Opinião

Ainda sobre a vedação da pescaria probatória (fishing expedition)

Autores

  • Luciano Oliveira de Melo

    é auditor de controle externo do TCE-AC advogado criminalista e pós-graduado em Direito Constitucional e sócio da SMT Advogados Associados.

  • Thomaz Carneiro Drumond

    é procurador do estado do Acre pós-graduado em Direito Administrativo Tributário Empresarial e em Processo Civil presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-AC e advogado sócio de Drumond Leitão Torres Advogados.

24 de julho de 2022, 6h32

A persecução penal se inicia, em regra, pela investigação criminal e tem como ponto de partida a existência de um fato reputado criminoso, tal como previsto no artigo 5º, inciso I e II, do CPP. Em tempos de operação lava-jato, o "interesse público" parecia justificar uma atuação investigativa mais invasiva de modo a, por exemplo, validar a condução coercitiva antes da interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal nas ADPF nº 395 e 444.

Após a quase extinção da dita operação, surgiram construções doutrinárias e jurisprudenciais que visaram retirar do inquérito policial o seu caráter iminentemente inquisitorial, adequando-o ao sistema acusatório e garantias de cariz jus fundamentais.

Sob essa perspectiva, a investigação criminal tem sido confrontada, mais recentemente, com a prática de fishing expedition, conceituada como a investigação especulativa indiscriminada, sem objetivo certo ou declarado, que 'lança' suas redes com a esperança de 'pescar' qualquer prova, para subsidiar uma futura acusação. Ou seja, é uma investigação prévia, realizada de maneira muito ampla e genérica para buscar evidências sobre a prática de futuros crimes [1].

Nos Tribunais Superiores, a proibição da pescaria de provas com intuito de encontrar pessoas ao invés de apuração dos fatos reputados criminosos passou a ser reverberada em consonância com conceituação doutrinaria. Em célebre voto proferido no âmbito do Inq 4831, o ex-ministro do STF Celso de Mello lecionou:

"E o motivo de observar-se a existência de conexão com os eventos alegadamente delituosos sob investigação penal reside no fato de que o nosso sistema jurídico, além de amparar o princípio constitucional da intimidade pessoal, repele atividades probatórias que caracterizem verdadeiras e lesivas 'fishing expeditions', vale dizer, o ordenamento positivo brasileiro repudia medidas de obtenção de prova que se traduzam em ilícitas investigações meramente especulativas ou randômicas, de caráter exploratório, também conhecidas como diligências de prospecção, simplesmente vedadas pelo ordenamento jurídico brasileiro, como resulta não só da doutrina (…), mas, também, da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça".

Também no Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE nº 1.055.941/SP (Tema 990), malgrado tenha fixado tese no sentido da constitucionalidade do compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF  Unidade de Inteligência Financeira (atual Coaf) e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal para fins criminais sem prévia autorização judicial, proibiu-se expressamente a geração de RIF (Relatório de Inteligência Financeira) por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza, conforme colhe-se do trecho do RE nº 1.055.941/SP (Tema 990) :

"[…] absoluta e intransponível impossibilidade da geração de RIF por encomenda (fishing expedition) contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza ou em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência com fundamento na análise de informações contidas em sua base de dados. […] Esse ponto reforça a ausência de poder requisitório do Ministério Público junto à Unidade de Inteligência brasileira, que simplesmente produz atividade de inteligência, sem, contudo, certificar a legalidade ou não das operações financeiras analisadas. […]" (RE 1055941, relator (a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 04/12/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020 REPUBLICAÇÃO: DJe-052 DIVULG 17-03-2021 PUBLIC 18-03-2021).

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça novamente reconheceu a vedação da pesca probatória no RHC 158580 / BA, de relatoria do ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, noticiado no Informativo de Jurisprudência nº 735, publicado em 09 de maio de 2022:

"RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL. AUSÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA. ALEGAÇÃO VAGA DE ATITUDE SUSPEITA. INSUFICIÊNCIA. ILICITUDE DA PROVA OBTIDA. TRANCAMENTO DO PROCESSO. RECURSO PROVIDO.

1. Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.

2. Entretanto, a normativa constante do artigo 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito.

Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo) que constitua corpo de delito de uma infração penal. O artigo 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como rotina ou praxedo policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.

3. Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de fundada suspeitaexigido pelo art. 244 do CPP.

4. O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos independentemente da quantidade  após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento fundada suspeita de posse de corpo de delito seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.

5. A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do (s) agente (s) público (s) que tenha (m) realizado a diligência.

6. Há três razões principais para que se exijam elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal vulgarmente conhecida como dura, geral, revista, enquadro ou baculejo, além da intuição baseada no tirocínio policial:

a) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (artigo 5º, caput, e X, da Constituição Federal), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre , também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes;

b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;

c) evitar a repetição ainda que nem sempre consciente  de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural.
[…]
16. Recurso provido para determinar o trancamento do processo".
(RHC nº 158.580/BA, relator ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 19/4/2022, DJe de 25/4/2022.)  

Seguindo esta tendência, a nova Lei de Abuso de Autoridade em seu artigo 27 tipificou criminalmente tal conduta irregular de "requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa", cominando pena de seis meses a dois anos, e multa.

A aplicação a proibição da fishing expediton tem consequências diretas na validade e pertinência das provas no processo penal, porquanto podem, ora trancar as investigações em curso, ora contaminar as provas que lastrearam a condenação criminal.   

Com efeito, nos termos do artigo 5º, LVI, da Constituição, "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". Por sua vez, dispõe o artigo 157 do Código de Processo Penal que "são inadmissíveis as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação de normas constitucionais ou legais".

Gustavo Henrique Badaró ensina que nos meios de obtenção de prova produzidos no inquérito policial, que necessitam de ordem judicial e tenham sido praticados de forma viciada, sua nulidade se projetará na ação penal. Uma interceptação telefônica realizada em investigação de crime punido com detenção, ou uma busca e apreensão domiciliar efetuada em residência diversa daquela constante do mandado, não poderão ser validamente consideradas no processo. Os elementos de informação colhidos em tais atos não poderão integrar o material probatório a ser valorado pelo juiz [2].

No Tribunal de Justiça do Estado do Acre, recentemente levantou-se o debate a respeito da fishing expediton em sede de investigação criminal no Habeas Corpus nº 1000153-46.2022.8.01.0000, todavia houve o trancamento do inquérito por outro fundamento, relativo à competência investigatória. Apesar disso, importa dizer que a advocacia precisa estar diariamente atenta aos vorazes poderes investigatórios do Estado com o fim de defender os direitos fundamentais dos jurisdicionados, que correm risco de violação mesmo diante dos precedentes dos Tribunais Superiores.

Longe de esgotar a discussão acerca da viabilidade de a proibição da fishing expediton operar como forma de adequação da persecução penal ao sistema de garantias fundamentais, é certo que a concepção do inquérito policial na modelagem do Código de Processo Penal precisa ser interpretado à luz da Constituição, evitando-se as repetições desse tipo de violação aos direitos dos cidadãos.


[1] Viviani Ghizoni Silva e Philipe Benoni Melo e Silva ("Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e Apreensão". Florianópolis: EMais, 2019)

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal — 8.ed. rev., atual. e ampl. — São Paulo: Thonson Reuters Brasil, 2020. p. 167.

Autores

  • é auditor de Controle Externo do TCE/AC, advogado criminalista e pós-graduada em Direito Constitucional e sócio da SMT Advogados Associados.

  • é procurador do estado do Acre, bacharel em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Administrativo, Tributário, Empresarial e em Processo Civil, presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-AC e advogado sócio de Drumond Leitão Torres Advogados.

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