Diário de Classe

A Teoria do Estado pode ser uma "Enciclopédia das Ciências do Estado"?

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4 de junho de 2022, 8h00

Com a Constituição de 1988, um amplo catálogo de direitos foi assegurado no Brasil, assinalando, sem dúvida, um importante passo político-jurídico rumo a enlaces mais efetivos de cidadania no país. Esse "novo", claro, veio de encontro a uma série de barreiras, como históricos déficits de republicanismo, uma cultura patrimonialista e estamental  na esteira das proposições de Raymundo Faoro , assim como a cíclicos entraves para o Estado Fiscal. Ululantemente, todo esse caldo vinha, há séculos, obstaculizando vínculos mais equânimes nas formas de vida no Brasil.

Ocorre que, paralelo à Constituição e a esses gaps, paradoxalmente, um negativo fenômeno — agudizando-se — alcançou com força a agenda de debates acadêmicos. Tratava-se (trata-se, ainda, na verdade) do ativismo judicial  que não se confunde com a judicialização da política  e que mesmo figura como inócua tentativa, "à margem do Pacto Constitucional", de "escapar" a um contexto de carestia em amplo aspecto. No limite, sob a pretensão de "concretizar direitos", abre o nada republicano espaço para que o magistrado lance seus juízos morais, éticos, econômicos e políticos ao Direito. E isso é, como perpassado pelo contundente posicionamento do professor Lenio Streck em muitas de suas obras, "ruim para a democracia". Claro. Desse modo, confunde-se a autonomia do Direito com a autonomia dos Tribunais (não no sentido institucional, evidentemente, mas na perspectiva decisória de seus componentes).

Muito por isso, temos aqui um claro problema de Teoria do Direito, mas não apenas. É que para além das sensíveis deformações impostas ao modelo democrático, o ativismo judicial, no plano da Teoria do Estado, também parece se inscrever como um importante fenômeno. Esta é, em síntese, a pequena tese deste texto. Afinal, seu reflexo incide sobre a forma de organização institucional do Poder (conforme cláusula pétrea da Constituição de 1988), sem desconsiderar, claro, o deslocamento de tensões verificado a partir do constitucionalismo social. Dialoga, portanto, com a realidade deste fenômeno típico da modernidade política, à luz  agora  de um modelo voltado não apenas a dizer o Estado, mas a imprimir obrigações de traço também social.

Mesmo assim, esse fenômeno não tem sido objeto de estudo em Teoria do Estado, inclinada, sobremaneira, a três chaves explicativas: uma Teoria Sociológica do Estado (voltada a observar os desdobramentos sociais), outra Teoria Teleológica do Estado (dedicada à própria finalidade estatal), e, por último, uma Teoria Jurídica do Estado (debruçada à análise do ordenamento que impera em um dado território). Veja o leitor, nesse sentido, o posicionamento de Georg Jellinek sobre o tema, no século 19, por exemplo.

Ocorre que, ainda ligada a essa tradição, a Teoria do Estado, ao se posicionar (por suas chaves explicativas) descritivamente, numa explícita dualidade, não apenas coloca-se como incapaz de verificar uma cultura patrimonialista incrustada na República, deformando seus próprios conceitos operativos no contexto brasileiro, como, ainda, ignora uma série de desdobramentos em relação à concretização de direitos em um país de modernidade tardia, caso do Brasil, como o ativismo judicial, por exemplo. Ou seja, falha na sua tentativa de conhecer a realidade estatal, que se modifica sob o viés de (equivocada) aceitação do ativismo.

Diante desse quadro, as questões que orientam esta breve provocação, portanto, propondo uma Teoria do Estado que dê conta de seu objeto de estudo na contemporaneidade e na especificidade brasileira, são: Como trazer, também para a Teoria do Estado, o ativismo judicial como um importante objeto de estudo? Para além de uma Teoria do Direito, como torná-lo objeto de crítica, aqui, pelo viés de uma Teoria do Estado?

A partir das interrogações que alicerçam o problema aqui proposto, observa-se: não pode haver Teoria do Estado, na contemporaneidade e na especificidade brasileira, que desconsidere esse importante fenômeno, cada vez mais reflexivo e impactante nas instituições do país. Perceber isso, contudo, exige um esforço hermenêutico, e é essa a hipótese que aqui se alinha. Afinal, apenas uma leitura hermenêutica, nos moldes propostos pela Crítica Hermenêutica do Direito (Lenio Streck), comprometida com a democracia e com a Constituição, é capaz de ver o ativismo judicial como um problema também na Teoria do Estado. Ou seja, uma leitura direcionada à percepção de que o Judiciário, ao embaralhar a aplicação do Direito com a perspectiva política de seus funcionários-magistrados, transforma-se em uma espécie de Superpoder, não mais parte do Estado, mas descolado e acima dele, caracterizando, dessa forma, um Novo Pacto.

Disso tudo, o que se extrai?

Em tempos de cotidianizada instrumentalização das mais variadas ações em tantos aspectos da vida  incluindo, aí, também o estudo do Direito  parece necessário um certo "passo atrás" nesse "ritmo contemporâneo", reconhecendo a importância do diálogo entre Teoria do Estado (Social, democrático e de Direito) e Teoria (Hermenêutica) do Direito. Afinal, sobretudo a partir do exemplo brasileiro, o ativismo impacta a realidade estatal, de modo que tal fenômeno não pode, dado o objetivo primeiro da Teoria do Estado, ser por ela ignorado. Em miúdos, a provocação aqui proposta pode ser resumida na seguinte proposição: a Teoria do Estado precisa ser percebida para além de um "Enciclopédia das Ciências do Estado". Ela não pode, nos seus limites teóricos, ser estanque, simplesmente voltada à determinação de conceitos. De que valeria, no mais, uma Teoria do Estado que não respondesse às necessidades da atualidade?

Enfim, se a análise da realidade estatal é o objetivo da Teoria do Estado, a resposta à questão acima só pode ser vazia. Afinal, é necessário o estudo de determinados fenômenos  como o ativismo , não apenas como um problema eminentemente jurídico, mas, também, como um problema em Teoria do Estado. É evidente. No exemplo dessa especificidade, essa verdadeira doxa em relação ao Estado Social afeta, sobremaneira, as funções estatais e o próprio regime político. Ou não afeta?

Autores

  • é doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Com bolsa Capes/PNPD, realiza estágio pós-doutoral na mesma instituição, junto ao Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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