Opinião

A nova Lei de Improbidade Administrativa e o elemento subjetivo do agente

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8 de junho de 2022, 6h03

A balzaquiana Lei de Improbidade Administrativa — LIA (Lei 8.492/92), um dos pilares do microssistema anticorrupção brasileiro, foi reconfigurada pela recente Lei 14.230/2021, que alterou a redação dos dispositivos da legislação original de forma tão significativa que passou a ser chamada de "a nova LIA".

Um dos pontos controvertidos da nova LIA diz respeito à caracterização do elemento subjetivo do agente. O novo diploma legal enuncia, logo em seu primeiro artigo, que o ato de improbidade administrativa exige a comprovação da responsabilidade subjetiva dolosa. Infere-se, portanto, a exclusão da modalidade culposa, prevista originariamente para os tipos sancionadores do artigo 10, referentes aos atos ímprobos causadores de lesão ao erário, cujo elemento subjetivo poderia ser o dolo ou a culpa grave.

A exclusão da modalidade culposa reflete a preocupação do legislador em não banalizar a improbidade, bem como evitar a denominada "Administração Pública do medo", caracterizada pela paralisia administrativa causada por comportamentos conservadores, formalistas e refratários a inovação que se verificam quando o gestor público teme ser enquadrado como ímprobo em razão de sua incompetência profissional.

A menor reprovação social das condutas culposas não constitui retrocesso, nem proteção deficiente ao valor constitucional da probidade. No caso de erro grosseiro ou culpa grave, a eficiência administrativa e a integridade do patrimônio público e social seguem tuteladas por outras esferas normativas de apuração. O agente público poderá ser responsabilizado em ação reparatória civil, sem prejuízo de processo administrativo disciplinar e eventual ação penal, na hipótese do crime de peculato culposo.

Outra questão controvertida referente ao elemento volitivo é a pretensa necessidade de comprovação do dolo específico do agente em todos os atos de improbidade. Tal conclusão advém da leitura apressada dos § § 2º e 3º do artigo 1º, da nova LIA, segundo os quais para caracterizar o dolo da improbidade não basta a voluntariedade do agente, sendo necessária a comprovação de fim ilícito [1], conjugada com a interpretação equivocada de que os § § 1º e 2º do artigo 11 da nova LIA [2] ostentam a natureza jurídica de normas de extensão geral do dolo específico para todos os tipos sancionadores de conduta ímproba. Assim, o "fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade" configuraria o dolo específico, a ser doravante necessariamente demonstrado pela acusação, em todas as ações de improbidade.

Os supracitados § § 1º e 2º do Artigo 11 incorporam ao sistema brasileiro de improbidade disposição da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção [3] (conhecida como Convenção de Mérida), cujo artigo 28 dispõe: "O conhecimento, a intenção ou o propósito que se requerem como elementos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção poderão inferir-se de circunstâncias fáticas objetivas". A obtenção de proveito indevido, para si ou para outrem, com repercussão no patrimônio público e social, constitui elemento objetivo-normativo do tipo sancionador, presente em todos as condutas de improbidade arroladas nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA e em leis especiais.

A nova LIA não exige, portanto, a demonstração indiscriminada de dolo específico para configurar a improbidade. Apenas o tipo sancionador que fizer alusão, em caráter excepcional, a um especial fim de agir, reclamará o dolo específico, como acontece, por exemplo, com o fim de "ocultar irregularidades", previsto no Artigo 11, VI. Como regra geral, os tipos sancionadores de improbidade administrativa requerem apenas a demonstração de dolo genérico.

Nos aludidos § § 1º e 2º do Artigo 11, o legislador apenas corrobora a importante diferença conceitual entre improbidade e mera ilegalidade. Para caracterizar um ato de improbidade, além da consciência e vontade de realizar a conduta descrita no tipo, é fundamental a existência de má-fé do agente, inferida da circunstância fática objetiva da obtenção de vantagem indevida, para si ou para outrem. A obtenção desonesta de proveito indevido com repercussão no patrimônio público e social constitui elemento objetivo-normativo do tipo sancionador, e premissa de todos os atos ímprobos.

Veja-se o exemplo da conduta descrita no artigo 10, inciso VI, "realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares ou aceitar garantia insuficiente ou inidônea". Se, no caso concreto, não restar comprovada a circunstância fática objetiva da obtenção de uma vantagem indevida com repercussão no patrimônio publico e social, estaremos diante de uma mera ilegalidade administrativa.

Em suma: a improbidade administrativa se refere a conduta do agente público que acarrete: 1) enriquecimento ilícito, 2) lesão ao erário ou 3) violação dos princípios da Administração, praticados de forma dolosa e qualificados por um plus: a má-fé do agente, caracterizada pela verificação fática objetiva da obtenção de vantagem indevida para si ou para outrem, com repercussão no patrimônio público e social. Continua válida, portanto, a jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que basta o dolo genérico qualificado pela má-fé ou desonestidade para configurar a improbidade [4].

