9/8/2021), estabeleceu que o PAB substituirá o Programa Bolsa Família e constituirá uma etapa do processo de implementação da universalização da RBC prevista na Lei nº 10.835/2004.

Além de quatro diferentes "benefícios financeiros" previstos em seu artigo 4º, a Lei nº 14.284/2021 cria, sob o título de "incentivos ao esforço individual e à emancipação", cinco tipos de auxílio, com condicionalidades bastante específicas. Os benefícios financeiros que fazem parte do PAB não são individuais, mas sim destinados à família (artigo 3º, caput e § 1º da Lei nº 14.284/2021). Esta característica aproxima tal programa da RBF, mas o afasta da RBC.

A caracterização objetiva de pobreza ou extrema pobreza, critério de elegibilidade para o PAB, verifica-se a partir da renda familiar per capita mensal, ou seja, o resultado da divisão entre a renda familiar mensal e o total de indivíduos da família, um critério objetivo e unidimensional. A Lei 14.284/2021 define como em situação de pobreza as famílias cuja renda familiar per capita mensal seja de R$ 105,01 a R$ 210, considerando-se em extrema pobreza aquelas que apresentem tal indicador igual ou inferior a R$ 105 (artigo 4º, § 1º).

Embora não seja possível aqui aprofundar o tema, é importante registrar que nenhum critério de definição de pobreza é neutro [3], de maneira que a sua elaboração e utilização será, necessariamente, o reflexo de uma opção política. Some-se a isto, o fato de que o Brasil não possui um critério oficial de mensuração de pobreza, de modo que os termos "pobre", "pobreza" ou "extrema pobreza" podem assumir diferentes significados de acordo com o critério empregado. À guisa de ilustração, entre aquilo que o IBGE considera como os principais indicadores de pobreza monetária utilizados no Brasil, todos com base no limite de renda domiciliar mensal per capita, há nada menos que três diferentes linhas de pobreza, e cinco de extrema pobreza, sendo as de valores mais baixos entre elas justamente aquelas adotadas pelo PBF (R$ 179 para pobreza e R$ 89 para extrema pobreza) [4], agora substituídas pelas do PAB (R$ 210 e R$ 105, respectivamente). Isto, se não mascara uma realidade, como mínimo confunde o público não especializado.

No entanto, a restrição ao universo de beneficiários do PAB não se dá exclusivamente por meio de critérios de renda. Para além dos requisitos específicos de cada prestação, o programa se destina às famílias em extrema pobreza, qualquer que seja a sua composição, e às famílias em situação de pobreza que possuam gestantes, nutrizes ou pessoas menores de 21 anos (artigo 4º, § 2º). Ou seja, as pessoas que se encontram acima da linha de extrema pobreza, mas abaixo da linha de pobreza, não necessariamente terão um mínimo de renda assegurado por algum dos benefícios do PAB. Ainda que, nos termos do artigo 2º, II, do Decreto nº 10.919/2021, durante o ano de 2022 o valor pago no âmbito do PAB será complementado pelo Benefício Extraordinário, de modo que cada família receberá, pelo menos, R$ 400 mensais, esta medida não é um elemento permanente do PAB e não há qualquer garantia de que será mantida após o encerramento do exercício de 2022.

A priori, a escolha de mais de um quesito para se definir a situação de vulnerabilidade social, e assim direcionar a atenção às camadas mais necessitadas da população, pode até se apresentar coerente tanto com o que a CF dispõe sobre a RBF, quanto com o que o texto da Lei nº 10.835 estabelece sobre a caracterização das etapas graduais da RBC. Todavia, no que se refere à primeira etapa da implantação da RBC, a decisão do STF no MI 7.300, que utilizou como referência as linhas de pobreza e extrema pobreza então adotadas pelo PBF, não contempla qualquer critério além da renda para determinação de situação de vulnerabilidade econômica.

Ademais dos requisitos específicos de cada benefício financeiro ou auxílio do PAB, o artigo 18 da Lei nº 14.284/2021 estabelece como condicionalidades genéricas a serem cumpridas para a manutenção do status de família beneficiária do programa aquelas, segundo critérios a serem fixados pelo regulamento, relativas à realização do pré-natal, ao cumprimento do calendário nacional de vacinação, ao acompanhamento do estado nutricional e à frequência escolar mínima. Deve-se sublinhar que uma coisa é considerar diversos elementos para a caracterização multidimensional da situação de pobreza ou vulnerabilidade social, e outra bastante diferente — e constitucionalmente questionável — é impor às pessoas determinados comportamentos sociais como condição para assegurar-lhes uma parte do mínimo vital, núcleo mais elementar do mínimo existencial. Como já mencionado na coluna anterior, a exigência de tais condicionalidades, alheias à caracterização da situação de vulnerabilidade, parece extrapolar o âmbito de conformação deixado ao Legislativo pelo parágrafo único do artigo 6º da CF.

