Opinião

Precisamos falar (ainda?) sobre o desacato

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12 de junho de 2022, 13h16

Quando falamos em desacato, a primeira pergunta que deveria vir à mente em um país democrático é: desacato ainda é crime? Evidente que aqui no Brasil, quando o assunto é democratização das instituições ou defesa dos direitos humanos, as discussões nem sempre chegam no tempo em que deveriam. Basta observarmos que após o governo federal ser completamente militarizado, fala-se na necessidade de separar política e Forças Armadas. Mas o que as Forças Armadas e a política institucional teriam a ver com este assunto? Explicamos.

Conforme descreve o tipo penal de desacato, aquele que "desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela" será punido com pena de detenção de seis meses a dois anos, ou multa. Alguém que já tenha se atentado para o fato de que o Direito Penal não se presta a conferir legitimidade à autoridade pública — já que a construção de legitimidade é algo que se dá na esfera política, mediante a construção de consensos — mas a punir violações de bens jurídicos relevantes, pode ter se questionado sobre a necessidade de um crime como este.

A começar pela questão da "legitimidade". Uma noção básica desse termo é a de um consenso social e político amplo, no sentido de que as autoridades públicas devem ser respeitadas. Logicamente, para que uma comunidade política reconheça suas instituições e suas autoridades (policiais, judiciárias, legislativas, executivas etc.) como legítimas, como passíveis de serem respeitadas pelos seus membros, os cidadãos devem se sentir partes dessa comunidade. Mais do que isso, devem sentir que participaram, ainda que indiretamente, do processo de consolidação da autoridade constituída e, por consequência, da lei que está sendo aplicada. Alguns teóricos diriam que os cidadãos, na condição de delegatários de sua soberania, deveriam ser respeitados como tais.

Aqui já começamos a ver um problema profundo decorrente de uma série de distorções sociais, econômicas, políticas, raciais, de gênero. Mas deixemos esta questão para depois.

Voltando ao papel do Direito Penal, deveríamos, em uma sociedade mais ou menos democrática, ter claro que esse é um ramo jurídico considerado como a ultima ratio (um aluno de começo de curso está cansado de ouvir essa expressão latina). Isso significa que o Direito Penal só tem lugar quando todos os outros ramos do Direito (civil, administrativo, sancionatório) e de controle social (família, escola, religião) falharam. Imaginar a punição criminal de alguém por ter "desacatado" uma autoridade — desconsiderando a possibilidade de multa, de sanção administrativa, de suspensão provisória e civil de direitos, de acordo com a gravidade do "desacato" — é algo que viola não apenas o bom-senso, mas o próprio telos do Direito Penal.

Exato. O crime de desacato é algo que "desacata" os fundamentos do Direito Penal.

Mesmo dentro do Direito Penal este crime é problemático. O significado de "desacatar" é faltar com o respeito devido, tratar com indelicadeza ou irreverência. Ora, caso um cidadão (e aqui não falamos do "cidadão de bem" — se é que isso existe — mas do cidadão comum) destrate um agente público, pode responder por um crime contra a honra ou mesmo pelo tipo de exercício arbitrário das próprias razões. Ainda que se considere apenas os delitos contra a Administração Pública, alguém que desobedeça a uma ordem razoável e legal emanada de uma autoridade pode incorrer no crime de desobediência (artigo 330 do Código Penal) ou de resistência (artigo 329 do Código Penal). Imaginar que se pode desobedecer e resistir a uma ordem legal sem desacatar a autoridade pública é, no mínimo, uma incoerência.

Neste sentido, o crime de desacato afronta: 1) a própria finalidade do Direito Penal; 2) a necessidade de construir a legitimidade das autoridades de forma democrática; e 3) a coerência do ordenamento jurídico, visto que a obrigatoriedade de se obedecer a ordens legais está não só contemplada em outros ramos do Direito, mas já no próprio Código Penal.

