Direito Eleitoral

O princípio da anualidade eleitoral e a jurisprudência eleitoral

Autor

  • Helio Maldonado

    é advogado e mestre em Direito. Professor e autor de livros e artigos jurídicos. Membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral). Presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-Vila Velha (ES).

13 de junho de 2022, 8h04

Nas semanas que se passaram, o ministro Kassio Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal, concedeu efeito suspensivo a agravo em recurso extraordinário do deputado estadual Fernando Francischini (Tutela Provisória Antecedente nº 39), do Paraná, para suspender os efeitos do acórdão do Tribunal Superior Eleitoral que lhe cassou o mandato, e lhe impôs inelegibilidade potenciada por oito anos após as eleições, haja vista a prática de abuso de poder político e dos meios de comunicação para a conquista de seu mandato.

O case do deputado Francischini refere-se ao Recurso Ordinário Eleitoral nº 060397598, decidido pelo Tribunal Superior Eleitoral em 28 de outubro de 2021. Na instância ordinária, a ação de investigação judicial eleitoral contra o mesmo foi julgada improcedente pelo Tribunal Regional Eleitoral do Paraná. Logo, ante ao fato incontroverso da transmissão de live em rede social por Francischini durante o dia da votação das eleições de 2018, com disseminação de desinformação contra a lisura do processo eleitoral (em especial, a confiabilidade das urnas), e com a participação ao vivo de mais de 70 mil internautas, alcançando posteriormente seu vídeo divulgado 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações, coube à Corte Eleitoral Maior responder hermeneuticamente uma questão fundamental: se a desinformação praticada no ambiente da internet insere-se no âmbito de conformação fático do abuso dos meios de comunicação, disposto no artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90.

E a resposta do Tribunal Superior Eleitoral foi que sim, vez que a internet é um dos possíveis "veículos ou meios de comunicação social", havendo a partir das eleições de 2018 um novo paradigma na propaganda eleitoral, qual seja: o uso massificado das redes sociais, com interação direta entre candidatos e o eleitorado. Logo, ante o atentado do deputado Francischini contra a verdade factual, bem como em decorrência da ampla propagação da sua live, a Justiça Eleitoral teve como provada a prática do abuso dos meios de comunicação no processo eleitoral.

Nada obstante, agora, a revogação da liminar em questão pela maioria dos ministros da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, ao que nos interessa no presente artigo, nas suas razões de decidir o ministro Nunes Marques aduziu a aplicação do princípio da anualidade da lei eleitoral (artigo 16 da Constituição Federal) ao caso, posto que na sua compreensão o Tribunal Superior Eleitoral, na exegese do artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90, emitiu "ineditismo da solução hermenêutica", porque, a toda evidência, não houve mudança legislativa em torno do abuso de poder, havendo, apenas e tão somente, posterior alteração de interpretação a seu respeito.

Na conclusão da decisão cautelar do ministro Nunes Marques:

[…] ao interpretar a norma contida no artigo 22 da Lei de Inelegibilidades, operou a sua ampliação e abertura semântica, por analogia, para que a expressão meios de comunicação social passasse a abranger também a internet e todas as tecnologias a ela associadas, em particular as chamadas redes sociais.

A decisão em questão recoloca em discussão a aplicabilidade do princípio da anualidade contido no artigo 16 da Constituição Federal à jurisprudência eleitoral, mormente para o aferimento da extensão de sua incidência sobre os precedentes inéditos.

Não se olvida que, hodiernamente, subsiste, no Brasil, uma aproximação de sistemas: entre os caracteres do civil law e da common law. Foi exatamente a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, com a introdução da súmula vinculante no artigo 103-A da Constituição, e então eficácia vinculante da jurisprudência sumulada do Supremo Tribunal Federal tanto sobre o Poder Judiciário como sobre o Poder Executivo, que sobreveio esse fenômeno jurídico. Sendo sedimentada essa novel constatação pela edição do Código de Processo Civil de 2015, pelo estabelecimento de hipóteses diversas de precedentes vinculantes no artigo 927, e pela adoção de precedentes mais que persuasivos no artigo 926, exigindo-se, doravante, que: "Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente".

