Seguros contemporâneos

Seguros de grandes riscos no Brasil: que mercado queremos? (parte 1)

Autores

  • Ilan Goldberg

    é advogado parecerista doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor da FGV Direito Rio e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados.

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

14 de junho de 2022, 16h51

Na qualidade de órgãos reguladores do mercado de seguros no aís, o CNSP (Conselho Nacional de Seguros Privados) e a Susep (Superintendência de Seguros Privados) sempre foram criticados por causa da rigidez imposta aos clausulados elaborados pelas seguradoras, o que, com efeito, decorria do disposto no Decreto-Lei nº. 73, de 1966, especialmente de seu artigo 36, alínea c.

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Contextualizando-o historicamente, o referido decreto foi publicado numa época em que o Estado brasileiro era intervencionista e tinha um papel desenvolvimentista, isto é, entendia-se que era vital ao desenvolvimento da economia brasileira, o que ia ao encontro, e.g., da criação de diversas empresas estatais nos mais variados segmentos de nossa economia.

O Estado, supunha-se, deveria ser forte e criar as condições necessárias ao aquecimento das atividades econômicas. A iniciativa privada, carente de recursos, encontrava-se condicionada à iniciativa pública para, então, fazer frente às suas necessidades. Conveniente lembrar, ainda, que, sob a perspectiva política, o Brasil vivia tempos sombrios, retratados pela ditadura militar.

Sobreveio a Constituição de 1988 e, com ela, todo um capítulo dedicado à ordem econômica[1] — artigos 173 e ss. —, valendo destacar que, logo no artigo 1º, a livre iniciativa (inciso IV) foi qualificada como um dos fundamentos de nossa República, ao lado da dignidade da pessoa humana (inciso III).[2]

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Retornando ao mercado de seguros, pelo menos desde 1966, acostumou-se no Brasil a lidar com clausulados padronizados pela Susep e, pari passu, com a obrigatoriedade de que todo novo contrato fosse previamente submetido à chancela do órgão regulador.

O olhar da Susep, com efeito, sempre esteve vertido à higidez econômico-financeira das seguradoras e à tutela dos consumidores, o que se revelou louvável. Mas, a pensar na tutela da concorrência plena entre os participantes do mercado segurador brasileiro, como conciliá-la com os dois primeiros vetores? Seria possível, ao mesmo tempo, zelar pelas reservas técnicas e pelos direitos dos consumidores, além de estimular a concorrência entre seguradoras?

Formulando a questão em termos mais precisos, a exigência de clausulados padronizados, que, qualitativamente, representavam aos consumidores de seguros rigorosamente o mesmo produto, tonaria viável o fomento à concorrência plena entre os participantes do mercado? A resposta, até mesmo por uma questão de lógica, é negativa. No mercado de seguros ou em qualquer outro mercado, se a concorrência não tocar na qualidade do que é ofertado, mas apenas no preço, é intuitivo que o consumidor nem mesmo poderá escolher o melhor produto. Se as camisas A e B têm o mesmo tecido e durabilidade, variando apenas no preço, é óbvio que o consumidor não terá melhor atendimento baseado na sua escolha.[3] O preço, isoladamente, não pode ser o norte de uma ordem econômica cujo fundamento remete, expressamente, à livre concorrência (artigo 170, inciso IV, da CF).[4]

No mercado de seguros nacional, até bem pouco tempo atrás, a concorrência entre as seguradoras não era exercida de forma plena. Pode-se falar numa "meia concorrência", porque, a bem da verdade, os segurados escolhiam apenas baseando-se no valor do prêmio que iriam pagar. Ninguém colocava luzes sobre a qualidade dos clausulados porque, como dito, da seguradora A à B ou à C, os clausulados eram, basicamente, os mesmos. Vale esclarecer que essa realidade funcionava dessa mesma maneira tanto para seguros massificados, quanto para seguros de grandes riscos, ou seja, o consumidor que quisesse comprar o seguro para o seu celular teria, sob o ponto de vista regulatório, semelhante tratamento empregado à grande petrolífera interessada na aquisição dos seguros às suas plataformas de petróleo. Talvez aqui o leitor já esteja se perguntando: isto faz algum sentido?

A Susep, ao menos nos últimos três anos, vem fazendo um esforço elogiável no sentido de reformar o seu arquétipo regulatório, muito extenso, complexo e de difícil acompanhamento por parte dos agentes regulados (segurados, corretores, seguradoras, resseguradoras etc.). Com o objetivo de promover uma regulação menos intrusiva e mais principiológica, diversos atos normativos foram revogados, sendo substituídos por outros menos detalhistas, zelando-se pela prevalência de uma maior dose de autonomia privada entre os contratantes, movimento respaldado pelo Decreto nº 10.139/2019.

