Licitações e Contratos

Shows artísticos e contratação direta indevida

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

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10 de junho de 2022, 8h04

No artigo anterior escrito nesta coluna [1], abordamos o tema da contratação direta por inexigibilidade, ocasião em que questionamos dois pontos centrais envoltos ao assunto, é dizer, os conceitos indeterminados de "crítica especializada" e "opinião pública".

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Ocorre que, passadas duas semanas, o calor das discussões sobre a mesma matéria persiste, senão com maior vivacidade, sobressaindo, até mesmo, suposições sobre a prática de atos de improbidade administrativa quanto às referidas contratações.

Pragmaticamente, conforme explanado no artigo antecedente, nossa opinião é no sentido de que é possível a contratação direta de tais artistas, ainda que o preço seja elevado, desde que haja compatibilidade com o preço praticado na iniciativa privada. Bem ou mal, trata-se de normativa permissiva à contratação.

Acompanhando a opinião pública — não necessariamente a específica opinião do público que contempla os admiradores dos artistas — são perceptíveis manifestações para ambos os lados, ora se questionando o ato de contratação, sob o viés, sempre existente, da ausência de estrutura nos municípios, ora devotando a contratação como a única possibilidade de conceder, ao público (população citadina), o direito à momentânea felicidade.

Ambos os contextos são válidos; logo, há veracidade para todos os pontos de vista, não faltando razão a qualquer linha de defesa. Indene de dúvidas que a quase totalidade dos municípios brasileiros carecem de infraestrutura adequada à serventia do atendimento ao público, falham na prestação de serviços de saúde, educação, dentre tantos outros inumeráveis desafios a serem perseguidos pelo gestor municipal. Tal obviedade, entretanto, não suprime a oportunidade de conceder à mesma população — incontestavelmente carente de serviços básicos — outra forma de assistência.

Isso porque a assistência ao público não ocorre simplesmente por meio da prestação de serviços públicos, partindo-se do pressuposto de que shows artísticos não se enquadram como serviços ao público. A narrativa que bombardeia as contratações dos referidos shows de artistas incontestavelmente conhecidos alimenta, subliminarmente, uma falsa ideia de que o espetáculo se destina à saciedade do privado (gestor), desafiando as raias do interesse público primário.

De fato, pouco importa o gosto musical do gestor e de seus áulicos, bem como é irrelevante a coincidência da preferência musical palaciana com a do público (população municipal). O que vale, de forma prática, é o atingimento do objetivo, ou seja, a realização do show.

Pensar sob a perspectiva de que um município não pode contratar um artista porque enfrenta toda sorte de problemas diários é impossibilitar, peremptoriamente, qualquer tipo de contratação nesse sentido, porque deficiências sempre existem nos mais de cinco mil municípios brasileiros.

Fazendo coro ao que já discorremos no último texto, não há razões para interferência do controle externo em tais situações, notadamente porque o gestor, eleito democraticamente, devolve, aos que lhe emprestaram a deferência de guiar a vontade popular, o recall do escrutínio preconizado na Constituição Federal.

Apenas para testificar a linha de argumentação que vem sendo tracejada nesse texto, em boa parte dos casos, a aderência da população à decisão do gestor (cuja preferência assente à vontade popular) é inconteste. Exemplificativamente, na última semana, após o cancelamento do show de um renomado artista, por meio de decisão judicial decorrente de ação proposta pelo Ministério Público, a população de um pequeno município baiano, carente dos mais básicos serviços públicos, resolveu fechar uma rodovia, demonstrando revolta com o cancelamento do evento [2].

Tudo leva a crer que, independentemente da existência de uma completa e satisfatória prestação de serviços públicos, a população nem sempre concede preferência ao entendimento do controle externo, e o gestor, atento à pretensa disfunção apontada pelos órgãos de controle, vale-se de todos os lenitivos processuais disponíveis à contemplação da felicidade do público.

Há, incontroversamente, um desfazimento semântico da narrativa dos órgãos de controle, muito embora sejam existentes as precariedades objetivas por ele (o controle externo) apontadas.

Ultrapassado esse plano inicial de discussão, tem sido suscitada, conforme já destacado no início desse escrito, a lisura da contratação direta por inexigibilidade. Primeiramente, em exemplos como o acima citado, a obstrução de uma via pública por uma população revoltada com um cancelamento de um show é motivo mais que suficiente para aferir a consagração pela opinião do público. Porém, para o controle externo, tem de existir alguma brecha para persistir no controle da contratação, supostamente o preço.

Ora, se o preço é o de mercado (o mesmo praticado na iniciativa privada), não é possível o questionamento da contratação, o que não abre margens para ações no âmbito criminal ou no campo da improbidade. Ocorre que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos originou uma novidade (perdão à indolente tautologia), na seara das contratações diretas, relacionada à "contratação direta indevida", terreno ainda mais fértil para o controle externo.

Em outro texto nesta mesma coluna [3], tratamos sobre o tema. Assim sendo, pouparemos o leitor quanto a maiores explicitações, sendo necessário mencionar, tão apenas, o conteúdo do artigo 73 da Lei nº 14.133/2021, que preconiza: "na hipótese de contratação direta indevida ocorrida com dolo, fraude ou erro grosseiro, o contratado e o agente público responsável responderão solidariamente pelo dano causado ao erário, sem prejuízo de outras sanções legais cabíveis".

À luz de toda a argumentação que vem sendo construída nesse escrito, necessário esclarecer que não se contesta a possibilidade da incidência do controle externo sobre todo e qualquer tipo de contratação pública, maiormente em relação às contratações diretas. Por outro lado, o controle, que deve ser pontual e específico, somente pode ocorrer quando demonstrada alguma possibilidade que oportunize sua própria incidência, não sendo uma inconformidade de opiniões motivo suficiente para questionar o ato administrativo praticado.

Exigindo-se francos esforços em tais situações, relacionadas à contratação direta, por inexigibilidade, de profissional do setor artístico, consagrado pela "crítica especializada" ou pela "opinião pública", é impossível, no plano concreto, sugestionar a prática de atos de improbidade administrativa e, mais que isso, o crime de contratação direta ilegal previsto no artigo 337-E do Código Penal Brasileiro, remanescendo, a título de controle, um único e exclusivo argumento, cujo permissivo encontra espaço no artigo 73, da Lei nº 14.133/2021, acima mencionado.

E, quanto a tal questionamento, o dolo, a fraude ou o erro grosseiro a que faz alusão o referido artigo 73 está relacionado, excepcionalmente, à deficiência na proposta apresentada pelo artista, é dizer, encontra brecha, tão apenas, na conformidade entre o preço sugerido ao público com o preço praticado no setor privado.

Sem titubear, a opinião pública prevalece em relação ao gosto musical e à opinião do controle externo.

Autores

  • é doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador do estado do Amapá, sócio-fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e bacharel em Administração.

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