Opinião

A quem interessa a apreensão de dispositivos eletrônicos por anos

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8 de junho de 2022, 16h17

Neste texto pretendemos provocar reflexão e oferecer sugestões sobre o prazo razoável da apreensão de um tipo específico de bem: dispositivos digitais, como celulares, computadores, tablets, etc., coletados por serem possíveis fontes de prova. Isso porque eles podem ter os dados extraídos, o que possibilita a célere devolução do aparelho físico (hardware), sem prejuízo às investigações.

Sobre o tema, a jurisprudência entende que o excesso de prazo não decorre simplesmente do transcurso de um limite previsto em lei, devendo-se observar se as circunstâncias do caso concreto justificam a inobservância. Ou seja, se há "razoabilidade". Isso porque o excesso de prazo que gera consequências processuais é aquele decorrente de desídia estatal, e não, por exemplo, da complexidade de uma grande operação.

Ocorre que, ao se deixar os prazos legais de lado, surgem outros problemas. A "complexidade" dos fatos frequentemente é utilizada como uma fórmula mágica para afastar alegações de excesso de prazo, sem que haja uma avaliação efetiva da persecução no caso concreto.

O problema mencionado possui maior relevância nas apreensões de bens. Muito provavelmente porque elas não possuem um prazo próprio, como, por exemplo, a cautelar de sequestro [1]. O único parâmetro é o prazo de quinze dias para o oferecimento da denúncia, do artigo 46 do CPP, ou mesmo os prazos do sequestro, adotados analogicamente. Em verdade, o CPP diz que as coisas apreendidas não serão restituídas antes do trânsito em julgado se interessarem às investigações.

Por conta disso, em quase toda investigação que é batizada com o nome de "operação alguma coisa" acontece o mesmo: há realização de buscas e apreensão de vários bens, que ficam constritos indefinidamente, por vezes durante anos, até que haja o arquivamento, absolvição ou o trânsito em julgado da condenação.

Nesse meio tempo, os réus fazem vários pedidos de restituição, que são indeferidos em nome da "razoabilidade", sem maiores reflexões sobre o caso. Então, os réus recorrem, muitas vezes levando a discussão até os tribunais superiores, que ainda são resistentes em reconhecer o excesso de prazo, mesmo depois de um ou dois anos do pedido inicial — é mais ou menos o tempo que a questão leva para chegar ao STJ. Ou seja, impõe-se ao já sobrecarregado Judiciário o ônus de analisar diversos pedidos.

Tal proceder ocorre mesmo no caso de bens apreendidos que não poderão nem em tese ter o perdimento decretado, constituindo meras fontes de prova que devem ser restituídas ao proprietário quando não forem mais necessárias à investigação. Neste caso, trata-se de violenta intervenção no direito legítimo de propriedade, que pode atingir, inclusive, o patrimônio de pessoas que sequer são investigadas ou da própria vítima. Por isso, o bem que é fonte de prova (e não elemento de prova) deve se tornar desnecessário às investigações o quanto antes. A sua devolução é urgente.

Nesse contexto, algo que nos parece especialmente incoerente é a apreensão, especificamente, de dispositivos eletrônicos (celulares, computadores, etc.), que podem ter os seus dados (conteúdo que serve como prova) extraídos e espelhados, para que os dispositivos físicos (hardwares) sejam devolvidos. Com a obtenção dos dados armazenados, a manutenção da apreensão dos aparelhos é desnecessária para a investigação, nos termos do artigo 118 do CPP. E com essa possibilidade em mente, o prazo razoável para a devolução destes dispositivos digitais não pode ser o mesmo de outras provas cuja custódia física se faz imprescindível até a conclusão das investigações.

A razoabilidade deve considerar não apenas o objeto das investigações, mas todas as circunstâncias que tangenciam a alegação de excesso de prazo, como a efetiva diligência do estado-acusador e os bens pleiteados em concreto. No caso de dispositivos digitais, cujos dados podem ser espelhados, com a devolução do aparelho físico sem prejuízo das investigações, tal medida deve ser providenciada o quanto antes pelos investigadores. Caso contrário, há desídia e excesso de prazo.

