Direto do Carf

Do Carf ao STF: a tributação das pensões alimentícias

Autor

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

15 de junho de 2022, 8h03

Há muito decisão do STF não recebe tamanha atenção quanto a proferida pelo seu Tribunal Pleno, no dia 6 deste mês (aqui, aqui e aqui), que afastou a incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família percebidos pelos alimentados a título de alimentos ou de pensões alimentícias.

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Duas podem ser, ao nosso sentir, as razões principais para tanto: 1) o fato de o objeto de controvérsia tangenciar dois dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) acordados pelos integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU) — "redução de desigualdades" e "parcerias e meios de implementação" [1]; e, principalmente, 2) por trazer à baila como a tributação tem potencial de aprofundar disparidades fundadas em questões de gênero [2].

O artigo 3º da Lei nº 7.713/88 traz que, ressalvadas algumas hipóteses, o IRPF incidirá sobre o rendimento bruto, sem qualquer dedução. O §1º do retromencionado dispositivo, ao seu turno, esclarece constituir rendimento bruto todo o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, os alimentos e pensões percebidos em dinheiro, e ainda os proventos de qualquer natureza, assim também entendidos os acréscimos patrimoniais não correspondentes aos rendimentos declarados. Isso significa que sobre a pensão recebida pelo alimentando, cuja guarda, na maioria dos casos, atribuída à progenitora [3], incide o IRPF.

Por outro lado, por opção político-legislativa, autorizada a dedução das "importâncias pagas a título de pensão alimentícia em face das normas do Direito de Família, quando em cumprimento de decisão judicial, inclusive a prestação de alimentos provisionais, de acordo homologado judicialmente, ou de escritura pública a que se refere o art. 1.124-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 — Código de Processo Civil"ex vi do inciso II do artigo 4º da Lei nº 9.250/1995. Quem paga a pensão alimentícia, pode deduzir a integralidade do desembolso em sua declaração de ajuste anual.

O expressivo volume de autuações que versam sobre a glosa de deduções oriundas do pagamento de pensões alimentícias fez, inclusive, com que o Carf editasse verbete sumular de nº 98, frisando que "[a] dedução de pensão alimentícia da base de cálculo do Imposto de Renda Pessoa Física é permitida, em face das normas do Direito de Família, quando comprovado o seu efetivo pagamento e a obrigação decorra de decisão judicial, de acordo homologado judicialmente, bem como, a partir de 28 de março de 2008, de escritura pública que especifique o valor da obrigação ou discrimine os deveres em prol do beneficiário".

A indigitada súmula foi, entretanto, revogada no ano de 2018, uma vez que não mais refletia o posicionamento dominante do STJ, que não admite a dedução de alimentos que não sejam fixados ou homologados pelo Poder Judiciário. Entende-se que "na determinação da base de cálculo do imposto de renda poderão ser deduzidas as importâncias pagas em dinheiro a título de alimentos ou pensões, desde que precedidas de acordo ou decisão judicial’, portanto as parcelas pagas antes do acordo judicial homologado não poderá ser deduzido da base de cálculo do IRPF" [4].

Da análise dos precedentes proferidos pelo Carf, após a revogação da Súmula de nº 98, resta evidenciada a necessidade não só da homologação do acordo ou da existência de decisão judicial, como ainda prova do efetivo pagamento [5]. Mas engana-se quem conclui que seriam esses os únicos elementos a serem observados. Ainda que judicialmente homologada a pensão alimentícia em favor de ex-cônjuge, "[o]s pagamentos efetuados pelo sujeito passivo (…) que não rompe o vínculo conjugal, tampouco, deixa a residência comum, não possuem natureza de obrigação de prestar alimentos, não sendo dedutíveis da base de cálculo dos rendimentos sujeitos ao IRPF como gastos de pensão alimentícia. Trata-se de pagamentos decorrentes do poder familiar e do dever de sustento e assistência mútua entre os cônjuges, capitulados nos artigos 1.566 e 1.568 do Código Civil Brasileiro, e não do dever obrigacional de prestar alimentos" [6].

