Opinião

CPP e ressignificação autoritária na jurisprudência do STF (parte 2)

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26 de julho de 2022, 6h05

Continua parte 1.

Os paradoxos insuperáveis tratados na primeira parte deste artigo deixam muito claro que, tal qual pensava Francisco Campos, autoritarismo e liberalismo são categorias que, mesmo em um (proto)constitucionalismo democrático como o nosso, convivem perfeitamente. O ambiente é propício em especial porque, como explica Gloeckner, o processo penal de feições autoritárias não se mostra arredio à penetração simbiótica de determinados institutos liberais.

O elemento-chave dessa lógica autoritária é justamente a elevação do juiz a um sujeito processual dotado de amplos poderes, cujo único compromisso é proteger a sociedade daqueles que ameaçam a segurança do seu corpus. A razão dessa configuração é nitidamente fascista e Gloeckner mais uma vez é certeiro: "a concepção autoritária de processo penal, como articulada por CAMPOS, subsume-se à noção de instrumentalidade do processo" [1].

A colocação do juiz como gestor máximo da prova penal e o poder ilimitado que essa condição lhe confere para atribuir sentidos na arena do processo penal — uma posição de caráter claramente fascista, portanto — ao invés de serem objeto de reflexão e crítica por quem presta a jurisdição, têm sido defendidos com afinco pelas cortes. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já deu provas contundentes nesse sentido:

"Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. (…) Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autoridade intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidam assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém" [2].

A concepção instrumentalista do processo é a consagração contemporânea da investidura do juiz na função de atribuição de sentidos enquanto intérprete qualificado da norma. Ao julgador, nessa intelecção, são atribuídos poderes para fazer escolhas jurídicas, mesmo não contidas no direito legislado, e assim "reduzir as formalidades que impedem a realização do direito material em conflito" [3].

No campo do processo penal, nenhuma dinâmica ou movimento pode ser mais perigoso.

Nesse fôlego, é curioso observar que a ressignificação das práticas autoritárias brasileiras não se legitima mais apenas no Código de Processo Penal, porquanto a própria Constituição é que passa à condição de fonte simbólica que amplia o leque punitivo estatal (v.g., mandados de criminalização, configuração de regras excipientes de direitos fundamentais) e preserva o Estado Social por meio de normas penais e processuais penais policialescas [4].

A Constituição, na verdade, passa a ser o mecanismo que joga a democracia contra si mesma, já que possibilita a manutenção das exigências fetichistas de controle, segurança e punição, em uma espécie de injunção repressiva que lança mão de uma espécie de triunfo ou compensação, em matéria penal, da mesma forma que os aliados se agarraram à Linha Maginot para se resguardar do avanço nazista [5].

Um sintoma grave dessa metástase autoritária é, sem sombra de dúvidas, a relativização das formas [6] levada a cabo pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Restituída à sua própria consciência [7], e, apesar de seus cambaleantes e episódicos avanços rumo a uma processualística penal democrática, a Corte Suprema, quando interpreta o artigo 563 do Código de Processo Penal, tem ressignificado a teoria da defesa social ao aplicar, indiscriminadamente, o postulado do pas de nullitè sans grief.

O princípio do prejuízo (pas de nullitè sans grief), cujas raízes remontam à doutrina francesa, informa que, mesmo que o ato produzido praticado esteja em desacordo com o ordenamento jurídico, mas não gerou nenhum tipo de prejuízo para a acusação ou defesa, significa que o ato não precisa ser declarado nulo porque atingiu a sua finalidade.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem, desde as primeiras interpretações realizadas sob a égide do Código de Processo Penal de 1941, decidindo que não haverá declaração de nulidade quando não demonstrado o efetivo prejuízo causado à parte.

