Embargos Culturais

O poeta Carlos Drummond de Andrade e o jurista Francisco Campos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de julho de 2022, 8h05

Logo após a morte de Francisco Campos, em novembro de 1968, Carlos Drummond de Andrade publicou no Correio da Manhã um registro necrológico do jurista que falecia. O texto é lírico e inesperado. É um texto lindo. É mais do que um compadrio mineiro. Ambos eram muito ligados a Gustavo Capanema, de quem Drummond foi chefe de gabinete, e ao lado de quem Francisco Campos foi ministro no Estado Novo. As palavras do poeta realçam a personalidade e as habilidades de Francisco Campos, no meu ver, um dos mais injustiçados juristas brasileiros. Há dez anos trabalho em uma biografia desse enigmático jurista e quanto mais pesquiso mais me desconcerto.

Spacca
Nesse belíssimo texto, Drummond afirmou que Campos era um "desconhecido". O título da crônica é justamente "Francisco Campos, o desconhecido". O poeta começa observando que um jornal carioca havia noticiado que Campos fora um "péssimo romancista". Drummond lembra o leitor que Campos jamais escreveu um romance, e que fora uma personalidade que exerceu enorme influência na vida nacional, e que o equívoco do jornal comprovava que, de fato, Campos era um "desconhecido". A bem da verdade, Campos tentou a todo custo entrar para a Academia Brasileira de Letras. Seu nome não foi abonado. Getúlio Vargas o foi mais tarde. Lobato e Lima Barreto, a exemplo de Campos, também não se imortalizaram.

A exemplo do que se pensa ainda hoje, Campos era lembrado pelos contemporâneos de Drummond como o intelectual que havia concebido intelectualmente a ditadura de Getúlio. Segundo Drummond, "uma longa e frustrante ditadura". Não entendo o que o poeta tentava significar com "frustrante ditadura". No entanto, segundo Drummond, a partir da equivocada notícia do jornal, os aspectos variadíssimos da individualidade de Campos foram omitidos "nessa fotografia a meia-luz, destinada a apresentar-nos um demônio aniquilador da ordem jurídica e contemptor dos direitos humanos".

Para Drummond, a culpa dessa má imagem também era de Campos. O jurista não estimava a popularidade, "a que se atinge habitualmente pela demagogia, talvez experimentasse mesmo certo prazer irônico em ser julgado ao contrário, ou à margem do que era – homem de pensamento (…)". Para Drummond, Campos "não se comprazia com esquemas medíocres". De acordo com esse belíssimo texto, "seu intelectualismo [o de Campos] ia para as concepções atrevidas, capazes de despertar indignação ou entusiasmo, nunca a aprovação fria, o frio desinteresse". Tem provocado muito mais a indignação.

Segue Drummond: "Empenhado na formulação de uma estrutura política, punha nisso a paixão de um jogador que não avalia riscos, juntamente com uma pitada de humor negro — esse humor que o acompanhou ao longo da vida, fazendo dele um ser desconcertante e fascinante na estranha composição de dons com que o proveu a natureza". Para o poeta, o jurista fora um intelectual puro que enveredara pela política; fora o "jurista a quem coube, em duas encruzilhadas históricas, dissolver sistemas jurídicos". De fato, Campos foi o autor da Carta de 1937, e também dos primeiros textos normativos de 1964.

Campos, segundo Drummond, fora um "homem discutido, incompreendido e negado". Levaria tempo, prossegue o poeta, para que o jurista fosse entendido em sua natureza complexa. Para Drummond, e com muita razão, Campos passaria para nossa histórica política e cultural como um enigma, "uma vez dissipada a visão unilateral do redator do Estado Novo e do 1º Ato Adicional [sic], pois, comprovada a riqueza de traços do homem de Estado e do intelectual, restará investigar a marca profunda, o sinal íntimo e definidor, o que foi, afinal, ou o que poderia ter sido, em um meio cultural aberto às grandes aventuras da inteligência, ou à ação da inteligência sobre a sociedade, o homem-paradoxo, apaixonado e cético, solitário e perturbador, que se chamou Francisco Campos".

O itapemirinense Rubem Braga lembrava que o toque de Campos na tomada acabava sempre em um curto-circuito na democracia. Isso todo mundo sabe, e isso ninguém discute, e isso não é nenhuma novidade. Não percamos tempo com essa discussão. Meu objetivo, nos embargos culturais dessa semana, foi desenterrar um documento de fonte primária e registrar que um de nossos poetas mais sensíveis (e Drummond certamente o foi) guardou reminiscências tão afetivas e desconcertantes sobre o jurista do Estado Novo.

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