Opinião

O bafômetro e o direito de não produzir provas contra si

Autor

  • Wanderson Carlos Medeiros Abreu

    é advogado atuante nas áreas Criminal Previdenciário e Trabalhista mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Estadual do Maranhão (UFMA) integrante do Núcleo de Estudos em Direito Constitucional da UFMA pesquisador consultor e parecerista jurídico.

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19 de junho de 2022, 9h07

A polêmica "Lei Seca" (Lei nº 11.705/2008) ganhou um caminho especial no mês passado. É que o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, não só decidiu pela constitucionalidade de pontos considerados controversos no Código de Trânsito Brasileiro, a exemplo do limite zero de álcool para motoristas, como também disse que a punição com multa e possibilidade de suspensão da CNH por 12 meses, em caso de recusa do motorista à utilização do bafômetro (ou etilômetro) é totalmente constitucional.

O problema é que a tal unanimidade ficou restrita à Suprema Corte!

Mas o que exatamente pode ter de errado na decisão do STF que desagradou muitos juristas? Ele pode decidir sobre matéria penal? Pode. A própria Constituição assim o garante. Apesar disso, a corte brasileira afirmou que não se trata de uma invasão à seara criminal, já que apenas ratificou uma determinação administrativa, prevista no CTB. Então, se já existe uma lei e o Supremo Tribunal não inovou e a punição fica restrita ao âmbito administrativo, não tem muito o que reclamar, certo? Errado, caro leitor! É o que veremos nos tópicos a seguir:

1. Do direito de não produzir provas contra si mesmo
Pergunte a qualquer pessoa sobre seus direitos básicos, sem mesmo conhecer a Constituição. Provavelmente, uma das respostas colhidas será: "tenho o direito de ficar calado" ou "tenho o direito de responder apenas na presença de meu advogado". Essa pessoa pode não saber, mas acabou de invocar o princípio "Nemo tenetur se detegere", que basicamente é uma garantia de não autoincriminação de todo cidadão (QUEIJO, 2003), consagrado a partir do Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 8º, §2º, alínea g, conforme se expressa:

"Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada (…)" (grifo do autor)

A principal crítica com relação à decisão do Supremo foi a possível violação a tal princípio, na medida em que o cidadão tem o direito de não assoprar no bafômetro e, assim, produzir provas contra si.

Ou seja, o referido princípio se equivale ao que conhecemos como "Princípio da Presunção da inocência", previsto constitucionalmente no artigo 5º, inciso LXIII, traduzido na seguinte redação: "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado", ainda que tal dispositivo não seja realmente uma precisão técnica do princípio, na medida em que parece restringir os direitos expressos apenas aos presos (AVENA, 2017).

Outra problematização que pode ser mencionada sobre a utilização dos bafômetros e sua legalidade é que, com essa decisão recente do STF, com força de repercussão geral e sem qualquer ressalva quanto aos direitos do cidadão, a corte brasileira pode acabar fomentando a insegurança jurídica no ordenamento brasileiro, pois, uma vez violado tal princípio basilar dos direitos fundamentais da Carta constitucional brasileira, outros também poderiam ser descumpridos, a qualquer momento. Não só isso. Ao declarar a constitucionalidade das penalidades previstas no CTB a quem se recusar em aferir sua capacidade toxicológica no bafômetro, o próprio Supremo estaria confirmando que tal equipamento goza de uma presunção absoluta de veracidade como meio de prova.

2. Da responsabilidade do agente condutor de veículo
Por outro lado, houve quem declarasse acertada a decisão do Supremo Tribunal Federal. Vamos aos argumentos favoráveis à decisão. De forma objetiva, quem defende a posição do STF sobre a constitucionalidade da "Lei seca" e da necessidade do uso de bafômetro (inclusive, das penalidades, em caso de recusa) se baseia na aplicação do próprio Código de Trânsito Brasileiro. A responsabilidade do agente condutor do veículo fica evidente, ao discorrer sobre os dispositivos contidos na referida lei federal de 1997, destacando-se os artigos 27, 28, 65, §3º do 67-C, 67-E, 87, 148, 150, 160, 165, 225, 278, dentre outros.

Vejamos o que enuncia o art. 28:

"Art. 28. O condutor deverá, a todo momento, ter domínio de seu veículo, dirigindo-o com atenção e cuidados indispensáveis à segurança do trânsito." (grifo do autor)

A partir da interpretação do artigo acima, deriva-se o entendimento de que é responsabilidade do condutor zelar pela sua integridade e de terceiros, a partir do momento em que decide controlar (dirigir) um veículo automotor. É sua obrigação, portanto, evitar qualquer substância psicoativa que altere suas funções cognitivas a fim de impedir qualquer prejuízo a sua atenção no controle de um veículo. Até aqui parece muito convincente, até para os mais críticos à Lei Seca, que "beber e não dirigir" parece ser um lema adequado a todo condutor.

O ponto de divergência começa justamente no equipamento utilizado para aferir a quantidade de substância psicoativa presente no sangue (ou no ar alveolar [1]). O bafômetro (ou etilômetro), segundo a corrente que criticou a recente decisão dos ministros, poderia estar gozando de uma presunção absoluta de veracidade, na medida em que confirmar as penalidades, em caso de recusa do condutor, é também afirmar que sua utilização seria obrigatória para todo aquele que fosse requisitado numa operação fiscalizadora (blitz).

Mas os que defendem a constitucionalidade do equipamento e das penalidades previstas, em caso de recusa, afirmam que tal presunção teria um tom exagerado, já que o próprio Código de Trânsito do Brasil prevê outras medidas a serem utilizadas pela autoridade de trânsito a fim de comprovar que o condutor estaria dirigindo o veículo com suas funções psicomotoras totalmente alteradas. Além disso, a recusa em utilizar o bafômetro não seria exatamente uma prova de presunção da embriaguez, pois, há possibilidade de recorrer e demonstrar, por exemplo, que a abordagem do agente não ocorreu de forma adequada, gerando desconforto e abuso de autoridade entre os envolvidos.