E para que estamos falando disso? Eis a questão. Imaginemos a seguinte situação, que qualquer advogado criminalista sabe da tamanha frequência com que ela ocorre: um cidadão (de bem ou não) se exalta em uma abordagem policial. Este cidadão, com alguma "eloquência", e aqui frise-se a já suficientemente noticiada (e até encenada, considerando-se as produções artísticas nacionais) postura "não amigável" que os agentes policiais costumam adotar, é preso, no exercício das funções da respectiva autoridade pública. Algemado (muitas vezes contrariando-se a intelecção da Súmula Vinculante 11), o cidadão é levado à delegacia no "camburão", na "gaiola", no "xadrez" da viatura, todos apelidos pejorativos — e, quiçá, violadores do princípio da dignidade da pessoa humana — do local de transporte do conduzido. Direitos civis violados. Dignidade, evidentemente, violada. Se já não bastasse o uso de algemas para o transporte até a delegacia, algema-se o cidadão de bem à barra acima do banco de concreto de espera. E a espera? Ela é longa, sobretudo tendo em vista a não prioridade do "crime" de desacato. O resultado final? A submissão de dito cidadão ao constrangimento de uma "transação penal" que, ainda que não implique em admissão de culpa, sujeitará o autor do "fato" a uma pena restritiva de direitos ou multa. Se quem não é do meio já sabe o moralismo incutido no Direito, aqueles que dele fazem parte têm a convicção que, de uma forma ou de outra, a celebração de tal instituto pode, sim, trazer "dor de cabeça" ao nosso cidadão hipotético.

Relatos de uma truculência cada vez mais banalizada. Crime cometido? Desacato. Mas ele não ofendeu algum agente público? Segundo apenas a versão do agente, sim. Ele deixou de seguir alguma ordem legal? Não. Entretanto, tratou de forma indelicada agentes "da lei". Se alguém já esteve no lugar de referido cidadão ou ouviu relatos, de amigos ou de clientes, sabe o sentimento de impotência que essa situação traz. Sob o manto da "fé pública", infindáveis condutas dessas autoridades públicas, carregadas de abuso de poder, de excessos, são referendadas pela lei, já que, na falta de testemunhas oculares, e mesmo quando elas estão presentes, a palavra do agente sobrepõe-se a do particular.

E o que diriam os organismos internacionais de Direitos Humanos? A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos já consolidaram o entendimento no sentido de que se trata de um delito incompatível com a liberdade de expressão. Entretanto, o STF não estaria de acordo. Apesar de a interpretação da Corte Interamericana ser (como dizem) clara como a luz do dia, o ministro Barroso entendeu que não há incompatibilidade entre o crime de desacato e os direitos humanos. De uma forma que apenas ele foi capaz de fazer; embasou o seu voto em argumentos da (pasmem, excelências!) Corte Interamericana.

Se fôssemos traduzir o feito do ministro em termos lógicos, ele simplesmente utilizou uma premissa que nega a sua conclusão. Para um entusiasta do "Iluminismo", cometer uma contradição performativa é, no mínimo, um desacato racional. Ao que parece, a postura "racional" do ministro aproxima-se do contrassenso racional que é o crime de desacato. A existência deste tipo penal nega os preceitos fundamentais do Direito Penal assim como o ministro nega racionalmente os preceitos da lógica racional.

O mais interessante é que o ministro diz que é razoável que tenhamos tipos penais para proteger agentes públicos. Inegável premissa. Como já vimos, existe uma gama de delitos previstos que "protegem" os agentes públicos no exercício de suas funções. Além disso, o Brasil não é conhecido na Corte e na Comissão Interamericana como um país no qual agentes públicos, indefesos, são molestados pela sociedade civil. É justamente o contrário. Temos condenações nestes órgãos pelo desaparecimento forçado de civis promovido por agentes públicos (caso Gomes Lund). Temos condenações pela execução de civis nas dependências públicas por agentes públicos (caso Herzog). Temos condenações por violações massivas perpetradas pelo Estado em territórios vulneráveis (caso Favela Nova Brasília). Entretanto, não temos qualquer condenação por violações de direitos funcionais de agentes públicos.

Mas o ministro vai além. Ele afirma que a liberdade de expressão não é absoluta, mas um direito que deve encontrar limitações em outros direitos. Interessante que um jurista liberal (no sentido político) por tantos anos tenha como premissa a necessidade de proteger o Estado da sociedade civil, não o contrário.

Apesar de tudo, disso só podemos inferir que o desacato é algo que veio de uma ditadura, foi mantido por outra e, agora, é reafirmado pelo "Estado de Direito".

Voltando ao presente, indagamos: estariam os organismos internacionais, estudiosos do tema e, em última instância, a própria lógica racional (da qual o ministro citado tanto gosta) equivocados? Deveria a sociedade ser afastada ainda mais daqueles que exercem a (i)legítima autoridade? Deveria o Estado ser protegido da sociedade? Seria este o caminho de construção de uma sociedade democrática? Muito se fala em um tribunal que tem salvado a democracia. Pensamos que não se pode salvar algo que nunca se teve.

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