Ambiente Jurídico

A inviabilidade de atividades mineradoras em áreas tombadas

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

18 de junho de 2022, 8h03

O ponto de partida para a efetiva preservação do patrimônio cultural no Brasil, viabilizando o posterior surgimento do Decreto-Lei 25/1937, conhecido como "Lei do Tombamento", se deu em 1934, com a consagração da proteção ao patrimônio cultural por meio da Constituição Federal promulgada em 16 de julho daquele ano, o que, até então, não era previsto em nosso ordenamento jurídico [1].

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Com efeito, a Carta Magna de 1934 instituiu pioneiramente a função social da propriedade (artigo 133, XVII), bem como estabeleceu os primeiros comandos constitucionais impondo a proteção do patrimônio cultural pelo poder público (artigos 10 e 148). Essas inovações constitucionais assentaram as bases essenciais para a criação de instrumentos legais capazes de garantir eficazmente a preservação dos bens integrantes patrimônio cultural brasileiro.

Dando concretude aos comandos constitucionais, o instituto do tombamento foi previsto no artigo 46 da Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937, que criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Posteriormente, foi regulamentado pelo Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que é ainda hoje a lei nacional sobre tombamento.

A finalidade do tombamento (atualmente consagrado no artigo 216, § 1º da Constituição Federal como instrumento de proteção) é a conservação da integridade dos bens acerca dos quais haja um interesse público pela proteção em razão de suas características especiais, razão pela qual devem ser mantidas as suas feições originais [2].

No que tange ao objeto, o tombamento pode ser aplicado aos bens móveis e imóveis, públicos ou privados, de interesse cultural (a exemplo de quadros, livros, esculturas, obeliscos, edifícios, ruas, praças, conjuntos arquitetônicos, vilas etc.) e ainda a bens naturais (como florestas, cascatas, rios, serras, picos, cânions, cavernas etc.) revestidos de especial relevância.

A possibilidade da proteção de elementos naturais pelo instrumento do tombamento decorre do previsto no artigo 1º, § 2º do Decreto-Lei nº 25/37, que estabelece como passíveis de proteção os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pelo natureza ou agenciados pelo indústria humana.

O ato de tombamento pode ser considerado como de repercussão jurídica dúplice ou mista, uma vez que implica efeito declaratório (declara o valor cultural do bem, valor este que antecede o ato de proteção e o justifica) e também efeitos constitutivos, uma vez que submete o bem tombado a um regime jurídico especial, criando obrigações para o proprietário da coisa, para os proprietários dos imóveis vizinhos, para o ente tombador e mesmo efeitos que se operam erga omnes, atingindo a todos.

O Decreto-Lei nº 25/37 estabelece em seu Capítulo III os diversos efeitos decorrentes do ato de tombamento, sendo inquestionável que a partir da inscrição de determinado bem em um dos livros do tombo ele passa a se submeter a um regime jurídico próprio (que se aproxima muito ao regime jurídico público), com o escopo de assegurar proteção efetiva da coisa contra o abandono, a descaracterização, a destruição, a evasão, a alienação e o deslocamento.

Por isso, como bem ressalta Adilson Abreu Dallari, o tombamento, visando à preservação de um bem, é uma fonte de direitos, deveres e responsabilidades, afetando tanto o particular quanto o Poder Público. E que "positivamente, não tem qualquer sentido, agride a ordem jurídica, é evidente absurdo o tombamento de um bem para assistir passivamente à sua deterioração" [3].

Considerando tal cenário, pergunta-se: mostra-se viável o exercício de atividades de mineração (pesquisa, lavra, desenvolvimento da mina, beneficiamento, armazenamento de estéreis e rejeitos e o transporte de minérios, v.g.) em bens ou áreas protegidos pelo ato de tombamento, a exemplo de montanhas, picos, rios, florestas e outros monumentos naturais ou paisagísticos?

A resposta é, peremptoriamente, negativa.

Como notoriamente sabido, a alteração do aspecto e a degradação do sítio explorado são consequências ínsitas ao desenvolvimento de atividades mineradoras, que causam significativos impactos negativos em detrimento da área intervinda, normalmente com caráter de irreversibilidade, a ponto de ter merecido preocupação do próprio legislador constituinte (artigo 225, § 2º, CF/88).

De acordo com estudos realizados sobre os impactos da mineração [4]:

"Os empreendimentos podem utilizar os melhores mecanismos e procedimentos referentes à gestão ambiental, sejam eles de recirculação de água, maquinários eficientes e limpos, controle dos materiais retirados e programas de recuperação às áreas degradadas; mas, ao encerrar-se a atividade extrativista, o local não será o mesmo e sequer terá as mesmas características iniciais. A paisagem que antes era recoberta por uma faixa de vegetação, ao final dos processos, torna-se uma grande depressão. Com todas as modificações ocorridas, algumas alterações acompanham a nova paisagem, como mudanças no microclima, fauna e flora nativas e o ciclo hidrológico local. Esse impacto final, da inexistência dos materiais que foram retirados não podem ser impossibilitados por nenhuma tecnologia mencionada, apenas amenizados."

De tal sorte, as atividades de mineração são incompatíveis com o regime jurídico estabelecido para os bens tombados que, por força do artigo 17, primeira parte, do Decreto-Lei nº 25/37, em hipótese alguma poderão ser mutilados, demolidos ou destruídos [5], sob pena de caracterização de crime contra o patrimônio cultural brasileiro (artigo 62 da Lei nº 9.605/98), punido com pena de reclusão de um a três anos e multa, além de responsabilização administrativa (artigo 72 do Decreto 6.514/2008 e artigo 17, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 25/37) e civil, esta última pelo regime objetivo (artigo 14, § 1º da Lei nº 6.938/81).

