Opinião

Direito ao porte de armas de fogo dos CACs e sua (i)legalidade

Autor

  • Francisco Sannini

    é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pós-graduado com especialização em Direito Público professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo professor do Damásio Educacional do QConcursos e da pós-graduação em Segurança Pública do Curso Supremo e delegado de polícia do estado de São Paulo.

31 de julho de 2022, 6h04

O Estatuto do Desarmamento surge em nosso ordenamento jurídico com o objetivo de promover Segurança Pública por meio de um rigoroso controle sobre a circulação de armas de fogo, acessório e munição dentro do território nacional. Para tanto, foi criado o Sistema Nacional de Armas (Sinarm), instituído no Ministério da Justiça, no âmbito da Polícia Federal e com circunscrição no país inteiro..

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Entre as inúmeras atribuições do Sinarm, nos termos do artigo 2º, do Estatuto, podemos destacar o dever de identificar as características e propriedade de armas de fogo, mediante cadastro, assim como o dever de realizar o cadastro das autorizações de porte de arma de fogo e as renovações expedidas pela Polícia Federal. Dizendo de outra forma, cabe ao Sinarm cadastrar as pessoas que possuem armas de fogo de uso permitido, assim como os indivíduos autorizados a portá-las.[1]

Ocorre que os denominados CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) têm suas armas de fogo registradas no SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), ligado ao Ministério da Defesa, no âmbito do Comando do Exército e que também possui circunscrição em todo território nacional.

Feitas essas considerações, reforçamos a ideia de que a política adotada pelo Poder Legislativo, que, vale dizer, representa a população, foi a de restringir o porte de armas de fogo no Brasil, indicando no Estatuto do Desarmamento as exceções. Vejam, não estamos discutindo aqui se a política restritiva em torno do armamento da sociedade civil é boa ou ruim. O que não se pode olvidar, todavia, é que o espírito da Lei 10.826/03 foi este, tratando-se de uma opção legítima do Congresso Nacional.[2]

Com efeito, no artigo 6º, do Estatuto, fica proibido o porte de arma de fogo como regra, salvo as exceções previstas na própria Lei ou em legislações específicas. Os CACs, contudo, não figuram entre as pessoas com autorização para portar armas de fogo, razão pela qual, inicialmente, o Exército editou a Portaria nº 28 — Colog, de 14 de março de 2017, permitindo aos atiradores o porte de uma arma de fogo municiada nos deslocamentos do local de guarda do acervo até os locais de prática e/ou treinamento.[3]

Posteriormente, o Decreto 9.846/19, dispôs o seguinte: artigo 5º, § 3º "Os colecionadores, os atiradores e os caçadores poderão portar uma arma de fogo de porte municiada, alimentada e carregada, pertencente a seu acervo cadastrado no Sigma, no trajeto entre o local de guarda autorizado e os de treinamento, instrução, competição, manutenção, exposição, caça ou abate, por meio da apresentação do Certificado de Registro de Arma de Fogo e da Guia de Tráfego válida, expedida pelo Comando do Exército" (grifamos). Em decorrência desta previsão, veio a nova Portaria nº 150 — Colog, de 5 de dezembro de 2019, detalhando o denominado "Porte Abacaxi" dos CACs.[4]  Percebe-se, portanto, que o direito ao porte de arma de fogo nesses casos deve observar o trajeto indispensável à prática do desporto, caça ou abate.

Com efeito, criou-se uma enorme polêmica no meio jurídico na medida em que diversos CACs estão sendo detidos portando armas de fogo em situações que, aparentemente, não são abrangidas pela autorização conferida pelos atos normativos citados, gerando, assim, uma insegurança jurídica na aplicação do Estatuto do Desarmamento e seus tipos penais.

De maneira ilustrativa, um comerciante registrado como CAC, agindo em evidente legítima defesa, matou um assaltante na cidade de Jundiaí (SP).[5] Na ocasião, o cidadão foi preso em flagrante pela Polícia Civil pelo crime de Porte Ilegal de Arma de Fogo, uma vez que, segundo as investigações, ele voltava de sua pizzaria quando foi abordado pelo criminoso, não estando, destarte, em deslocamento para o local de prática de tiro esportivo. Não obstante, o juiz que analisou o Auto de Prisão em Flagrante determinou o relaxamento da prisão, promovendo a devolução da arma de fogo apreendida, assim como os valores pagos a título de fiança.

Nesse cenário, ousamos neste trabalho trazer as nossas conclusões sobre o tema, buscando um mínimo de segurança jurídica para casos análogos que certamente irão se repetir no Brasil. De início, nos parece imprescindível que a aplicação das normas vigentes ocorra em consonância com o espírito do Estatuto do Desarmamento, que, conforme já salientado, nasceu com a finalidade de promover o direito fundamental à Segurança Pública por meio de um rigoroso controle sobre a circulação de armas de fogo em todo território nacional.

Sob outra perspectiva, para que possamos avançar no estudo do tema, torna-se fundamental uma análise sobre o Poder Regulamentar conferido aos chefes do Poder Executivo com a finalidade de editar normas complementares à lei, visando sua fiel execução. Isso significa que os regulamentos editados pelo Poder Executivo, ao menos em regra, não podem ir de encontro com a lei e nem ultrapassar suas previsões. Não podem, destarte, inovar a ordem jurídica, criando direitos, obrigações ou proibições.