Nesse sentido, foi a própria Constituição Federal de 1988 que germinou as condições constitucionais de possibilidade para esse atual estado das coisas de aproximação de sistemas. Isto pois o poder constituinte originário, na parte orgânica da Constituição, na distribuição de competências para o exercício da jurisdição, no artigo 121, §4º, inciso II, delegou ao Tribunal Superior Eleitoral a missão institucional do promover a unificação da exegese da legislação infraconstitucional.

Destarte, a ideia do Direito como Integridade foi encampada pela Lei Adjetiva Civil. É Ronald Dworkin seu criador, quem, para solver o problema da discricionariedade da decisão judicial, desenvolveu a metáfora em que o juiz como intérprete autêntico do Direito porta-se como um romancista, pois dá fluxo de continuidade à história pregressa de jurisprudência que antecede seu processo cognitivo de compreensão.

Logo, por isso, o juiz na hermenêutica jurídica não pode provocar rupturas no sistema de Justiça em que está inserido. Tal aporia veicula insegurança jurídica, pois rompe a legítima expectativa do jurisdicionado condicionar sua ação conforme a jurisprudência vigente. E traz violação à igualdade entre os indivíduos, vez que a divergência jurisprudencial implica na redistribuição de "diferentes Direitos" para os jurisdicionados iguais.

Assim sendo, é, na verdade, sobre a mudança de jurisprudência eleitoral que incide o princípio da anualidade disposto no artigo 16 da Constituição. Vez que dita garantia fundamental repele o casuísmo eleitoral repentino.

Mas tal não se estende para o precedente inédito. Procede a assertiva, pois, nada obstante subsistir uma inevitável trajetória entre texto de lei e norma, sendo essa o produto da atividade interpretava do juiz na aplicação do Direito, invariavelmente, pela dignidade da legislação, a lei coloca-se como um dado de entrada para essa empreitada hermenêutica.

Para além disso, não só a "ponta do iceberg", mas o texto da lei constitui-se como o teto hermenêutico da exegese legal, ladeado pela interpretação sistemática. Isso é, uma impossibilidade de ressignificação do sentido da linguagem constrangida pela força da tradição contida na historicidade da legislação, e da jurisprudência a seu respeito.

Não que essa ressignificação do texto da lei não possa sofrer a atualização de compreensão em uma fusão de horizontes — entre o passado e o presente. A indeterminabilidade semântica, pela presença de vagueza, ambiguidade e porosidade, é própria da linguagem de maneira geral, e, especial, do texto da lei.

Assim o é nos conceitos jurídicos indeterminados, como o abuso de poder tipificado no artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90, em relevo: o abuso dos meios de comunicação. O legislador eleitoral não pode prever de antemão todas as hipóteses possíveis de abuso de poder do mundo fenomênico, para que enclausure isso tudo no texto da lei. Pelo contrário, a indeterminabilidade semântica dos conceitos jurídicos indeterminados acaba por proporcionar a constante atualização do seu sentido e alcance: o ineditismo.

Por via de consequência, o Tribunal Superior Eleitoral promoveu exatamente isso. A ressignificação do conteúdo semântico do significado do abuso dos meios de comunicação, para, por uma hermenêutica concretista em fusão de horizontes, compreender que o uso das redes sociais, para propagação de desinformação contra o processo eleitoral, reveste-se de proporcional gravidade para atrair as sanções políticas de inelegibilidade ou perda de registro, diploma ou mandato, consoante a previsão do artigo 22, inciso XV, da Lei de Inelegibilidades.

Hodiernamente, é exatamente essa linha de jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, que dita que "em atenção aos princípios da segurança jurídica e da anualidade eleitoral, […] não há falar em mudança de jurisprudência na espécie. A questão controvertida é analisada pela primeira vez por este Tribunal Superior" (Recurso Especial Eleitoral nº 060119381, relator ministro Sergio Silveira Banhos, Publicação: DJE – Diário da Justiça eletrônica, Tomo 239, data: 12/12/2019). Bem como do Supremo Tribunal Federal, que predetermina que "não atrai a aplicação do princípio da anualidade, uma vez que não cuidou de alteração da jurisprudência, mas de evolução do entendimento do tribunal" (Agravo em Recurso Extraordinário nº 1.320.741, relator ministro Dias Toffoli, 1ª Turma, Publicação: DJe-086, data: 4/5/2022).

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