Foi nesse contexto que o CNSP publicou a Resolução nº 407, em 29 de março de 2021, relativa aos contratos de seguros de danos para cobertura de grandes riscos, e que vem causando nos últimos meses alvoroço no mercado.

Em 8 de fevereiro de 2022, o Partido dos Trabalhadores propôs ADI perante o STF, ao argumento de que a referida norma teria tanto uma inconstitucionalidade formal (em virtude de violação ao princípio da reserva legal e da separação dos poderes) quanto uma inconstitucionalidade material (pela violação ao princípio da ordem econômica e do interesse público).[5] Em suma, as principais alegações apresentadas foram no sentido de que a competência para legislar sobre o direito civil e o direito securitário seria da União (artigo 22, incisos I e VII, da CF), e que, assim, o CNSP teria extrapolado as suas competências.

Da petição inicial da referida ADI n° 7.074/DF, extrai-se que o CNSP teria inovado ao:

"ao listar os princípio e valores básicos que deveriam ser observados pelos segurados e tomadores, reforçando tanto no caput como em seus incisos a ideia de ampla liberdade contratual. Vejamos:
Art. 4º Os contratos de seguro de danos para cobertura de grandes riscos serão regidos por condições contratuais livremente pactuadas entre segurados e tomadores, ou seus representantes legais, e a sociedade seguradora, devendo observar, no mínimo, os seguintes princípios e valores básicos:
I – liberdade negocial ampla;
II – boa fé (sic);
III – transparência e objetividade nas informações;
IV – tratamento paritário entre as partes contratantes;
V – estímulo às soluções alternativas de controvérsias; e
VI – intervenção estatal subsidiária e excepcional na formatação dos produtos."

Segue referindo que a resolução teria contrariado normas de hierarquia superior, como, v.g., o artigo 421-A do CC: "os contratos civis e empresariais se presumem paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento desta presunção". Para o requerente, a norma traria uma presunção "como se fosse absoluta no sentido de que há plena capacidade de negociação das condições contratuais pelas partes".

Adiciona que a "a fixação de paridade negocial, criada pelo artigo 4º da Resolução, atua em detrimento de segurados e beneficiários, uma vez que afasta a interpretação contra o predisponente, positivada no artigo 423 do Código Civil que determina ‘quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever- se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente".

A respeito da consensualidade como traço característico dos contratos de seguros, a inicial afirma que "A Resolução cria, ainda, um requisito de forma para um contrato que é consensual e, assim, viola também o artigo 758 do Código Civil e ameaça a eficácia social do artigo 444 do Código de Processo Civil". A violação decorreria do disposto no 4º, § 2º, ao aduzir que: “§ 2° As condições contratuais do seguro deverão ser negociadas e acordadas, de forma que haja manifestação de vontade expressa dos segurados e tomadores, ou de seus representantes legais, e da sociedade seguradora".

Ainda, o CNSP não poderia criar princípios: "O artigo 4º, inciso V, lista o ‘estímulo às soluções alternativas de controvérsias’ como sendo um dos princípios nos seguros de grandes riscos. Ainda que superada a imprecisão do texto — especialmente sobre em que consistiria esse estímulo, por exemplo – trata-se algo inédito na ordem jurídica".

Caminhando para o fim, a petição inicial da ADI refere que o conteúdo de determinadas cláusulas contratuais não poderia ficar ao talante da iniciativa privada, sob pena de ofensa ao princípio constitucional da primazia do interesse público, referindo, nesse particular, à parte final da norma, que cuida de seguros para atividades nucleares, aeronáuticas e marítimas.[6]

O Parecer da Procuradoria Geral da República, com data de 31 de maio de 2022, fora favorável ao acolhimento da ADI, essencialmente por concordar com a questão de forma, não de substância. Em síntese, lê-se: “Cabe ressaltar que tais dispositivos da Resolução CNSP/407/2021 não retiram seu fundamento de validade de nenhuma norma primária. Ocorre, porém, que a produção legislativa sobre direito civil e seguro insere-se na competência privativa da União, por lei ordinária (CF, artigo 22, I e VII)".[7]  

Conforme restará claro na segunda parte desta coluna (que estará disponível nesta quarta-feira, dia 15), não procedem os argumentos do PT e da Procuradoria Geral da República. Além de não se vislumbrar qualquer ofensa à Constituição, a norma em disputa, ao consagrar a diferenciação entre seguros massificados e de grandes riscos — que, diga-se de passagem, é amplamente reconhecida internacionalmente — e diminuir a intervenção da Susep nos clausulados destas, permite a comercialização de coberturas que acolham os efetivos interesses dos segurados e tomadores, à luz de suas particularidades, e torna mais concretos os postulados da Lei da Liberdade Econômica.