Sobre a questão da possível violação ao princípio "Nemo tenetur se detegere" (de não produzir provas contra si), os defensores afirmam que a decisão do Supremo se restringiu a uma etapa administrativa e não haveria caráter criminal. Mas, que, ainda que houvesse uma atenuação de tal princípio, nenhum pode ser considerado absoluto (CANOTILHO, 2003) e, nesse caso, os guardiões da Constituição estariam privilegiando outro princípio: o do direito à vida.

3. Constitucional ou não?
Diante dos dois pontos de vista acerca da recente decisão sobre a constitucionalidade das penalidades previstas no CTB para quem se recusar a utilizar o bafômetro numa abordagem de trânsito, ainda pode figurar a dúvida de qual seria a posição do autor sobre a polêmica em tela. Constitucional ou não? Acertada ou extrapolada a decisão do Supremo sobre a constitucionalidade da "Lei Seca"?

Antes de responder, quero trazer alguns dados. Desde 2008, quando a "Lei Seca" entrou em vigor no país, um limite de teor alcoólico foi estipulado para caracterizar crime de trânsito ao motorista que dirige sob a influência de substância psicoativa (em 2012, tal limite ficou mais próximo do zero).

Até então, não havia um critério tão objetivo para configurar a embriaguez ao volante. Ademais, conforme levantamento feito pelo Sistema de Informações de Mortalidade, do Ministério da Saúde, houve uma redução de mais de 14% do número de mortes por acidentes no trânsito em dez anos da lei (considerando até 2018, portanto) [2].

Os dados demonstram, portanto, que a "Lei Seca" vem funcionando como medida de combate não só aos que insistem em beber e dirigir, mas como uma ferramenta de conscientização da população sobre o respeito às normas de trânsito. Ok, mas e o bafômetro? Então o autor considera acertada a decisão do Supremo sobre as penalidades previstas no CTB como constitucionais?

Se não ficou evidente com os dados trazidos em tela, agora pode-se deixar bem clara a posição do autor: Sim, considero acertada a decisão do Supremo. E explico o porquê, antes que apontem que os argumentos e dados podem ter sido utilizados de forma apelativa para demonstrar uma suposta violação ao "princípio da não autoincriminação". Primeiro ponto: conforme já explanado no tópico anterior, a recusa na utilização do bafômetro, por si só, não é prova de embriaguez ao volante.

As penalidades podem ser entendidas como uma caracterização de desobediência ao agente, por exemplo, que goza de fé pública. Ainda que não existisse tal aparelho, não seria (e nem é) difícil para o agente de trânsito identificar qualquer alteração na capacidade cognitiva do condutor. Ou seja, na verdade, o aparelho acaba funcionando como um critério objetivo na hora da detecção, já que não depende APENAS de uma interpretação subjetiva do agente, o que poderia levar a decisões injustas.

Segunda questão: "Eu bebi apenas um copo, é justo eu ser tratado da mesma forma que uma pessoa que ficou visivelmente alcoolizada?". Apesar desse ponto específico não ter sido objeto desse artigo, é preciso destacar que cada organismo reage de uma forma diferente ao álcool. Então, seria difícil para o legislador estipular um padrão diferente do zero que atendesse a todas as situações.

Isso então é motivo para que o Supremo seja legitimado a violar princípios constitucionais, como a presunção de inocência? Não. E, honestamente, não considero uma transgressão ao Princípio supracitado. Pois, a recusa pode continuar existindo. Só que agora com as penalidades administrativas confirmadas. No máximo, posso concordar numa ponderação em que se privilegie o direito à vida.

Mas se ainda assim não fui convincente, não tem problema. Como eu disse no início, a unanimidade do entendimento ficou restrita à Suprema Corte! Não espero e nem quero que todos concordem comigo. Por isso, discordâncias são muito bem-vindas!

Se você tem uma dúvida, comentário, acréscimo ou sugestão de correção, sinta-se à vontade para comentar logo abaixo! E lembrem-se: se beberem, também existe o bafômetro! Se precisar de mais informações sobre recursos contra penalidades de multas de trânsito, procure um advogado especialista.


REFERÊNCIAS:
AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo Penal. 9. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
_________.Código de Trânsito Brasileiro – CTB – LEI Nº 9.503, DE 23 DE SETEMBRO DE 1997.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.
QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo: (o princípio nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal). São Paulo: Saraiva, 2003.


[1] De acordo com o exame realizado. No caso de exame de sangue, o CTB estipula o limite de 6 decigramas por litro de sangue; no caso de exame com aparelho que ateste o ar alveolar, o limite cai para 0,3 miligrama por litro de ar alveolar (artigo 306, do CTB).

[2] E que a "Lei Seca" teria poupado 40 mil vidas no trânsito e mais de 230 mil pessoas não teriam ficado com invalidez permanente, de acordo com uma pesquisa realizada pela Escola Nacional de Seguros. Conforme extraído em: CNT. Uma década de Lei Seca: veja 10 fatos que mostram os impactos da norma. 2018. Disponível em: https://www.cnt.org.br/agencia-cnt/10-fatos-lei-seca-uma-decada-vigencia. Acesso em: 22 de maio de 2022.

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  • é advogado atuante nas áreas Criminal, Previdenciário e Trabalhista, mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito e Instituições do Sistema de Justiça da Universidade Estadual do Maranhão (UFMA), integrante do Núcleo de Estudos em Direito Constitucional da UFMA, pesquisador, consultor e parecerista jurídico.

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