Opinião

Realidade vence o direito? O princípio da segurança jurídica

Autores

  • Alice Voronoff

    é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) diretora acadêmica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

  • Flavine Meghy Metne Mendes

    é pesquisadora do Centro de Estudos de Regulação e Governança dos Serviços Públicos conferencista consultora jurídica doutoranda em políticas públicas pela UFRJ e autora de artigos científicos na ambiência regulatória.

31 de julho de 2022, 13h25

"Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados." Eis o teor do artigo 22 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Lind), inserido pela Lei nº 13.655/2018. Não obstante a ratio que motivou a edição do dispositivo  associada à ideia de, em coerência com o princípio da juridicidade, abrir-se espaço para ponderações legítimas entre os obstáculos presentes na realidade do gestor público, de um lado, e o cumprimento estrito das exigências legais, de outro, é preciso um cuidado maior na sua aplicação, notadamente à luz da conquista e universalização dos direitos e garantias fundamentais.

Uma leitura apressada, imediatista e descontextualizada do dispositivo legal pode imprimir falsas impressões daquilo que de fato se pretendeu positivar. Aliás, o risco não é trivial. Lembre-se dos entendimentos estanques em torno da compreensão do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, que perduraram por um bom tempo na literatura. Propunha-se e defendia-se uma concepção fechada, rígida, não raro associada exclusivamente ao atendimento aos interesses da própria Administração, o que ensejou uma profícua proliferação de pesquisas acadêmicas em torno da sua releitura. Pode-se dizer que experimentamos uma trajetória marcada por avanços e retrocessos no Direito Administrativo.

A experiência havida quanto ao princípio em questão ascende preocupações em torno da leitura  simplista  que vem sendo a do artigo 22. Cada vez mais podem ser verificados "jargões" do tipo: Primado da realidade, Supremacia da realidade, A realidade prepondera sobre o Direito, e, ainda, A realidade vence o Direito. Frases que fomentam o risco de proliferação de ideias, impressões, opiniões ou, o que é pior, tendências a legitimar o ilegitimável aos olhos do sistema jurídico. Não há dissonância entre Direito e Realidade. A relação entre eles é indissociável, e sobrevém especialmente quando se investiga a efetividade do direito posto.

É de se rememorar, em termos de controle preventivo, a importância do elemento sistemático de interpretação jurídica. A aplicação da norma deve buscar harmonia com os valores esculpidos no ordenamento jurídico, com destaque para o princípio da segurança jurídica, o qual, aliás, foi a fonte inspiradora da alteração da Lindb.

Rememorando trecho parcial do artigo intitulado "A regulação normativa e o critério da segurança jurídica", publicado aqui na ConJur, em 26 de outubro de 2021, a segurança jurídica requer mais do que clareza para que se possa atender aos desafios atuais. O princípio demanda a realização de esforços ativos no sentido de se removerem obstáculos à participação dos cidadãos na vida política, econômica, jurídica e social. Em poucas palavras, compete às autoridades públicas promover condições para que os princípios da liberdade e igualdade dos cidadãos sejam efetivamente usufruídos.

Pela natureza das responsabilidades e equilíbrio dos interesses em jogo, um dos eixos determinantes da segurança jurídica é a confiabilidade na manutenção de um balanço equilibrado, com respeito ao papel dos diversos atores sociais. É crucial, portanto, lançar novo olhar à manutenção da ordem, função classicamente entranhada no rol das competências exclusivas do Estado. A complexidade dos desafios a enfrentar e os efeitos da difusão e propagação dos riscos ampliaram consideravelmente seu alcance, reclamando, em reforço à coesão social e segurança jurídica, mobilização de vários níveis de intervenção e o concurso de vários atores públicos e privados.

A segurança jurídica demanda, a um só tempo, responsabilidade organizacional dos contextos nos quais serão tomadas as decisões públicas.

Conjugando os valores em questão com a mens legis do artigo 22 da LINDB, é fácil concluir o cuidado que se deve ter na aplicação desta comando, particularmente para que não se torne um grande "coringa" capaz de justificar toda e qualquer omissão administrativa em detrimento do "Direito".

Em outras palavras, em nome do equilíbrio organizacional e diversidade dos desafios que se espraiam na federação, o artigo 22 pode funcionar, caso não utilizado com cautela, como arbitrário salvo-conduto ao não cumprimento das premissas legais em razão da realidade específica do ente federativo questão, o que pode colocar em xeque a garantia dos direitos fundamentais do cidadão e da própria legalidade.

Se estiver em jogo conflito de interesses entre valores constitucionais, o intérprete tem ao seu alcance o manejo da ferramenta da ponderação de interesses. Resumidamente, expressa a tônica do alcance do ponto ótimo, em que a restrição de cada um dos direitos fundamentais envolvidos na análise do caso concreto seja a menor possível, na medida exata à salvaguarda do princípio da segurança jurídica, sem perder de vista as circunstâncias, possibilidades e pesos aos elementos jurídicos que se entrelaçam para o deslinde da matéria. 

Eis aí, em linha com a cultura da gestão dos riscos, um risco jurídico, assim concebido como a probabilidade de lesão aos direitos, que deve ser atenta e cuidadosamente gerenciado, evitando-se que se torne, segundo a professora Irene Nohara uma "brecha capciosa" para alegações como a seguinte: não tendo a realidade permitido cumprir adequadamente as exigências legais, seria "possível" deixa de lado direitos e garantias.

"Nem tanto ao mar, nem tanto à terra": a virtude está no meio, como de há muito ensinou Aristóteles. Meio esse que, no caso do artigo 22 da Lindb, não se alcança nem pela aplicação irresponsável do Direito em detrimento da realidade, nem pela omissão negligente do gestor que invoque a realidade para deixar de aplicar o Direito. São construções em cada caso e, sobretudo, motivadas, que poderão trazer à tona a aplicação legítima do dispositivo legal, sem que direitos e garantias fundamentais sejam fragilizados.

Referências
BOBBIO, Norberto. Teoria da Norma Jurídica. Edipro: São Paulo, 2003.
MENDES, Flavine Meghy Metne. A regulação normativa e o critério da segurança jurídica. Consultor Jurídico. Artigo publicado em 26 de outubro de 2021.
NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. Atlas: São Paulo, 2019.
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001.

Autores

  • é doutora e mestre em Direito Público pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diretora acadêmica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro e sócia do escritório Gustavo Binenbojm & Associados.

  • é consultora, escritora, palestrante, mestre em Direito Público, doutoranda em Políticas Públicas e autora de artigos científicos

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