[[1] Importante, nessa perspectiva histórica, comparar os textos das Constituições de 1967/1969, com o de 1988, atentando à mudança do papel exercido pelo Estado: “Para uma perfeita percepção da mudança de direcionamento, será útil confrontar os textos do artigo 163 da Constituição de 1967/1969 e do artigo 173 da Constituição de 1988. Ei-los: ‘Art. 163. São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia no regime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais; art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessários aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.’ Enquanto no texto de 1967/1969 se diz ‘são facultados’ a intervenção e o monopólio, o de 1988 determina que a exploração direta de atividade econômica pelo Estado ‘só será permitida’. Enquanto no primeiro caso há uma faculdade aberta ao Estado, no segundo existe uma proibição que permite exceções.” FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 137. (Destacou-se). 

[2] Constituição da República de 1988. "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.” (Destacou-se).

[3] Além do fator preço, não se pode perder de vista que a reputação da seguradora e a qualidade no atendimento também impactavam na escolha do segurador pelo segurado; todavia, a similitude dos clausulados restringia consideravelmente a concorrência entre os players. Para uma análise profunda a respeito da qualidade do produto sob a óptica do direito concorrencial, confira-se: BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Curso de Concorrência Desleal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2022. pp. 80 e ss.

[4] Além do art. 170, inc. IV, da Constituição da República, o seu parágrafo único também é importante à compreensão da questão central discutida: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; (…). Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.” (Destacou-se).

[5] No dia 11 de fevereiro de 2022, dois dias após a distribuição do feito para a relatoria do Ministro Gilmar Mendes no STF, o IBDS requereu o seu ingresso como amicus curiae no julgamento, argumentando: “A pretexto de livrar o mercado de seguros brasileiro das ‘amarras regulatórias’, o CNSP promoveu inconstitucional usurpação de competência privativa do Poder Legislativo da República para legislar sobre a matéria”. No dia 21 de março de 2022, a AGU se manifestou no seguinte sentido: “não se observa a ocorrência de violação a qualquer preceito constitucional, verificando-se, na verdade, que a Resolução 407/2021 do CNSP foi validamente editada no exercício de competência atribuída ao referido órgão e em atendimento ao interesse público”, clamando, com efeito, pelo “não conhecimento da ação direta e, no mérito, pela improcedência do pedido formulado pelo requerente”. Como anexos à sua petição, a AGU juntou aos autos a Nota Técnica SEI nº 7449/2022/ME, feita pela Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos (SEPPI), um parecer da Coordenadoria-Geral de Seguros e Previdência Complementar (PARECER SEI Nº 3024/2022/ME) e um parecer da Procuradoria da Fazenda Nacional (PARECER SEI Nº 2772/2022/ME). Em comum, todos os documentos pugnam pela ausência de mérito da ADI. Posteriormente, no dia 04 de abril, a FENABER e a FENSEG requerem ingresso nos autos, também como amicus curiae, afirmando: “Diferentemente do que quer fazer crer o PT, o CNSP não violou a reserva de poderes com a edição da Resolução CNSP nº 407/2021, pois as diretrizes fixadas pelo Normativo estão totalmente em consonância com as suas atribuições previstas no Decreto-Lei nº 73/1966 e no Decreto nº 60.459/1967. Ademais, as mudanças estão de acordo com a Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), ao estabelecer a liberdade como garantia no exercício de atividades econômicas (art. 2º, inciso I) e impor aos reguladores a realização de análises de custo-benefício e de impacto regulatório a fim de aumentar a racionalidade do processo de regulamentação”. Houve manifestação da Procuradoria Geral da República no dia 31 de maio de 2022, conforme será mencionado doravante neste texto. Até a publicação deste artigo, não havia sido apreciado pelo STF o pedido de concessão de medita cautelar formulado pelo PT para suspender a eficácia da Resolução CNSP nº. 407/2021.

[6] Confira-se “48. É evidente, portanto, que a busca da acentuada autonomia privada, superando-se a necessidade de resguardo e preservação da autoridade do Estado enquanto ente normativo e regulamentador, fere o princípio da primazia do interesse público, a demonstrar a sua absoluta inconstitucionalidade”.

Autores

  • é advogado e parecerista, doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre em Regulação e Concorrência pela Ucam, professor convidado da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento, da Emerj e da Escola de Negócios e Seguros e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

  • é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra, pesquisador visitante do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado (Alemanha), diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil, professor da FGV Direito Rio, da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros, advogado e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados.

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