Noutro giro, a nova LIA nada dispõe sobre a sua retroatividade, o que gera incertezas sobre a aplicação da exclusão da modalidade culposa a condutas pretéritas, em especial em relação a necessidade da presença do elemento subjetivo dolo para a configuração do ato de improbidade administrativa. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, reconheceu a existência de repercussão geral da matéria constitucional suscitada no Tema 1.199, nos termos do artigo 1.035 do CPC.

O Ministério Público Federal, na Nota Técnica nº 01/2021 — 5ª CCR [5], sustenta que o princípio da retroatividade de norma mais benéfica aplica-se de forma diferenciada no campo do Direito Administrativo Sancionador, o qual não busca primariamente a reprovabilidade de condutas ilícitas sob a perspectiva retrospectiva, atua de forma prospectiva e exige que a retroatividade seja disciplinada expressamente pela lei.

A 5ª CCR do Parquet Federal aduz, outrossim, que o artigo 37, § 4o da Constituição Federal impede a retroatividade de novas normas mais benéficas como instrumento de vedação ao retrocesso no enfrentamento de condutas ímprobas e que "não é dado ao Poder Judiciário optar pela aplicação de um ou outro segmento do sistema de responsabilidade, apenas para beneficiar os infratores, sob pena de o juiz competente acabar por instituir sistema não criado pelo Poder Legislativo".

A análise da retroatividade da norma mais benéfica, entretanto, suscita reflexões inevitáveis sobre a inexistência de diferença ontológica entre o direito estatal de punir exercido através do Direito Penal e do Direito Administrativo Sancionador. Há, outrossim, uma inegável similitude dos direitos fundamentais em jogo e das garantias ofertadas aos acusados em ambos os regimes jurídicos repressivos.

Acrescente-se que da perspectiva do controle de convencionalidade, a retroatividade da norma sancionadora mais benéfica tem previsão expressa na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), cujo artigo 9º prevê que "se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se". Note-se que na convenção em apreço, que tem status supralegal, o termo "delito" é utilizado em sua acepção ampla, de molde a alcançar ilícitos criminais, civis e administrativos.

Nessa ordem de ideias, as disposições normativas da nova LIA mais benéficas aos agentes públicos e aos que concorrem para o ato de improbidade caracterizam abolitio criminis em sentido lato e devem retroagir, com base no inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal. Trata-se de perda superveniente do interesse de agir do poder punitivo estatal, diante do advento de novo cenário normativo favorável ao acusado. Se o ato não pode mais ser caracterizado como ímprobo, a falta de interesse processual conduziria à prolação de sentença de extinção do processo sem resolução do mérito, nos termos do que dispõe o artigo 485, caput, VI, do Código de Processo Civil. Prevalece, entretanto, o regramento especial da nova LIA, a qual dispõe, no artigo 17 § 11: "Em qualquer momento do processo, verificada a inexistência do ato de improbidade, o juiz julgará a demanda improcedente".

Como proceder na hipótese de improbidade culposa transitada em julgado? Se já houve o exaurimento de todos os efeitos da sentença, o imputado não faz jus a qualquer tipo de ressarcimento, nem da reversão das sanções já executadas. Nos demais casos, considerando o caráter acusatório e sancionador da ação de improbidade administrativa, que a diferencia do processo civil comum, a impugnação das situações já julgadas não está sujeita ao prazo decadencial de dois anos da ação rescisória. O pedido de aplicação retroativa da lei benéfica posterior pode ser deduzido a qualquer tempo, no juízo de primeira instancia com competência funcional para apreciar a matéria, por simples petição, com contraditório do Ministério Publico, por analogia com o disposto no artigo 66, inciso I, da Lei de Execução Penal — LEP (Lei nº 7.210/84), o qual estabelece que "compete ao Juiz da execução: I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado".

O impacto das alterações pertinentes ao elemento subjetivo do agente na nova LIA tem especial relevância e ampla repercussão social nas ações de improbidade em curso e nos casos transitados em julgado. Trata-se de tema complexo e controvertido que enseja uma pluralidade de possibilidades exegéticas legítimas, as quais resultam em interpretações diferenciadas do texto legal. Mister se faz que os tribunais superiores uniformizem a matéria com a máxima brevidade, para conferir segurança jurídica e estabilidade ao entendimento sobre a nova LIA. A atuação célere do Judiciário é fundamental para dirimir dúvidas e perplexidades que fragilizam a efetividade dos processos de improbidade administrativa, e atentam contra os compromissos assumidos pelo Brasil nas convenções internacionais de combate a corrupção.


[1] Art. 1º (…)
2º. Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente.

3º. O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

[2] Art. 11 (…)
1º. Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade.

§ 2º. Aplica-se o disposto no § 1º deste artigo a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei.

[3] Decreto nº 5.687, de 31/1/2006, promulga a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, adotada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas em 31 de outubro de 2003.

[4] AgInt no REsp 1.872.310/PR, relator ministro Benedito Gonçalves, 1ª TURMA, julgado em 5/10/2021, DJe 8/10/2021.

[5] 5ª Câmara de Coordenação e Revisão — Combate à Corrupção Comissão de Assessoramento Permanente em Leniência e Colaboração Premiada PGR-00390794/2021.

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