Diversas outras autuações têm, por outro lado, como gênese a omissão de rendimentos recebidos de pessoa física decorrentes de pensão alimentícia judicial. Com arrimo no § 1º do artigo 3º da Lei nº 7.713/1988 retrotranscrito, mantida a exigência tributária porquanto "[e]st[aria] sujeita ao pagamento mensal do imposto a pessoa física que receber de outra pessoa física rendimentos em dinheiro, a título de alimentos ou pensões, em cumprimento de decisão judicial, ou acordo homologado judicialmente, inclusive alimentos provisionais. Os rendimentos comprovadamente omitidos na declaração de ajuste, detectados em procedimentos de ofício, serão adicionados à base de cálculo declarada para efeito de apuração do imposto devido" [7].

Com a decisão recentemente proferida pelo STF, no bojo da ADI nº 5.422, cuja observância é obrigatória pelas conselheiras e pelos conselheiros do Carf [8], o desfecho dos julgamentos será outro doravante. Na parte conhecida, julgada procedente a ação "de modo a dar ao art. 3º, § 1º, da Lei nº 7.713/88, ao arts. 4º e 46 do Anexo do Decreto nº 9.580/18 e aos arts. 3º, caput e § 1º; e 4º do Decreto-lei nº 1.301/73 interpretação conforme à Constituição Federal para se afastar a incidência do imposto de renda sobre valores decorrentes do direito de família percebidos pelos alimentados a título de alimentos ou de pensões alimentícias".

De acordo com o relator da ação, ministro Dias Toffoli, falhariam ser as pensões alimentícias classificadas como renda ou provento de qualquer natureza do alimentando, porquanto meros montantes retirados dos acréscimos patrimoniais recebidos pelo alimentante, entregues ao alimentado. Pensões alimentícias, por serem determinadas a partir do trinômio necessidade—possibilidade—proporcionalidade, denotam clarividente papel na manutenção da subsistência e garantia da dignidade daquele que não detém capacidade de prover seu próprio sustento. Acrescenta, por derradeiro, que a despeito de ser possível fazer a dedução dos valores pagos pelo alimentante, a tributação da pensão recebida pelo alimentado configuraria bis in idem. Argumenta que "o recebimento de renda ou de provento de qualquer natureza pelo alimentante, de onde ele retira a parcela a ser paga ao credor dos alimentos, já configura, por si só, fato gerador do imposto de renda. Desse modo, submeter os valores recebidos pelo alimentado a título de alimentos ou de pensão alimentícia ao imposto de renda representa nova incidência do mesmo tributo sobre a mesma realidade, isto é, sobre aquela parcela que integrou o recebimento de renda ou de proventos de qualquer natureza pelo alimentante. Essa situação não ocorre com outros contribuintes" [9].

Merecem destaque as ponderações trazidas, em voto-vista, pelo ministro Gilmar Mendes. Embora reconheça não ser papel do Poder Judiciário atuar de forma a mitigar disparidades de gênero, uma vez que políticas de tal desiderato precisam ser desenhadas por quem detém legitimidade democrática para tanto, reconhece que a forma de tributação das pensões alimentícias dilarga desigualdades já existentes entre homens e mulheres.

Escorado no fato de que, no ano-calendário 2020, apenas 0,0002% do total de deduções com imposto de renda relativamente ao pagamento de pensões alimentícias foram realizadas por mulheres [10], conclui que "[o] sistema, da forma como está desenhado, com o pseudo objetivo de ser neutro, está na realidade financiando o aumento das desigualdades, visto que o destinatário quase que exclusivo da norma exacional é a mulher. Além disso, não estamos diante de uma tributação idêntica ou equiparável entre homens e mulheres, em que a desigualdade seria resultante das condições já existentes de desnivelamento. Ao revés, a dedução da base de cálculo prevista na norma é endereçada predominantemente à população masculina (99,9998%). São, portanto, dois lados da mesma moeda: tributa- se mais a mãe, em compensação à dedução da base de cálculo do pai" [11].

Novos capítulos ainda serão escritos quanto à querela, principalmente em relação à modulação dos efeitos da decisão, que acarreta substancial perda arrecadatória para a União.