Por razões semelhantes, resta difícil considerar que o PAB seja uma fase da implementação da RBC sem que se desvirtue a natureza incondicional do objeto previsto na Lei que a instituiu. Embora não pareça ser o caso, uma vez que a Lei nº 14.284/2021 expressamente apresenta o PAB como "uma etapa do processo gradual e progressivo de implementação da universalização da renda básica de cidadania a que se referem o caput e o § 1º do artigo 1º da Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004", não se pode negar a possibilidade formal da derrogação tácita da Lei da RBC por outra norma de igual estatura. Entretanto, nesta hipótese, mesmo que — sob a ótica da proibição da prestação insuficiente — o resultado fosse uma estrutura normativa eficaz para a segurança de renda coerente com a sua função na garantia dos mais primários aspectos do mínimo existencial, ela também deveria passar pelo crivo do princípio da proibição do retrocesso social. Há de se admitir que isto não seria uma tarefa simples quando o paradigma reside na avançada opção normativa feita pelo Legislativo em 2004, ao dar um corpo legal, por meio do direito à RBC, ao espírito constitucional da proteção ao mínimo vital.

Como se isso já não fosse suficiente para descaracterizar o cumprimento da decisão proferida no MI 7.300, não cessam aí os fatores que impedem que o PAB seja, materialmente, uma efetiva implementação da primeira fase da Lei nº 10.835/2004. Segundo a Lei nº 14.284/2021, o Benefício de Superação da Extrema Pobreza, única prestação permanente do PAB que leva em conta exclusivamente o critério de renda, "corresponderá ao valor necessário para que a soma da renda familiar mensal e dos benefícios financeiros supere a linha de extrema pobreza" (artigo 4º, § 7º, III). Ou seja, trata-se de uma complementação de renda, um valor variável, e não atende o objeto da Lei nº 10.835, cujo artigo 1º, § 2º determina que "o pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos".

Com todas estas questões colocadas, e muitas outras que não cabem nesta breve reflexão, o tema não pode ser ignorado pela comunidade jurídica. De toda forma, no sentido de garantir as condições materiais à dignidade da pessoa humana e da consecução do objetivo de erradicar a pobreza, espera-se dos poderes constituídos algo mais do que determinar quem são as pessoas elegíveis a abrir a estreita porta do labirinto burocrático que, muitas vezes, não faz mais do que conectar o salão da extrema pobreza ao da pobreza.

Por derradeiro, levando em conta que neste ano de 2022, uma das expressões mais viscerais da pobreza, a fome, tem alcançado recordes no Brasil, não registrados há décadas, a concretização do Direito Fundamental à Renda Básica Familiar, se apresenta como tarefa urgente, posto que em causa não somente (o que já é suficientemente grave) o comprometimento do mínimo existencial para uma vida digna de dezenas de milhões de pessoas, mas gravemente violado o direito a um mínimo vital, ou seja, o próprio direito à vida. A esperança que nos move vai no sentido de que, de algum modo, o conteúdo das duas colunas sobre o tema possa contribuir para a instigação do debate e a adoção de soluções para o problema.

 


[1] Lena Lavinas afirma que a opção pela implementação gradual da RBC, que não constava na redação inicial do projeto que deu origem à Lei nº 10.835/2004, pode ser interpretada como resultado de uma negociação de última hora que, em busca da coalização política para sua aprovação, resultou na desfiguração da lei que, pela primeira vez, faria universal o direito ao benefício monetário incondicionado. Vide LAVINAS, Lena, Brazil: The Lost Road to Citizen’s Income, in: LO VUOLO, Rubén M (Org.), Citizen’s income and welfare regimes in Latin America: from cash transfers to rights, New York, Palgrave Macmillan, 2013, pp. 40-41.

[2] MI 7300, rel. min. Marco Aurélio, rel. p/ Ac.: min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe-167, 23/8/2021.

[3] Entre todos, vide SALAMA, Pierre; DESTREMAU, Blandine. O tamanho da pobreza. Economia política da distribuição de renda. Rio de Janeiro: Garamond, 2001, cap. 4.

[4] IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2021 pp. 58–60. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101892.pdf. Acesso em: 21 jun. 2022.

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