Daí que a corte já assentou, na tarefa da "eliminação de nulidades anódinas no atual sistema de processo […] penal", que a "faculdade atribuída ao juiz de proceder as diligências necessárias para provocação da parte ou iniciativa própria excluem a obrigatoriedade de reinquirição, maxime quando esse ato já se realizara durante a lavratura do flagrante, onde o autuado teve a assistência de um defensor" (HC 28.354, relator ministro Philadelpho Azevedo, julgado em 2/4/1943); que, "embora a lei declare indispensável a presença do defensor no ato processual, daí não se segue que o juiz tenha de nomear defensor para o interrogatório, porque: 1.) o defensor não intervém no interrogatório (art. 187); 2.) só e obrigatória a presença do curador no interrogatório do réu menor (art. 194)", e que, "ainda que se entendesse necessária a nomeação de defensor para o interrogatório do réu maior, não seria de acolher-se a argüição de nulidade por falta de prova de prejuízo, prova aliás difícil de ocorrer num caso em que a própria lei veda ao defensor qualquer intervenção no ato" (RHC 32.900, relator ministro Afrânio Costa, julgado em 21/7/1954); que "não há nulidade, por falta de forma, não havendo prejuízo" (RE 44631, relator ministro Ary Franco, julgado em 27/4/1961); que "não se anulam os atos de quem foi investido na função com aparência de legitimidade, ainda que ilegalmente. É homenagem que se tributa a boa fé de terceiros, que receberam a prestação funcional ou jurisdicional" (RE 47.299, relator ministro Luiz Gallotti, julgado em 16/11/1961); que, além da "desnecessidade de intimação para apresentação de alegações finais (art. 501 do Código de Processo Penal)", o "solicitador acadêmico pode funcionar como defensor no foro criminal", de modo que "não há nulidade sem prejuízo" (HC 40.120, relator ministro Evandro Lins, julgado em 9/10/1963); que a "falta de intimação de defesa para os fins do art. 499 atendeu à regra expressa do art. 501 do mesmo Código e, de resto, não lhe acarretou prejuízo" (RE 78.323, relator ministro Xavier de Albuquerque, julgado em 23/4/1974); que a "denuncia, se autentica, devidamente recebida, proporcionando ao acusado ampla defesa, não acarreta a nulidade do processo por ausência de qualquer prejuízo", e que a "defesa prévia não é elemento essencial do processo, maxime quando revel o réu, contribuiu para a falta" (RHC 54.431, relator ministro Thompson Flores, julgado em 18/6/1976); que não configura constrangimento ilegal, "em face das circunstâncias do processo e a temibilidade do acusado, a falta de sua requisição para a instrução do processo", de maneira que se está diante de "nulidade relativa, que não se declara pela inocorrência de prejuízo" (RHC 58.194, relator ministro Décio Miranda, julgado em 17/10/1980).

Essa mentalidade permanece incólume no núcleo interpretativo da Suprema Corte sobre os limites e alcances do artigo 563 do Código de Processo Penal.

É que, apesar dos influxos democráticos da Constituição de 1988, o STF não procedeu a uma verdadeira ruptura com as práticas punitivas anteriores. Pelo contrário, parece ter feito questão de, repetindo-as, naturalizá-las, conduzindo à manutenção do pensamento autoritário no seio do processo penal brasileiro — o que Gloeckner chama de pensamento pós-acusatório [8] — uma mentalidade atravessada pelo que Zaffaroni designa de autoritarismo cool, típico do pensamento punitivista latino-americano:

"Esse autoritarismo publicitário cool apresenta uma frontalidade grosseira. Porém, como carece de inimigo fixo e também de mito, é desbotado, não tem o colorido do entre-guerras nem a inventividade do biologismo racista. Seu histrionismo é bem mais patético, sua pobreza criativa é formidável, é órfão de todo e qualquer brilho perverso; antes, possui uma horrível e deprimente opacidade perversa. Não há monumentos neoclássicos, cientistas racionalizando, paradas ostentatórias; ele é pobre, funciona porque é pouco inteligente, é elementar, não pensa e promove uma greve de pensamento ou um pensamento nulo, porque explodiria ao menor sopro do pensamento. O exercício do poder punitivo tornou-se tão irracional que não tolera sequer um discurso acadêmico rasteiro, ou seja, ele não tem discurso, pois se reduz a uma mera publicidade" [9].

Basta uma pesquisa na jurisprudência eletrônica do STF por expressões como "processo penal", "nulidade", "necessidade", "demonstração" e "prejuízo" para comprovar essa premissa. Como um mantra que serve ao mesmo tempo de quebra-mar, o tribunal tem repetido a fórmula do pas de nullitè sans grief e rechaçado as tentativas de se fazer uma maior reflexão sobre a teoria das nulidades no processo penal:

