Opinião

Busca pessoal: a insegurança jurídica no exercício da atividade policial

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15 de julho de 2022, 7h08

O presente texto tem por objetivo analisar o caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça em abril deste ano (RHC 158.580/BA) [1] e a situação vivenciada no começo do mês no centro da capital federal [2] sob a ótica da atividade policial, destacando a insegurança jurídica dos policias brasileiros no exercício de sua missão constitucional.

Recentemente, o STJ, por ocasião do julgamento do RHC 158.580/BA, de relatoria do ilustre ministro Rogério Schietti, esboçou uma verdadeira instrução normativa para dar provimento ao recurso ordinário em Habeas Corpus interposto com o fito de trancar processo instaurado por suposto tráfico de drogas em virtude de prova obtida supostamente de forma ilícita, alegando-se, para tanto, a inadequação da busca pessoal realizada por policiais militares.

Ao editar o voto condutor, o relator destacou em diversos pontos a ilegalidade de busca pessoal fundada em critérios puramente subjetivos, intangíveis e não demonstráveis pelos agentes públicos, sob pena de violação a direitos individuais com o implemento do fishing expedition (expedição de pesca), ou seja, uma forma de ocasionar um flagrante delito mesmo com a ausência da "fundada suspeita" autorizadora da abordagem.

De acordo com a 6ª Turma do STJ, a legalidade da busca pessoal está condicionada à demonstração de indícios e circunstâncias no caso concreto, aferidos de modo objetivo, "de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência".

Em verdade, o tribunal retira a discricionariedade dos policiais para avaliar o contexto fático e concluir pela suficiência de "atitudes suspeitas" merecedoras da busca pessoal, sustentando a necessidade de "critérios objetivos" para tanto. Segundo defende o relator, denúncias anônimas ou impressões subjetivas dos policiais são insuficientes à autorização da busca pessoal.

Por outro lado, em que pese a opção do colegiado pela objetividade no exercício da atribuição policial, não houve o cuidado com o tão destacado requisito "objetivo". Logo, quais seriam os elementos objetivos? Com efeito, sendo dotados de objetividade, ter-se-ia por tranquila a tarefa da Corte em defini-los. Aliás, aí está a insegurança jurídica. Ora, a decisão judicial refere-se tão somente ao que os encarregados da lei não podem fazer, mas não discrimina o que eles devem fazer para corrigir essa vicissitude.

O argumento da imprescindibilidade de "elementos objetivos" para a submissão à busca pessoal é esvaziado ao passo que estes não são explícitos pelos julgadores. Pois bem, se os próprios policiais definirem no caso concreto quais são os elementos objetivos daquela situação, não estar-se-ia incorrendo novamente na subjetividade?!

É que a subjetividade é intrínseca às atribuições incumbidas à função policial e ao exercício do poder de polícia. Há, por exemplo, imensa subjetividade na verificação dos indícios de autoria e materialidade para a atuação da prisão em flagrante delito, para a instauração do inquérito policial, e aqui para a percepção da fundada suspeita pelo policial militar.

Na prática, exemplificando, poderia dizer-se que o policial avistar uma arma na cintura do indivíduo seria causa para a busca pessoal? Ou perceber o consumo de substância entorpecente pelo usuário? Nunca! Isso porque, em ambos os casos já estar-se-ia diante de situações flagranciais, autorizadoras da prisão em flagrante em delito e não da busca pessoal.

A busca pessoal decorre de motivação anterior à constatação da ocorrência de infração penal, daí o termo "fundadas suspeitas" empregado pelo legislador. Aury Lopes Jr. expõe a vagueza atrelada ao permissivo legal da busca pessoal  fundada suspeita  esclarecendo ser uma cláusula genérica, vaga, imprecisa e indeterminada, remetendo a plena subjetividade do policial [3].

Comparativamente, não seria exagero colocar lado a lado a expressão "fundadas suspeitas", utilizado para as buscas pessoais, e o pressuposto da "garantia da ordem pública" para a decretação da preventiva, pois ambos são dotados de ampla imprecisão e genericidade, resquícios do nazifascismo alemão da década de 1930 [4].

Apesar disso, a "garantia da ordem pública" é o argumento mais utilizado pelos magistrados para a decretação da prisão preventiva e, mesmo com a exigência da demonstração de elementos concretos suficientes ao encarceramento cautelar, o alto grau de subjetividade do julgador acerca dos indícios de materialidade e autoria e do cenário in concreto do delito não foram desvinculados da expressão legal.

A subjetividade foi escolhida pelo legislador para a atuação policial e a interpretação judicial, ao menos nesse caso, não é capaz de inverter essa sistemática, que decorre da própria essência do CPP. Em todo caso, a subjetividade para a realização da busca pessoal não deve e nem pode ser fundada em características pessoais do indivíduo, como cor da pele, vestuário e condições socioeconômicas, conforme já decidiu STF há cerca de 20 anos.

Na oportunidade, a Suprema Corte invalidou uma busca pessoal justificada unicamente em razão das vestes do cidadão, o qual trajava um "blusão" e que ao entendimento dos policiais serviria de ocultação a armas ou objetos/substâncias ilícitas, justificando à busca pessoal. Desde então, as polícias militares dos estados insistem em ser o "comportamento do sujeito" o elemento motivador da suspeita para a busca.

