A embriaguez como causa de agravamento intencional do risco
5 de fevereiro de 2022, 7h12
Há muito se debate o tema, de extrema relevância para o setor securitário nacional: a embriaguez pode ser considerada como hipótese de agravamento intencional do risco segurado no seguro de vida, apto, por conseguinte, a eximir a seguradora da obrigação de pagar a indenização securitária, se houver prova do nexo causal entre o consumo de bebida alcoólica e o respectivo sinistro?
Desde a edição do Enunciado 620/STJ da súmula da corte superior [1], os Tribunais de Justiça de todo o país vêm, sistematicamente, concluindo que a embriaguez, mesmo diretamente responsável pela ocorrência do sinistro, não eximiria a seguradora do pagamento de indenização securitária, ainda que o segurado estivesse dirigindo sob os nefastos efeitos do álcool. Ou seja, ainda que o segurado estivesse cometendo o crime tipificado no artigo 306, caput, do Código de Trânsito Brasileiro, essa prática ilícita não afastaria o dever de indenizar da seguradora com a qual o embriagado contratou seguro de vida.
Essa orientação não reflete, todavia, a ratio decidendi da grande maioria dos precedentes que antecedeu a edição do enunciado da Súmula nº 620/STJ [2], nem dos elementos de convicção que foram invocados pela 2ª Seção na sua definição, como, por exemplo, o disposto na Carta Circular Susep/Detec/GAB nº 08/2007, editada pela Superintendência de Seguros Privados (Susep) [3].
Na verdade, ao revés do que vem sendo considerado pelos tribunais, definiu-se nos julgamentos que deram embasamento ao enunciado da Súmula 620 do STJ que a embriaguez não pode ser enquadrada como hipótese de exclusão do risco segurado, capaz, por si só, de afastar o direito à indenização.
Não obstante, a embriaguez, causadora de acidente automobilístico, deve ser, como é intuitivo, considerada como causa de agravamento do risco segurado, suficiente para afastar a indenização desde que comprovado o agravamento intencional do risco e o nexo de causalidade entre esse agravamento e o sinistro.
Assim, em sentido diverso com o que se buscou com a edição da Súmula nº 620, a matéria não está pacificada na jurisprudência. Muito ao contrário, o assunto continua sendo reiteradamente levado a julgamento perante a corte superior, com julgamentos dessemelhantes.
Constatada essa circunstância, no ano de 2020, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, na qualidade de presidente da Comissão Gestora de Precedentes (Portaria STJ nº 299/2017), qualificou os Recursos Especiais nºs 1.866.860/RS e 1.862.665/SP como representativos da seguinte controvérsia: "[I]ndenização prevista em contrato de seguro de vida em caso de sinistro causado pelo segurado em estado de embriaguez" (Controvérsia nº 57/STJ). A proposta de afetação, no entanto, foi posteriormente afastada pela 3ª Turma de Direito Privado daquela corte superior, sob o fundamento de que a matéria precisaria ser objeto de melhor análise. Em razão disso, a proposta sequer chegou a ser submetida ao colegiado da 2ª Seção, que teria a competência para definir pela afetação e fixação do tema, na forma do que determina o artigo 256-E do Regimento Interno do STJ.
A verdade é que, além ter sido editado após um único julgamento unânime da 2ª Seção, em sede de embargos de divergência (o que por si só comprova que havia divergência jurisprudencial àquela altura), o Enunciado nº 620/STJ teve como um de seus principais elementos de convicção a já mencionada Carta Circular Susep/Detec/GAB nº 08/2007.
A referida norma editada pela Susep, entretanto, tinha a finalidade precípua de orientar as seguradoras a não excluírem de suas respectivas apólices de seguro de vida a cobertura de sinistros pelo simples fato de o segurado se encontrar em estado de embriaguez. Ou seja, defendia-se que a embriaguez não poderia, por si só, ser utilizada como motivo suficiente para a negativa de cobertura, independentemente das circunstâncias em que ocorrido o sinistro.
A autarquia jamais buscou vedar que a embriaguez fosse considerada no contrato como hipótese de agravamento intencional do risco objeto do seguro contratado, suficiente, caso efetivamente demonstrado o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez do segurado e o respectivo sinistro, para afastar a obrigatoriedade de pagamento da indenização securitária, nos termos do artigo 768 do Código Civil.
O complemento ao parecer da Procuradoria Federal junto à Susep, que embasou a referida circular — inclusive citado expressamente nela —, foi enfático ao estabelecer essa diferença entre exclusão de risco e agravamento de risco. O parecer da Procuradoria Federal junto à Susep concluiu que o simples consumo de bebida alcoólica não pode constar da lista de riscos excluídos das apólices de seguro de vida; mas admitiu, expressamente, que esse consumo possa ser tido como fator de agravamento de risco, sobretudo nas hipóteses de embriaguez ao volante, apto a eximir a seguradora da obrigação de pagar a indenização securitária, sempre que houver prova do nexo causal entre o consumo de bebida alcoólica e o respectivo sinistro.
E, nesse mesmíssimo sentido, há inúmeros precedentes do Superior Tribunal de Justiça, alguns deles proferidos inclusive após a edição do Enunciado nº 620/STJ [4], no sentido de que a embriaguez não pode ser utilizada como excludente absoluta do dever indenizatório no seguro, mas pode, sim, ser analisada como causadora de agravamento do risco [5].