"Sem a demonstração de efetivo prejuízo causado à parte, em atenção ao disposto no art. 563 do CPP, não se reconhece nulidade no processo penal" (AgRg no HC 214.986, relator ministro Alexandre de Moraes, 1ª Turma, julgado em 30/5/2022); "A jurisprudência desta Corte é no sentido de que 'não haverá declaração de nulidade quando não demonstrado o efetivo prejuízo causado à parte (pas de nullité sans grief)'" (AgRg no HC 209.516, relator ministro Roberto Barroso, 1ª Turma, julgado em 21/3/2022); a "demonstração de prejuízo, de acordo com o art. 563 do CPP, é essencial à alegação de nulidade, seja ela relativa ou absoluta" (AgRg no RHC 210.078, relator ministro Roberto Barroso, 1ª Turma, julgado em 9/3/2022); o "reconhecimento de nulidade exige demonstração do prejuízo, não sendo suficiente mera presunção, a teor do art. 563 do Código de Processo Penal" (AgRg no HC 173.814, relator ministro Nunes Marques, 2ª Turma, julgado em 17/8/2021); o "reconhecimento das nulidades alegadas pressupõe a comprovação do prejuízo, nos termos do artigo 563 do Código de Processo Penal, sendo descabida a sua presunção, no afã de se evitar um excessivo formalismo em prejuízo da adequada prestação jurisdicional" (nesse caso, o paciente havia sido condenado, em sentença transitada em julgado, à pena de 8 anos e 6 meses de reclusão) (AgRg no HC 186.896, relator ministro Luiz Fux, 1ª Turma, julgado em 18/8/2020); "A disciplina normativa das nulidades processuais, no sistema jurídico brasileiro, rege-se pelo princípio segundo o qual 'Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa' (CPP, art. 563). Esse postulado básico — 'pas de nullité sans grief' — tem por finalidade rejeitar o excesso de formalismo, desde que eventual preterição de determinada providência legal não tenha causado prejuízo para qualquer das partes (HC 119.540/MG, rel. min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 14.02.2014)" (AgRg no RE 1.318.172, relator ministro Edson Fachin, 2ª Turma, julgado em 4/4/2022); "A jurisprudência desta Suprema Corte exige, como regra, a demonstração concreta de prejuízo tanto para as nulidades absolutas quanto para as nulidades relativas, marcadas que são pelo princípio do pas de nullité sans grief previsto no artigo 563 do CPP" (ED no HC 207.940, relatora ministra Rosa Weber, 1ª Turma, julgado em 9/3/2022).

Como se vê, a prática judiciária, cujo gargalo é o Supremo Tribunal Federal, tem sido, no que diz respeito às nulidades no processo penal, responsável pela reafirmação de significantes autoritários dispostos no Código de Processo Penal, desconsiderando, à custas das garantias fundamentais, que o "ritual judiciário é um ritual de exercício de poder", de que decorre "a imprescindibilidade de sua contenção, demarcação, limitação", já que, em "democracia processual, a forma estabelecida em lei é garantia, limite, legalidade" [10].

Apesar dessa história, que tampouco pode ser desconsiderada, e porque, no processo penal, a magnitude das garantias contra o exercício do poder confere um status superior à função da tipicidade das formas, não se pode partir do pressuposto de que as atipicidades sejam irrelevantes e de que está ausente o prejuízo. É necessário, como propõe Gustavo Badaró, inverter os sinais, de modo que a parte que alega determinada nulidade e comprova que o ato foi praticado de forma atípica não carregue o ônus de demonstrar o correspondente prejuízo [11].

Disso, e de tantos outros fatores, depende o movimento para que o processo penal brasileiro finalmente possa se descolar de suas raízes autoritárias.

 


[1] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 135.

[2] Trecho do voto do ministro Humberto Gomes de Barros no AgRg no REsp nº 279.889/AL, julgado em 3/4/2001, apud STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2010, p. 25.

[3] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 2ª ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2010, p. 45.

[4] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. Processo penal acusatório? Ressignificações do autoritarismo no processo penal. In Revista da Emerj. Rio de Janeiro, v. 18, nº 67, p. 378 – 408, jan – fev. 2015. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista67/revista67_378.pdf. Acesso em: 13 jul. 2022.

[5] AMARAL, Augusto Jobim do. A vertigem da ostensão penal. In Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, ano X, nº 47, p. 125-142, out-dez. 2012.

[6] ROSA, Alexandre Morais da; Oliveira, Daniel Kessler de. Matriz autoritária como condicionante na atuação do julgador no processo penal. Conjur, 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-dez-21/limite-penal-matriz-autoritaria-condicionante-atuacao-julgador-processo-penal. Acesso em: 14 jul. 2022.

[7] STJ, HC 16.706/RJ, julgado em 17/4/2008, DJ 5/5/2008.

[8] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 75.

[9] ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 77, apud GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Autoritarismo e processo penal: uma genealogia das ideias autoritárias no processo penal brasileiro. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 81.

[10] ROSA, Alexandre Moraes da; LOPES JUNIOR, Aury. Quando a Síndrome do Pequeno Poder comparece nas audiências. Conjur, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-15/limite-penal-quando-sindrome-pequeno-poder-comparece-audiencias. Acesso em: 15 jul. 2022.

[11] BADARÓ, Gustavo. Processo penal. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 807.

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