Como bem salienta Paulo Affonso Leme Machado [6]:

"O tombamento é regido, notadamente, pelo Decreto-lei 25/37 que, em seu art. 17, primeira parte, diz que as coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas. As florestas ou outras formas de vegetação e o solo que integrem um sítio tombado não poderão, portanto, ser destruídos pela exploração de recursos minerais, ainda que se proponha uma futura recuperação. O sítio privado ou público que for tombado merece a integral proteção naquilo que eles contém atualmente, que não pode ser modificado antropicamente, a não ser para cuidados de manutenção."

Em tal sentido, há precedente do TJ-MG:

"MANDADO DE SEGURANÇA. ATIVIDADE DE MINERAÇÃO. SERRA DA PIEDADE. TOMBAMENTO. PROVA DE INTERFERÊNCIA NO CONJUNTO PAISAGÍSTICO. LEGALIDADE DO ATO. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO. Não comprovado o fato constitutivo do direito por ausência de liquidez e certeza do direito, e diante da inadequação da via eleita para amparar a tutela jurisdicional reclamada, deve ser confirmada pela instância superior a sentença que denegou a segurança" (TJ-MG; APCV 1.0024.06.046798-2/0011; Belo Horizonte; 6ª Câmara Cível; rel. des. Edilson Fernandes; julg. 28/8/2007; DJEMG 25/9/2007).

No mesmo sentido: TJ-MG — Agravo de Instrumento-Cv 1.0319.18.001282-9/001, relator(a): des.(a) Bitencourt Marcondes, 1ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/11/2018, publicação da súmula em 27/11/2018 e TRF 3ª R.; AC 0008292-36.2001.4.03.6105; 6ª Turma; relª. desª. fed. Diva Prestes Marcondes Malerbi; julg. 21/7/2016; DEJF 3/8/2016.

Vale destacar que a Lei do Tombamento veda, terminantemente, na primeira parte do artigo 17, que as autoridades integrantes do órgão responsável pelo tombamento autorizem qualquer intervenção que mutile ou destrua bens tombados [7]. O eventual descumprimento de tal mandamento, que é cogente e insuperável, implicará nulidade flagrante do ato autorizativo e corresponsabilização pelos danos porventura causados, sem prejuízo da caracterização do crime tipificado no artigo 67 da Lei nº 9.605/98 [8].

Assim, em resumo, quando o tombamento tiver por objeto bens como serras, promontórios, florestas, praias, rios, lagos, cavernas etc., à similitude do que ocorre com as unidades de conservação de proteção integral (artigo 7º da Lei 9.985/2000), o uso da área deve ser apenas indireto, ou seja, não pode envolver consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais ou comprometimento dos atributos que justificaram a sua proteção [9], sob pena de ilicitude e responsabilização daqueles que contribuírem direta ou indiretamente para a violação do ordenamento jurídico vigente.

 


[1] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.

[2] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Introdução do Direito do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: 3i Editora. 2021. p. 176.

[3] DALLARI, Adilson Abreu. Tombamento. Revista de Direito Público. 1988. p. 40.

[4] Os impactos ambientais causados pela atividade mineradora. FERNANDES, Rogério Taygra Vasconcelos et. all. Congresso Técnico Científico da Engenharia e da Agronomia — CONTECC. 2021.

[5] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do Tombamento Comentada. Belo Horizonte: Del Rey, 2014. p. 92.

[6] MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro, 11ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 636.

[7] Sobre o tema o STJ já decidiu: O art. 17 do Decreto-Lei nº 25/1937 contém dois núcleos distintos de proteção dos bens tombados. De um lado, uma proibição absoluta de obras ou atividades que os exponham a risco de destruição, demolição ou mutilação. De outro, uma proibição relativa, já que intervenções de reparação, pintura e restauração – isto é, ações destinadas a conservar o bem — podem ser realizadas, desde que com autorização prévia, expressa e inequívoca do Iphan. O Decreto-Lei nº 25/1937 veda e reprime tanto a destruição, demolição e mutilação total, como a parcial; tanto a comissiva como a omissiva; a que atinge as bases materiais, como a que afeta os aspectos imateriais do bem. Nele, "destruir" e "demolir" são empregados em sentido mais amplo que na linguagem coloquial, pois não se resumem a "derrubar" ou "pôr no chão". "Destruir" inclui modalidades mais tênues e discretas de intervenção no bem tombado ou protegido, como "estragar", "reduzir as suas qualidades", "afetar negativamente de maneira substancial", "inviabilizar ou comprometer as suas funções" e "afastar-se da concepção original". Igual sucede com o verbo "mutilar", que no seu significado técnico-jurídico traduz-se em "cortar" ou "retalhar", e também abarca "causar estrago menor", "alterar fração", "modificar topicamente" ou "deteriorar". (STJ; REsp 840.918; proc. 2006/0086011-1; DF; 2ª Turma; relª minª Eliana Calmon Alves; julg. 14/10/2008; DJE 10/9/2010).

[8] Art. 67. Conceder o funcionário público licença, autorização ou permissão em desacordo com as normas ambientais, para as atividades, obras ou serviços cuja realização depende de ato autorizativo do Poder Público:

Pena – detenção, de um a três anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de três meses a um ano de detenção, sem prejuízo da multa.

[9] Os bens imóveis tombados inserem-se no conceito amplo de espaços territoriais especialmente protegidos e estão ao abrigo da norma constitucional estabelecida no art. 225, 1º., III da Carta Magna.

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