Opinião

Bem-me-quer, malmequer: a Emenda Constitucional da (Ir)Relevância

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26 de julho de 2022, 10h05

"Segundo o presidente do STJ, ministro Humberto Martins, é um dia de festa para o Judiciário, pois a chamada PEC da Relevância resgata a missão constitucional da corte" [1].

Com essas palavras, o Superior Tribunal de Justiça trouxe a público a notícia da promulgação da Emenda Constitucional 125 (Uau! 125 Emendas… Ainda teríamos a Constituição Cidadã de 1988?). De fato, o dia foi de festa para o Judiciário. Já para os jurisdicionados…

Em um país em que os tribunais locais insistem em ignorar conscientemente [2] a jurisprudência dos tribunais superiores, instituir o novo filtro para acessá-los avilta o direito fundamental de acesso à Justiça.

Dir-se-á: a emenda constitucional prevê a relevância presumida nos casos de contrariedade à jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça. Ingênua e doce ilusão! Porventura, a emenda constitucional teria expurgado a odiosa jurisprudência defensiva? Pois é…

A relevância passa a ser critério de admissibilidade do recurso especial. Prevista, agora, constitucionalmente, questiona-se: o que é relevância? A emenda não diz. Trabalho para a doutrina e jurisprudência. Teme-se, entretanto, que a casuística e a subjetividade imperarão concretamente.

As únicas previsões que trazem alguma segurança jurídica dizem respeito ao quórum para se reconhecer inexistente a relevância da questão e as hipóteses em que a relevância se presumirá (§§ 2º e 3º do inciso III do artigo 105 da Constituição, respectivamente).

Por mais incrível que possa parecer, as ações que mais se promovem contra políticos (criminais, improbidade ou que possam gerar inelegibilidade) estão no rol da emenda constitucional. O estamento trabalha bem quanto à proteção de seus interesses, não?

Claro, os interesses econômicos também estão resguardados. Como poderia não haver relevância nas demandas cujos valores ultrapassem 500 salários-mínimos (atualmente R$ 606 mil)?

O trágico é que outras questões relevantes não encontram lugar na lista. Lá não se vê os direitos transindividuais; direitos humanos lato sensu ou mesmo de pessoas e/ou grupos vulneráveis. Tantos outros casos poderiam ser elencados como relevantes, mas não para o Judiciário, que viu motivo de comemoração na promulgação da emenda à Constituição. Aliás, esse é outro problema: Por que inserir tal requisito de admissibilidade na Constituição? Não seria o caso de prevê-lo em lei infraconstitucional, como forma de não engessar o sistema recursal [3]?

A emenda constitucional não prevê recorribilidade contra a decisão que deixar de reconhecer a relevância da questão. Tampouco estabelece a forma pela qual se estruturará a deliberação colegiada. Deixa-se, portanto, um sistema absolutamente aberto e espaço para a insegurança jurídica, subjetividade e casuística, senão para eventuais arbitrariedades.

O diagnóstico da "doença" era evidente: excesso de trabalho — humanamente invencível, diga-se. Ninguém discute que o Poder Judiciário brasileiro é um dos que mais decide no mundo, ainda mais quando a análise equipara tribunais superiores estrangeiros aos nacionais. Entretanto, o tratamento eleito faz apenas aflorar a irrelevância do jurisdicionado para o sistema de Justiça nacional, que comemora a restrição imposta pela nova Emenda.

Relembre-se de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa [4], em artigo publicado na ConJur: "Em primeiro lugar, já chegou o momento de assumirmos que o STJ tem que dobrar de tamanho, no mínimo, e de forma urgente". Sim, aumentar o acesso à jurisdição, melhorá-la, não a restringir, seja por aplicação intransigente e inconstitucional da jurisprudência defensiva ou, como agora se faz, com a criação de novo requisito de admissibilidade absolutamente genérico e subjetivo, como o da relevância.

Ora, as hipóteses de cabimento do recurso especial já eram em si mesmas relevantes. Deixar de aplicar ou respeitar lei federal ou tratado; trazer uniformização, integralidade, coerência e estabilidade à jurisprudência nacional; e decidir sobre a validade de ato de governo local contestado em face de lei federal, trazem consigo uma carga de valores muito caros à democracia, além de dizerem respeito ao próprio Estado de Direito e que, embora discutidos num processo cuja decisão terá, em regra, efeito inter pars, diz respeito à coletividade e ao sistema constitucional como um todo.

Correta a ponderação de Lenio Streck a respeito da questão: "Assumir as sugestões da OAB para delimitar critérios de relevância funciona como uma espécie de redução de danos. Todavia, o problema persiste. Haverá relevância automática e relevância subjetiva. Subsiste o problema central: a estrutura dos recursos no Brasil" [5]. Vale dizer: tratou-se um dos sintomas; manteve-se absolutamente intocada sua causa.

Espera-se, ao menos, que a interpretação do texto constitucional seja no sentido de que toda e qualquer matéria tem relevância, salvo se manifestada sua inexistência por dois terços dos membros do órgão competente para julgamento, a cuja avaliação não se submetem as matérias tratadas no § 3º do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal.

Claramente o dia é de festa ao Judiciário, cujas decisões em sua grande maioria não mais estarão sob o crivo do Superior Tribunal de Justiça e, portanto, a emenda acaricia o "superego" (não se refere aos estudos da psicanálise) dos tribunais locais. Já ao jurisdicionado… ah, este parece ser mesmo irrelevante.

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