Limite Penal

Matriz autoritária como condicionante na atuação do julgador no processo penal

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21 de dezembro de 2018, 7h00

Spacca
Alexandre Morais da Rosa [Spacca]É fato notório e amplamente discutido que nossa sistemática processual deita sua origem em um contexto político marcado pelo autoritarismo vigente no Brasil de 1941. Em que pese alguns tentem negar tal fato, é evidente a gênesis fascista de nossa legislação processual, servindo como engenhoso mecanismo destinado a fazer sofrer réus em prol do bem comum[1].

Para aqueles que insistam em não (querer) ver tais marcas de nascença de nosso Código em vigor, basta uma leitura rápida da exposição de motivos do CPP[2], onde se denota a matriz autoritária plenamente identificada na prevalência de um (pseudo) interesse coletivo em detrimento dos direitos individuais.

Infelizmente essa matriz autoritária segue vigente, mesmo no período pós-Constituição Federal de 1988, e permanece influenciando a doutrina e, principalmente, a prática forense. Sintomas claros disso são a relativização das formas, centralidade do julgador, preponderância dos elementos do inquérito, ordem pública, in dubio pro societate, banalização da prisão cautelar, execução antecipada da pena, mitigação do nível de exigência probatória para condenação, dentre outros sintomas claros e evidentes de uma legislação que não fora recepcionada pelos ideais democráticos de nossa Constituição.

Hoje nos centraremos em como essa moldura autoritária condiciona o atuar do julgador e molda as expectativas depositadas em torno deste e do próprio processo penal, no que tange ao conflito entre liberdade e prisão.

O nosso texto constitucional consagra a (combalida) presunção de inocência, que deve ser alçada a um princípio supremo e concebida como um dever de tratamento para com o acusado[3], algo muito diferente do que concebe a legislação processual penal, de forte inspiração manziniana.

Por óbvio que ao presumir alguém inocente não se está a afirmar a impossibilidade de uma prisão antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, mas apenas consagrar que a liberdade constitui a regra, sendo a prisão excepcional (e, para esse convívio, a base principiológica é crucial, para determinar que a prisão cautelar seja excepcional, provisória e com curta duração, provisional (situacional) e proporcional)[4].

Entretanto, a liberdade não é assim tratada pela nossa legislação. A iniciar pelo status de provisória que lhe é outorgado, dando uma ideia clara de um estado temporário, que perdurará apenas enquanto o processo não venha a atingir o seu fim, claramente associado ao desfecho punitivo.

Ademais, estão presentes situações em que as possibilidades recursais são conferidas tão somente para a acusação, como, por exemplo, o Recurso em Sentido Estrito, em que é cabível da decisão que não receber a denúncia (artigo 581, I) mas não tem cabimento daquela que a receber.

Em igual sentido no que tange à prisão preventiva, pois inexiste recurso para atacar a decisão que decretou a prisão, sendo o recurso cabível apenas da decisão que indeferir requerimento de prisão preventiva ou revogá-la, conceder liberdade provisória ou relaxar a prisão em flagrante (artigo 581, V).

A defesa, com isso, precisa lançar mão de uma ação de habeas corpus e lidar com todas as limitações e restrições que tal remédio constitucional vem sofrendo na prática.

Ademais, as hipóteses de recursos de oficio trazidas em nosso Código, no artigo 574, dizem respeito a situações em que o juiz concederá habeas corpus (liberdade) ou determinará a absolvição sumária ou impronúncia do Acusado. (artigo 411, revogado em 2008).

Tais situações transmitem um recado claro ao magistrado. As possibilidades de recurso, voluntário ou de oficio se destinam a situações de defesa da liberdade, ao passo em que a manutenção ou deferimento da prisão não serão objetos de recursos.

Ora, o que, de fato, se espera de um magistrado em uma moldura legal de atuação guiada por essas diretrizes de priorização da prisão ao estipular um controle muito maior acerca das decisões que entendam por absolver ou soltar quando comparadas com as decisões condenatórias ou de decretação de prisão?

A Constituição Federal que completou 30 anos esse ano, buscou uma mudança de perspectiva processual penal, o que deveria exigir o comprometimento do julgador com a sua eficácia[5], mas arraigado em sua matriz fundante nosso sistema segue resistente.

Uma consulta aos principais doutrinadores da década de 80 e 90, é possível constatar que muito pouco se alterou em seus ensinamentos nas suas obras pré e pós Constituição de 88.

Essa doutrina influenciou a cultura jurídica de nossos atores judiciais e segue marcando sobremaneira a formação destes, priorizando a legislação processual em detrimento à Constituição.

Tal cultura potencializa uma atuação protagonista do julgador que encontrará eco em uma postura condizente com ideais autoritários e irá se defrontar com uma grande resistência quando atuar guiado por ideais liberais constitucionalmente estabelecidos.

Com isso percebemos um condicionante de expectativas, que irá impor ao magistrado o que se espera de sua atuação e, consequentemente, influenciará nas expectativas sociais depositadas no processo penal e, mais especialmente, no julgador criminal.

A luta por um processo democrático e de acordo com nossa Constituição[6] já perdura 30 anos e, infelizmente, parece estar longe do fim e a cada dia mais difícil.


[1] MARTINS, Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito, The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 112-114.

[2] BRASIL, Exposição de Motivos ao Código de Processo Penal Brasileiro.

[3] Ver GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014 e ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: Análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2012.

[4] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 15a edição. São Paulo, Saraiva, 2018.

[5] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. P: 165.

[6] Ver ROSA, Alexandre Morais da. SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um processo penal democrático. Crítica à metástase do controle social. 2ª Tiragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

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