Há que se considerar que celulares, computadores, tablets, entre outros, são objetos pessoais indispensáveis para a vida na contemporaneidade. Eles servem como instrumentos para a materialização de direitos fundamentais, como o de acesso à informação (artigo 5º, inciso XIV, da CF) e de comunicação — este último não podendo ser suprimido nem mesmo em relação ao preso na vigência do Estado de Defesa, vide artigo 136, § 3º, inciso IV, da CF. Uma vez que esses dispositivos são apreendidos o indivíduo fica privado de seu acesso à informação e comunicação, ou, se tiver condições financeiras, despende quantia razoável para adquirir, com urgência, novos aparelhos.

Ademais, a apreensão de computadores pode impedir a continuidade da atividade econômica de uma empresa, por estarem armazenados na máquina informações necessárias para sua operação ou mesmo programas com número de licenças limitadas. Essa circunstância é ainda mais gravosa no caso de empresas que possuem vários contratos públicos para a execução de serviços essenciais, como saúde — por vezes, buscas decorrentes da investigação de um contrato inviabilizam a execução de todos os outros.

Por fim, tais bens rapidamente se tornam defasados e obsoletos. Smartphones e notebooks são superados por uma nova geração a cada ano, quando há o surgimento de novidades tecnológicas. Dessa forma, a protelação da apreensão engendra contínua desvalorização dos bens e, consequentemente, lesão ao patrimônio do proprietário — que, como já ressaltado, pode ser pessoa que não é investigada e até mesmo a própria vítima.

Assim, é irrazoável a manutenção da apreensão desses dispositivos digitais quando os dados podem ser extraídos com a célere devolução do hardware. Até porque, o alongamento temporal da apreensão só gera ônus para a investigação: os órgãos persecutórios ficam responsáveis pelo armazenamento, controle e preservação de itens, consumindo espaço e recursos desnecessariamente, visto que apenas os dados contidos nos aparelhos possuem valor para a investigação.

Inclusive, os autores do texto já acompanharam buscas em que houve a extração e espelhamento de computadores in locu. Ou seja, sequer é necessário que o Estado apreenda, desloque, custodie, vigie e preserve o aparelho físico. Basta que extraia os dados. Esse proceder deveria ser adotado sempre que possível, pois implica imensa economia. Além disso, há aumento de segurança, pois durante o transporte itens podem ser extraviados e quedas podem corromper dados (principalmente em HDs externos e computadores, pois possuem partes mecânicas que podem ser danificadas permanentemente com movimentos abrupto).

Por isso, nos casos em que a extração dos dados não possa ser realizada durante a busca, há que considerar de forma séria o princípio da razoável duração do processo. O espelhamento deverá ser realizado o quanto antes, com a devolução do aparelho físico. Nesse sentido, mesmo em grandes investigações complexas é difícil conceber razoabilidade na manutenção da apreensão desses dispositivos digitais por mais de quinze dias (artigo 46 do CPP), ou mesmo sessenta dias (artigo 131, inciso I, do CPP).

O processo não deve infringir mais danos do que os que são necessários, principalmente no que diz respeito às cautelares pessoais e patrimoniais, que infringem drasticamente na liberdade e patrimônio do indivíduo — inclusive daquele que é estranho aos crimes investigados.

Como já mencionado, além de não ter nenhuma utilidade para a investigação, a manutenção da apreensão por longo período de tempo não interessa a nenhum dos atores do processo. Em verdade, o espelhamento e devolução dos bens tem como consequência poupar prateleiras e o trabalho desnecessário de policiais, advogados, servidores, juízes, desembargadores e ministros.

Em conclusão, a inobservância de prazos não enseja excesso de prazo de toda apreensão automaticamente, sendo necessário avaliar a existência de razoabilidade. Todavia, especificamente no caso de dispositivos digitais, que podem ter os dados extraídos, a mera enunciação da complexidade das investigações não serve como um coringa para justificar uma apreensão ad eternum. O mais recomendável é que a extração seja realizada durante a busca, dispensando a apreensão do item. Se isso não for possível, nos parece que o prazo razoável para espelhamento e devolução do hardware é justamente aquele de quinze dias, do artigo 46 do CPP, previsto para o oferecimento de denúncia, ou mesmo, analogicamente, o prazo de sessenta dias do artigo 131, inciso I, do CP.


[1] O sequestro deve ser levantado se a ação penal não for ajuizada em sessenta dias, conforme o art. 131 do CPP, ou em noventa dias, no caso de prejuízo à Fazenda Pública, vide o Decreto-Lei nº 3.240/1941.

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