Opinião

Escolha de Sofia: HC ou MS na impugnação à cautelar

Autores

  • Luiz Augusto Rutis

    é advogado criminalista mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e associado ao escritório Peixoto Bernardes Advogados.

  • Ana Clara Bernardes

    é graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e estagiária no escritório Peixoto Bernardes Advogados.

14 de junho de 2022, 20h39

Um acusado é sujeito à medida de afastamento do cargo (artigo 319, inciso VI do CPP). Passado algum tempo de cumprimento da constrição, percebe-se o surgimento de uma ilegalidade na manutenção da providência, talvez por uma alteração no cenário fático que esvazia os fundamentos do periculum libertatis (rebus sic stantibus). Qual instrumento deve ser utilizado para a derrubada da cautelar: Habeas Corpus ou Mandado de Segurança? Infelizmente, a jurisprudência dos Tribunais Superiores não fornece uma resposta clara.

No STJ, a 6ª Turma compreende que "é admissível a impetração de Habeas Corpus para impugnar a imposição da medida cautelar de suspensão do exercício de função pública, prevista no inciso VI do artigo 319 do Código de Processo Penal, já que, em caso de descumprimento das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares alternativas, poderá ser decretada a prisão preventiva, conforme previsto nos artigos 312, parágrafo único, e 282, §4.º, ambos do CPP" (HC nº 464.864/ES, relatora ministra Laurita Vaz).

A 5ª Turma caminha em um sentido distinto, demandando um plus na constrição para que o remédio heroico seja cabível: "A medida cautelar de afastamento de função pública não afeta diretamente a liberdade de locomoção, sendo inviável, desta forma, a sua correção por meio de habeas corpus ou de seu recurso ordinário, salvo se imposta conjuntamente com a prisão preventiva ou outras medidas cautelares diversas da prisão que possam, de alguma forma, restringir o direito tutelado pela via mandamental, o que não se verifica na espécie" (RHC nº 90.766/MG, relator ministro Jorge Mussi).

A 5ª Turma entende que não há cerceamento do direito de ir e vir quando o afastamento de função é aplicado de forma solitária, por isso, incabível o habeas. Contrario sensu, a 6ª Turma defende que, considerando a possibilidade de um eventual descumprimento implicar conversão para prisão preventiva, o instrumento é cabível.

Se foi determinado tão somente o afastamento do cargo, ao tempo em que a 6ª Turma entende que seria o caso de impetração de habeas corpus, a 5ª Turma conheceria apenas de um mandado de segurança. Se, junto à retirada, estivesse, por exemplo, a proibição de acesso a determinado local, haveria união das duas turmas especializadas pelo cabimento do habeas corpus.

No STF, apesar de certa dissonância inicial, atualmente há posição consolidada em torno do cabimento do mandado de segurança: "O habeas corpus consubstancia garantia constitucional vocacionada, de modo exclusivo, à tutela do direito de locomoção. Nessa medida, a célere via constitucional não se presta a questionar medida cautelar de afastamento de cargo público, ato inapto a alcançar, ainda que potencialmente, a privação ou restrição do direito de ir e vir" (HC nº 191.294 AgR/DF, relator ministro Edson Fachin).

Por que o STF entende pela hipótese de mandado de segurança? Porque, na visão da Corte Suprema (dirigida pelo ministro Edson Fachin no HC nº 191.294; HC nº 191.294; dentre outros), a retirada das atribuições do acusado por força da cautelar implica impossibilidade do próprio exercício funcional. Um governador afastado do cargo não voltará a assinar decretos a seu bel prazer, pois seu ato não é mais dotado da legitimidade anterior.

O arredamento do cargo se diferenciaria, portanto, de outras cautelares na medida em que a possibilidade de seu descumprimento é remota, por vezes meramente hipotética. Assim, ao contrário de cautelares que proíbem, por exemplo, saídas noturnas ou viagens internacionais, o afastamento de função independe da vontade do réu para ser executado. Já que seu descumprimento não consistiria em risco concreto, a possibilidade de recrudescimento para prisão também desapareceria. Ao fim, o eventual impacto sobre o direito ambulatorial do indivíduo não seria sequer mediato, inviabilizando a impetração de Habeas Corpus.

A posição do STF merece algumas críticas.

O raciocínio parece crer que a aplicação do inciso VI do artigo 319 do CPP só se dá para cargos da administração pública, o que é um engano.

No RHC nº 120.261/SP, a 6ª Turma do STJ deu provimento ao recurso de Joesley Batista para "afastar a proibição de participar, diretamente ou por interposta pessoa, de operações no mercado financeiro e de ocupar cargos ou funções nas pessoas jurídicas que compõem o grupo de empresas envolvidas nas ilicitudes objeto da ação penal a que responde o acusado".  O caso exemplifica que a cautelar referida pode ser dirigida a personagens que atuam no âmbito privado, cenário que esvazia significativamente as considerações esposadas pelo ministro Fachin. Isso porque, trabalhando com um cenário hipotético, é possível que um empresário exerça um poder diretivo de forma velada ainda que oficialmente afastado do cargo por força de constrição cautelar.

Em síntese, à exceção do arredamento de cargo público, a retirada das atribuições do acusado não implica impossibilidade do próprio exercício funcional.

Diante dessa consideração, o raciocínio mais apropriado é o da 6ª Turma do STJ: é cabível a impetração de habeas corpus para combater a cautelar do inciso VI do artigo 319 do CPP, já que o descumprimento da constrição pode acarretar recrudescimento para a custódia processual. 

Além disso, as críticas colocadas pelo Ministro Gilmar Mendes no HC nº 147.426 (precedente utilizado pela 6ª Turma do STJ para defender o cabimento do habeas corpus), apesar de terem sido superadas dentro do STF, seguem pertinentes.

O decano da Corte Suprema entende que a constrição cautelar de afastamento do cargo tem uma importância equivalente à liberdade de locomoção, merecendo a celeridade e eficiência que o remédio heroico proporciona. Ademais, no âmbito de procedimentos de competência originária das Cortes Estaduais e Regionais, por força do artigo 21, inciso VI da LC nº 35/79, o próprio Tribunal que aplicou a cautelar seria o órgão jurisdicional responsável pela apreciação de eventual mandado de segurança contra a medida: tudo a prejudicar o acusado diante de uma sensível redução das chances de constrangimento ilegal.

De volta ao questionamento inicial: no império do dissenso, qual deve ser a postura da defesa no caso de aplicação solitária da cautelar do inciso VI do artigo 319 do CPP? Impetrar mandado de segurança ou habeas corpus? Trata-se de um gerenciamento sensível de risco.

Caso se conheça a prevenção do órgão julgador no STJ, basta que se siga a jurisprudência da Turma. Contudo, se não há plausibilidade no êxito diante do Tribunal da Cidadania, é preciso que se leve em conta a posição pretoriana do STF quanto ao cabimento apenas de mandado de segurança.

Por fim, no cenário em que não há qualquer prevenção firmada nos tribunais superiores, entende-se que o mais prudente é a impetração de mandado de segurança. Se o instrumento for distribuído à Quinta Turma, haverá conhecimento da via; se for para a Sexta, ainda que não se admita o mandamus, é possível a concessão do habeas ex officio. Ainda na construção hipotética, se houver um indeferimento no STJ, caberá ainda o recurso ordinário em mandado de segurança que, no mínimo, comportará conhecimento nas duas Turmas do STF.

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