Paradoxo da Corte

Prevalência dos direitos humanos sobre a imunidade de jurisdição

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

21 de junho de 2022, 8h00

Anoto que o site do Superior Tribunal de Justiça noticiou, na semana passada, dois importantes julgamentos que envolveram uma mesma questão acerca de imunidade de jurisdição.

Spacca
Pela relevância do assunto e da situação processual, que ensejou a aplicação do artigo 1.040, inciso II, do Código de Processo Civil, entendo oportuno tecer breve comentário na presente coluna sobre a inusitada questão.

Todos nós sabemos que os estados estrangeiros detêm imunidade de jurisdição, tanto na esfera civil quanto na criminal. A Convenção de Direito Internacional Privado — Código de Bustamante, de 1928, em vigor no Brasil, estabelece a incompetência dos juízes e tribunais brasileiros para conhecer e julgar questões que envolvam os Estados contratantes (artigo 333).

E, assim, tal regra foi aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça na oportunidade em que instado a examinar recurso que tinha por objeto pedido de indenização, formulado contra a República Federal da Alemanha, deduzido por descendentes de tripulantes do barco de pesca Changri-lá (cidadãos brasileiros civis), em julho de 1943, na região da costa de Cabo Frio, que foi afundado por disparos do submarino nazista U-199.

Prevaleceu, portanto, o entendimento de que a República Federal da Alemanha não se subordina à jurisdição nacional para responder à ação de indenização por danos morais e materiais decorrentes de ofensiva militar realizada durante a 2ª Guerra Mundial, diante da imunidade acta iure imperii revestir-se de caráter absoluto (RO nº 60/RJ, relator min. Marco Buzzi, 2ª Seção, julg. 9.12.2015, DJe 19.2.2016).

Em sucessivo aresto, a 4ª Turma, no julgamento do Recurso Ordinário nº 109/RJ, da relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, referendou tal orientação nos seguintes termos:

"Embora contrário ao entendimento pessoal deste relator, apresentado quando do julgamento do RO 60/RJ, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firmou-se no sentido de que a República Federal da Alemanha não se submete à jurisdição nacional, para responder à ação de indenização por danos morais e materiais, decorrentes de ofensiva militar realizada durante a Segunda Guerra Mundial, em razão de a imunidade acta iure imperii revestir-se de caráter absoluto."

Ademais, no Recurso Ordinário nº 76/RJ, interposto também por familiares de uma das vítimas do mesmo incidente, visando a afastar a prescrição da pretensão condenatória, então reconhecida pelas instâncias ordinárias, a mesma 4ª Turma, com voto condutor do ministro Luis Felipe Salomão, ressalvada a sua opinião quanto à imprescritibilidade em matéria de violação a direitos humanos, acabou curvando-se ao posicionamento sedimentado naquela Corte de Justiça, qual seja, a imunidade do Estado estrangeiro.

Todavia, mais recentemente, em agosto de 2021, sobreveio o julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário nº 954.858/RJ (tema 944 da repercussão geral), pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, da relatoria do ministro Edson Fachin, que igualmente tinha por objeto o caso do bombardeio do barco Changri-lá, no qual restou decidido que: "os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição".

Importa frisar que esse entendimento já havia sido ressalvado pelo ministro Luis Felipe Salomão, quando do aludido julgamento do Recurso Ordinário nº 60/RJ, pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que a República Federal da Alemanha "não poderia encontrar abrigo na imunidade de jurisdição para escapar das consequências decorrentes de ilícito, seja em razão da ofensa a normas que regulamentam os conflitos armados, seja por inobservância dos princípios que regem os direitos humanos".

Assim, diante da superação da anterior orientação, a 4ª Turma, em atenção à regra do artigo 1.040, inciso II, do Código de Processo Civil, ao exercer o juízo de retratação nos Recursos Ordinários números 109/RJ e 76/RJ, que estavam sobrestados, teve de rever os seus precedentes, no sentido de considerar possível a relativização da imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro, na hipótese de atos ilícitos praticados no território nacional que violem direitos humanos.

Com esse novo fundamento, o colegiado deu provimento, por unanimidade, aos dois recursos ordinários para determinar o seguimento de ações indenizatórias, no foro da Justiça Federal, contra a República Federal da Alemanha.

O relator dos processos, ministro Luis Felipe Salomão, no respectivo relatório dos votos, destacou que a 4ª Turma havia negado provimento a esses recursos com base na anterior jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que, como acima anotado, sustentava a imunidade absoluta da nação estrangeira por atos de guerra (RO nº 60, AgRg no RO nº 107).

No julgamento do Recurso Ordinário nº 76/RJ, a turma julgadora reconheceu a imprescritibilidade, inclusive para os sucessores, da pretensão de reparação de grave violação à dignidade da pessoa humana, causada por conduta praticada sob ordem de dirigentes de Estado estrangeiro, colhendo-se do voto condutor o seguinte trecho:

"No caso dos autos, uma vez reconhecida a imprescritibilidade, inclusive para os sucessores, da pretensão de reparação de grave ofensa à dignidade da pessoa humana causada em virtude de conduta — omissiva ou comissiva — praticada a mando ou no interesse de detentores de poder estatal (AgRg no RE nº 715.268/DF, relator Min. Luiz Fux, 1ª Turma, julg. em 6.5.2014, DJe 23.5.2014) e uma vez constatada a superação (overruling) da jurisprudência desta Corte, a partir da fixação da tese vinculante pelo Supremo Tribunal Federal (Tema 944 da sistemática da repercussão geral: 'Os atos ilícitos praticados por estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição' afigura-se impositiva a reforma da decisão extintiva da ação indenizatória, cujo julgamento deverá retomar o seu devido curso.

Ante o exposto, no exercício do juízo de retratação encartado no inciso II do artigo 1.040 do Código de Processo Civil, dou provimento ao recurso ordinário para cassar a sentença e as decisões exaradas nesta Corte…"

Acrescente-se, por fim, que tais precedentes se afinam com a prevalência reconhecida pela nossa ordem jurídica, na Constituição Federal, "aos direitos humanos, seja na ordem interna (artigo 5º), como direitos fundamentais do cidadão, seja na ordem externa, como princípios norteadores das relações internacionais do país (artigo 4, inciso II)".

Verifica-se, pois, que, com o provimento dos indigitados recursos ordinários para anular as anteriores decisões, afastando-se a prescrição e a imunidade da jurisdição da Alemanha, restou determinado o retorno dos autos ao juízo de primeiro grau, para o prosseguimento das ações indenizatórias.

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