Embargos Culturais

Transações Administrativas, de Onofre Alves Batista Júnior

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

12 de junho de 2022, 8h03

Salva raríssimas exceções (e o livro de Onofre Alves Batista Júnior, "Transações Administrativas", é uma delas) o direito administrativo brasileiro é marcado por fortíssimo autoritarismo. É um direito centrado na intransigente defesa de um Estado imaginário, que tutelaria um interesse público, também mal definido.

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O interesse público tutelado pela Administração é um mantra que substancializa uma muralha contra qualquer tentativa de composição de conflitos entre a Administração e o administrado. Comecemos com essa última expressão, administrado. No direito administrativo tradicional parece não haver cidadão, há apenas o administrado. Remete-se à mesma patologia no direito tributário, onde não haveria seres humanos, haveria contribuintes; ou no direito processual, onde proliferam jurisdicionados, ou no direito previdenciário, onde multiplicam-se segurados. São substantivos que revelam sujeição.

Não há definição objetiva de interesse público, especialmente na jurisprudência de tribunais superiores. Interesse público é um guarda-roupa no qual cabe qualquer fantasia. Justifica o papel de legislador positivo para o Judiciário. Relativiza sigilos fiscal e bancário. Autoriza contratação de pessoal técnico por tempo indeterminado no serviço público. Define número de vereadores. Suspende prazos, especialmente em caso de greve de advogados públicos. Abona qualquer decisão, inclusive aquelas contrárias a comandos legais claros.

Releva modificação de norma de contagem de tempo e paridade, para efeitos de regime estatutário. Desculpa o uso de medidas administrativas preventivas. Aprova a sustação do processo em crime contra a honra supostamente cometido por parlamentar. Não autoriza renúncia de foro especial, por parte do réu. Justifica a juntada de documentos em matéria do Tribunal de Júri. O interesse público já sustentou a proibição da importação de pneus usados. Foi essencial no julgamento do Estatuto do Desarmamento. Orientou a discussão relativa ao direito à informação junto à Justiça Militar. Justificou indeferimento do uso de provas obtidas por meio de apreensão de documentos fiscais nos escritórios do investigado.

O livro de Onofre é um ponto de curvatura máxima na utilização e na problematização do conceito. O professor mineiro (Onofre é do Departamento de Direito Público da UFMG) parte de postulados de um Estado pluralista moderno, marcado por conflitos de interesse. Ao invés de se ater a conceitos metafísicos de interesse público, fixa uma ideia de bem comum, como finalidade primeira da Administração pública. Nesse aspecto aproxima-se do conceito de "serviço público de qualidade", que estimulou a reforma de Bresser-Pereira e que foi traduzido por "eficiência" ao ser incorporado à Constituição.

Nós advogados, intoxicados pelo conceitualismo, nunca entendemos adequadamente essa inserção constitucional, e a explicamos de todas as maneiras. Houve quem tivesse afirmado que a eficiência seria medida pelo fiel cumprimento da lei. Onofre compreendeu bem o enigma, justamente porque — afirmou — "o princípio da eficiência é a expressão jurisdicizada da ideia de boa administração". O principal é governar bem.

Onofre discute eficiência à luz da discricionariedade. Defende uma flexibilização responsável, assunto que trata com a cautela de quem conhece a desconfiança recorrente que existe para com o desempenho da máquina pública. Nesse sentido, afirma que "o modelo burocrático de administração pública foi desenhado para dar concreção à ideia de concentração de todas as decisões políticas na cúpula do Executivo, visando imunizar os servidores públicos com relação à política". O tema da neutralidade da Administração, no contexto das tipologias burocráticas estudadas por Max Weber, é consequência, e não causa, da indiferença administrativa para com o resultado das ações e omissões do Estado.

A Administração pública age por conta de uma vontade, que é concreta, real, aferível. Onofre inverte a lógica dos manuais e também enfatiza a vontade do administrado. Na tentativa de redução de tensões entre a Administração e o cidadão tem-se o ocaso das soluções administrativas imperativas, que devem ceder para uma administração pública consensual. Esse tema também foi explorado por Gustavo Binembojm.

Ao contrato administrativo tradicional Onofre opõe contratos semipúblicos. Sugere que o contrato administrativo de transação seria uma alternativa ao ato administrativo. Explora, em seguida, o animado tema da transação, que expõe nos âmbitos de direito privado, de direito processual e de direito tributário. Parece-me o ponto alto do livro. Nesse passo, o livro (que é de 2007) é um ato de profecia.

A transação tributária (artigo 171 do CTN) foi regulamentada, pese toda a oposição de setores da Receita Federal, intransigentes ao longo da década de 2000. Os defensores da transação (eu era um deles, escrevi livro sobre o assunto) fomos massacrados por setores corporativistas. Ameaçavam, afirmando que a Receita se tornaria um balcão de negócios. Uma nova geração de auditores e procuradores da Fazenda venceram essas barreiras. Negócios jurídicos processuais proliferam, propiciando acordos e acomodação de tensões. Há economia quando se cobra bem.

A transação administrativa é uma realidade. Hoje todos a defendem, ainda que alguns servidores que trabalham diretamente com o público a temam de algum modo. Há um pavor de responsabilização, que é legítimo.

Visto sob uma perspectiva do retrospecto do tempo, o livro de Onofre revela corajosa defesa que assustava tributaristas tradicionais, administrativas, ambientalistas, urbanistas e tutti quanti. Os penalistas saíram na frente, a transação penal ocorreu bem mais cedo. Simples, se o Estado poderia transitoriamente abrir de seu poder punitivo, como se justificaria a intolerância do burocrata que confundia o crédito público com créditos próprios?

Hoje todos parecem apoiar o consenso como forma de relacionamento com a Administração, não obstante a obsessão de alguns órgãos de controle. Onofre, e seu livro, são pais fundadores de uma fórmula inteligente e econômica de resolução de tensões, produzida em um tempo em que a ousadia era confundida com o quixotismo. Onofre estava correto, e nosso tempo comprova o acerto de seus postulados.

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