Este comportamento pode ser compreendido como o sujeito desvencilhar-se dos policiais, o nervosismo demonstrado pelo indivíduo ao defrontar-se com a polícia e a saliência em vestes que possam indicar o transporte de armas e/ou drogas [5], exemplos de indicadores de ordem subjetiva. Seria essa uma listagem a ser feita pelo julgador quando do julgamento sub examine, o qual, repito, antes de indicar o correto comportamento policial, aponta os inúmeros erros incididos pelo policial "pecador".

Uma situação delicada está relacionada às denúncias (anônimas ou não) recebidas pela polícia militar. Corriqueiramente, populares vão ao encontro da polícia ostensiva disposta nas ruas, ou mesmo fazem o seu acionamento pelo 190, informando a respeito de pessoas que teriam acabado de cometer delitos, estariam ainda praticando-os ou na iminência de fazê-lo, com esperança de que o mal maior não fosse alcançado pelo infrator.

Foi a situação vivenciada por uma guarnição da Polícia Militar do Distrito Federal, que, ao receber a notícia de que um sujeito com determinadas características estaria em uma parada de ônibus localizada na região central de Brasília portando uma arma, deslocou-se até o local para averiguar a veracidade da informação.

O vídeo amplamente divulgado nos meios de comunicação, filmado pelo próprio abordado, demonstra que o policial não excedeu os meios necessários à apuração preliminar do chamado. A busca pessoal ateve-se a verificar a presença de alguma arma de fogo em poder do indivíduo e, logo após a revista e a identificação do cidadão, este foi prontamente liberado.

Ao condenar a atitude da polícia, em apurar a solicitação feita por um popular, a mídia simplesmente descredibiliza a polícia militar no exercício de uma de suas responsabilidades constitucionais, qual seja a de preservação da ordem pública, atuando na prevenção criminal, muito viabilizada pela busca pessoal.

Deveras, outro respaldo jurídico da ação policial pode ser extraído do próprio voto condutor do julgamento do RHC 158.580/BA, o qual infirma a fundada suspeita advinda de denúncias de populares. No item "II. Busca Pessoal" do acórdão, há citação de um escrito do notável penalista Guilherme de Souza Nucci, o qual se posiciona favoravelmente a "denúncia de terceiro" como elemento concreto autorizador da busca pessoal:  

"Assim, quando um policial desconfiar de alguém, não poderá valer-se, unicamente, de sua experiência ou pressentimento, necessitando, ainda, de algo mais palpável, como a denúncia feita por terceiro de que a pessoa porta o instrumento usado para o cometimento do delito […]".

Pois bem, em última análise e não sendo mais possível a abordagem policial motivada por comunicação apócrifa, o mais correto que se faça é que a população seja orientada no sentido da impossibilidade de solicitar a presença da polícia militar para averiguar situações envolvendo indivíduos suspeitos, já que a motivação principal para abordagens dessa natureza advém de demanda da sociedade.

Ao fim e ao cabo, o que não se pode permitir é que os policiais militares, no estrito cumprimento de dever e seguindo ordem legal emanada pelo CPP, sejam penalizados ou estigmatizados pelo exercício de suas funções típicas e/ou de procedimentos inúmeras vezes protraídos ao longo do tempo, que, até então, em sintonia com os preceitos normativos.

Por derradeiro, não se pode olvidar que a mudança de compreensão acerca dos limites e pressupostos para a busca pessoal pode ser a qualquer tempo modificada por diversas formas, sejam elas legais (com a alteração da norma) ou judiciais (em processos resultantes de efeitos erga omnes e/ou vinculantes à administração pública), mas não por força de decisão oriunda de recurso ordinário em Habeas Corpus por órgão fracionário do STJ ou em razão de críticas hostilizadas por instrumentos midiáticos.

A mutação de compreensões alicerçadas na esfera da administração pública deve ser precedida de processo democrático prévio ou, excepcionalmente, de controle judicial pela via adequada, vislumbrando consequências negativas quaisquer interferências não resultantes destes meios.

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[1] RHC nº 158.580/BA, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 19/4/2022, DJe de 25/4/2022.

[2] Ministério Público questiona abordagem policial na Galeria dos Estados. https://g1.globo.com/df/distrito-federal/df1/video/ministerio-publico-questiona-abordagem-policial-na-galeria-dos-estados-10736454.ghtml. Acessado em 08/07/2022.

[3] Lopes Jr., Aury. Direito processual penal / Aury Lopes Jr. — 16. ed.  São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

[4] Lopes Jr., Aury Direito processual penal / Aury Lopes Jr.  16. ed. — São Paulo : Saraiva Educação, 2019.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza, Manual de processo penal e execução penal, São Paulo: Gen/Forense, 2014, p. 473

Autores

  • é estudante de Direito do Centro Universitário do Distrito Federal, estagiário no escritório Amin Ferraz, Coelho e Thompson Flores Advogados e no escritório Azevedo e Carvalho Advogados Associados e pesquisador nas Áreas de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional.

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