Em outros termos, conquanto a embriaguez não possa ser considerada, isoladamente, para a negativa de pagamento da indenização, ela pode e deve ser utilizada para a análise acerca de eventual agravamento de risco por parte do segurado, de modo que, se houver prova do agravamento intencional do risco, o segurado perderá o direito à garantia prevista no contrato, conforme previsto no artigo 768 do CC/02.
E, diga-se mais, o simples fato de o Código Civil estipular uma regra objetiva a respeito do pagamento da indenização securitária nos casos de suicídio do segurado não altera em nada esse raciocínio.
O agravamento do risco, no caso de temerária direção de veículo sob os efeitos do álcool, é tão inequívoco que, para a configuração do crime previsto no artigo 306, caput, do CTB, não se faz necessária sequer a prova de que o sujeito embriagado estava conduzindo o veículo de maneira temerária ou anormal; basta a prova de que estava conduzindo-o sob os efeitos de bebida alcoólica [6].
Assim, garantir o pagamento da indenização securitária, nessas circunstâncias, é o mesmo que dizer que, nos contratos de seguro de vida, não há exigência para que o segurado haja de boa-fé e com cuidados elementares ao longo de sua execução, com a observância de regras básicas para evitar o agravamento do risco contrato.
Por isso, a interpretação que vem sendo conferida pelos tribunais ao Enunciado nº 620/STJ, no sentido de que a embriaguez não pode ser considerada sequer como hipótese de agravamento de risco — e mesmo no caso de cometimento de ilícito penal, como é a hipótese de condução de veículo automotor sob os efeitos de bebida alcoólica —, viola não só a regra geral prevista no artigo 768 do CC/02 como também o princípio da boa-fé objetiva inerente aos contratos de seguro (CC/02, artigo 422), aplicável mesmo se o contratante do seguro é consumidor (CDC, artigo 4º, III).
E essa interpretação equivocada, deve-se salientar, certamente impacta nos custos da contratação dos seguros de vida no país.
Daí a pertinência de que esta questão seja afetada para julgamento pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe, em última instância, a interpretação sobre as regras de Direito infraconstitucionais. Somente a afetação do tema no âmbito dos recursos repetitivos viabilizará um aprofundado debate acerca do tema, com ampla participação dos setores envolvidos e da própria Susep (signatária da Carta Circular Susep/Detec/GAB nº 08/2007), para que sejam rediscutidos e problematizados os contornos do enunciado nº 620/STJ.
Não se pode mais admitir, no nosso estágio de formação do Direito à luz das regras constitucionais e dos princípios processuais, que controvérsias relevantes virem um mero "jogo de sorte" no âmbito das cortes superiores em Brasília.
Na prática forense, o que se constata, em prol da superestimada celeridade, por vezes, são as decisões proferidas sem elaboração mais técnica e aprofundada, com a utilização, como visto acima, indiscriminada de súmulas sem demonstração, no caso concreto, de sua devida aplicação, nos moldes do que determina o artigo 489, V, do CPC/15.
Esse tipo de atuação foge por completo do que foi pretendido pelo novo Código de Processo Civil. Se queremos, e no nosso entender devemos buscar, que o ordenamento se aprimore cada vez mais, no sentido de convergir para um sistema de precedentes propriamente dito, se faz mister que as decisões que serão utilizadas como precedentes sejam hígidas, coerentes e que detenham um caráter verdadeiramente dogmático.
Concluímos, nessa linha de pensamento, que já é hora de o Superior Tribunal de Justiça, por meio de sua Seção de Direito Privado, se debruçar sobre esta tortuosa questão para o setor de seguros, enfrentando novamente a matéria, agora em sede de recursos repetitivos, de modo a assegurar maior segurança jurídica com relação ao tema.
[1] Súm ula nº 620/STJ: "A embriaguez do segurado não exime a seguradora do pagamento da indenização prevista em contrato de seguro de vida".
[2] Como se infere, por exemplo, o precedente dessa c. Quarta Turma nos autos do AgInt no AREsp nº 1.081.746/SC, expressamente citado dentre os julgados que deram origem ao enunciado 620/STJ.
[3] A Carta Circular Susep/Detec/GAB nº 08/2007, da Susep, simplesmente orientou as seguradoras a não incluírem a embriaguez no rol de riscos excluídos do contrato de seguro de vida
[4] AgRg no AREsp 389.461/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julg. em 05/02/2015, DJe de 13/02/2015; AgInt no AREsp 1360460/MG, relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julg. em 23/03/2020, DJe 25/03/2020; AgInt no AREsp 1282705/MG, relator ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julg. em 13/11/2018, DJe 19/11/2018; STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 1303319/SP, relator ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julg. em 18/03/2019, DJe 20/03/2019
[5] Nessa linha, o eminente Professor Sergio Cavalieri Filho assevera que "(…) estou convencido de que o álcool e a droga ao volante podem dar causa à exclusão da cobertura da apólice do seguro, porque agravaram insuportavelmente os riscos do segurador. (…)" (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10ª ed. São Paulo: Altas, 2012).
[6] MARCÃO, Renato. Embriaguez ao Volante; Exames de Alcoolemia e Teste do Bafômetro: Uma Análise.
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