Assim, tendo em vista que o Estatuto do Desarmamento indicou as pessoas que estão autorizadas a portar armas de fogo, não mencionando os CACs, podemos concluir que os atos normativos regulamentares inovaram o ordenamento jurídico, ampliando as autorizações para o porte. Ao que nos parece, qualquer mudança nesse sentido deveria ser concretizada por meio de Lei em sentido formal, como reiteradamente se discute, por exemplo, no que se refere ao porte de armas para advogados.

Vejam, mesmo para a situação envolvendo os guardas municipais, com previsão expressa do porte de armas no Estatuto, tal direito só se consolidou, independentemente do número de habitantes da cidade, com a decisão do Supremo Tribunal Federal.[6] Antes disso, vários Guardas Municipais foram presos e processados por porte ilegal de arma de fogo, mesmo atuando, ainda que indiretamente, na área da Segurança Pública. Daí por que entendemos ilegal a autorização para o porte de armas de fogo conferida aos CACs por meio de atos normativos regulamentares.  

Se não bastasse isso, a realidade tem demonstrado que tal autorização, de questionável legalidade, vem sendo desvirtuada pelos CACs, que têm se valido do registro como um verdadeiro e irrestrito porte de armas, sem considerar as limitações impostas na Portaria do Exército e, sobretudo, no Decreto 9.846/19. Ora, se a intenção fosse a de viabilizar o porte ilimitado de armas de fogo, então não seria necessária a previsão de que os CACs têm seu direito de porte limitado ao trajeto indispensável à prática do desporto, caça ou abate.

Desse modo, considerando o espírito da Lei, que, insista-se, deve pautar a interpretação do ordenamento jurídico, entendemos que situações como a do comerciante do Jundiaí devem caracterizar o crime do artigo 14, do Estatuto do Desarmamento. Para tanto, deve ser avaliado o local e o horário da abordagem ao CAC, pois, a depender do contexto, será, no mínimo, inverossímil a alegação de que estaria no trajeto entre sua casa e o clube de tiro ou vice-e-versa.

Por obviedade, em havendo dúvidas no caso concreto, cabe ao delegado de Polícia adotar as medidas inicialmente cabíveis e apurar melhor os fatos por meio de Inquérito Policial, sem decretar a prisão em flagrante do CAC. Contudo, se, por exemplo, o sujeito for abordado saindo de um restaurante, às 23hrs, em local distante de qualquer Clube de Tiro, é inexorável o reconhecimento do porte ilegal de arma de fogo.

Saliente-se, ademais, que nos termos do artigo 20, do Decreto 9.847/19, poderá ocorrer a cassação do porte, com a apreensão do armamento respectivo, se o seu titular a portar ostensivamente, ingressar em locais públicos, tais como igrejas, escolas, estádios esportivos e outros locais em que haja aglomeração de pessoas ou, por fim, caso seja surpreendido em estado de embriaguez ou sob o efeito de drogas ou medicamentos que provoquem alteração do desempenho intelectual ou motor.

Em conclusão, registramos aqui o nosso entendimento de que o direito de portar armas dos CACs, sobretudo dos atiradores — que costumam transportar outras armas de fogo, inclusive de uso restrito, como fuzis – é importante para a proteção do acervo durante o trajeto até o local de treinamento. Sem uma arma de porte, pronta para o uso, o atirador fica vulnerável à ação de criminosos, que podem abordá-lo e roubar suas armas, lesando, assim, toda a sociedade. Contudo, este direito deve, de fato, ser limitado ao trajeto indispensável ao clube de tiro e conferido aos desportistas por meio de lei, que é a expressão da vontade geral.


[1] Nos termos do artigo 3º, §3º, inciso III, do Decreto 9.847/19, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento, as armas de fogo institucionais são, em regra, cadastradas pelo Sinarm, abrangendo a Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Força Nacional de Segurança, Departamento Penitenciário Nacional, Polícias Civis dos Estados e Distrito Federal, Guardas Municipais, Poder Judiciário, Ministério Público, entre outras.

[2] Para um estudo mais completo sobre o tema, recomendamos nosso Tratado de Legislação Especial Criminal, ed.2, publicado pela Editora Mizuno.

[3] Art. 135-A. "Fica autorizado o transporte de uma arma de porte, do acervo de tiro desportivo, municiada, nos deslocamentos do local de guarda do acervo para os locais de competição e/ou treinamento". Registre-se, todavia, que esta Portaria encontra-se revogada!

[4] Art. 61. "Os colecionadores, os atiradores e os caçadores poderão portar uma arma de fogo curta municiada, alimentada e carregada, pertencente a seu acervo cadastrado no Sinarm ou no Sigma, conforme o caso, sempre que estiverem em deslocamento para treinamento ou participação em competições; para abate autorizado de fauna; ou para exposição do acervo de coleção, por meio da apresentação do Certificado de Registro de colecionador, atirador desportivo ou caçador, do CRAF e da Guia de Tráfego, válidos, nos termos do §3º do art. 5º do Decreto nº 9.846/2019.”

[5] Disponível aqui.

[6] STF, ADI 5.948, Rel. Min. Alexandre Moraes, j. 29.06.2018.

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  • Brave

    é mestre em Direitos Difusos e Coletivos, professor concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo, professor da pós-graduação em Segurança Pública da Faculdade Supremo, professor do Damásio Educacional, autor de livros jurídicos e delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

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