Ainda que tenha o IBGE apurado uma queda no número de divórcios em 2020, certo que pode estar o percentual subestimado pelas dificuldades impostas no período pandêmico, não perdendo a temática da tributação das pensões alimentícias sua importância. A verdade é que por ser a alimentação direito social expressamente previsto no artigo 6º da Carta Constitucional brasileira, imprescindível para salvaguarda da dignidade da pessoa humana, fundamento de nossa República, jamais cairá seu estudo em desuso. Mais do que isso: sendo a promoção do bem de todos, sem preconceitos de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de determinação, objetivo expressamente contido na CRFB/88, a tributação das pensões alimentícias merece continuar estar sob os holofotes, seja no âmbito do Carf, seja nos Poderes Judiciário e Legislativo.

 

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[1] As controvérsias postas sob escrutínio ao STF têm sido classificadas de acordo com os objetivos internacionalmente previstos. Conforme esclareceu (aqui) o presidente daquela corte, "[o] alinhamento entre a governança do Supremo Tribunal Federal e os objetivos e metas da Agenda 2030 poderá aprimorar o método de identificação das controvérsias jurídicas submetidas ao Supremo Tribunal Federal e o consequente melhoramento da metodologia de classificação, agrupamento e organização dos processos. Dessa forma, poderão ser priorizados os julgamentos de ações sob a sua competência capazes de impactar positivamente os objetivos e as metas da Agenda 2030. Trata-se não só de avanço na internacionalização da corte como na própria humanização de seus processos institucionais internos. Apesar de desafiadora, esta iniciativa representa um passo crucial em direção à abertura dos canais institucionais e da governança de nossa Corte às múltiplas perspectivas e experiências dos atores da academia, da sociedade civil e do próprio sistema de Justiça. Sem deixar de agir com prudência e responsabilidade, o Supremo Tribunal Federal se firma como uma instituição de vanguarda, aberta à inovação."

[2] É a segunda vez que, recentemente, se debruça o STF sobre a temática. A excepcional coletânea "Supremos Acertos", coordenada pelos professores Fernando Facury Scaff, Heleno Taveira Torres, Misabel Abreu Machado Derzi e Onofre Alves Batista Júnior (pré-venda aqui), a ser lançada no próximo dia 30, às 19h, no Salão Principal da Caixa de Assistência dos Advogados, em Belo Horizonte, traz uma série de artigos que analisam a decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade.

[3] Embora haja um crescimento exponencial da guarda compartilhada que, entre 2014 e 2017, teria triplicado, segundo levantamento do IBGE, muitas o são apenas no papel, assumindo a mulher a responsabilidade pelo cuidado com os filhos do outrora casal.

[4] STJ. REsp nº 1.616.424/AC, rel. min. HERMAN BENJAMIN, 2ª Turma, julgado em 1/9/2016. Em igual sentido: REsp nº 1.665.481/PR, rel. min. HERMAN BENJAMIN, 2ª Turma, julgado em 19/9/2017.

[5] Cf. nesse sentido: Carf. Acórdão nº 2202-007.746, cons. rel. MÁRIO HERMES SOARES CAMPOS, sessão de 12 jan. 2021 (unanimidade); Carf. Acórdão nº 2003-003.826, cons. rel. WILDERSON BOTTO, sessão de 27 out. 2021 (unanimidade).

[6] CARF. Acórdão nº 2202-007.505, cons. rel. MÁRIO HERMES SOARES CAMPOS, sessão de 3 nov. 2020 (unanimidade).

[7] CARF. Acórdão nº 2201-005.725, consª. rel.ª DÉBORA FÓFANO DOS SANTOS, sessão de 7 nov. 2019 (unanimidade).

[8] Nos termos do art. 62 do Ricarf, "fica vedado aos membros das turmas de julgamento do CARF afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade". Entretanto, o disposto não se aplica aos casos de tratado, acordo internacional, lei ou ato normativo que que já tenha sido declarado inconstitucional por decisão definitiva plenária do Supremo Tribunal Federal — ex vi do inc. I do §1º do art. 62.

[9] Minuta de voto disponibilizada no sítio eletrônico do STF antes do pedido de destaque.

[11] Minuta de voto disponibilizada no sítio eletrônico do STF antes do pedido de destaque.

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.

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