Opinião

Crise em Mianmar: os rohingya e o genocídio

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21 de julho de 2022, 11h04

Estima-se que há cerca de 10 milhões de pessoas apátridas no mundo [1]. De acordo com a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas de 1960, "o termo apátrida designará toda a pessoa que não seja considerada por qualquer Estado, segundo a sua legislação, como seu nacional" [2]. Já o conceito de refugidos refere-se àqueles que, por razões de raça, religião, nacionalidade ou opinião política estão fora de seu país de nacionalidade, ou são incapazes de viver com segurança nesse país [3].

Zakir Hossain Chowdhury/Agência Anadolu
Muçulmanos rohingyaque fugindo das operações militares em Mianmar
Zakir Chowdhury/Agência Anadolu

Assim, repara-se uma certa sobreposição dessas definições, visto que ambos não são "bem-vindos" em determinado Estado [4]. Existe aproximadamente 1,5 milhões de pessoas refugiadas e apátridas [5].

Visto isso, os rohingya são uma minoria étnica, islamista, que vivem na região da Rakhine, em Mianmar. Eles se encaixam como apátridas, porque, nos termos da legislação vigente, não conseguem provar que são nativos de Mianmar [6]. O reconhecimento dos rohingya como um povo nativo de Mianmar é problemático, existindo inúmeros relatos divergentes sobre o assunto [7].

Contudo, não é o objetivo do presente artigo discutir tais controvérsias. Pretende-se realizar um breve apanhando sobre o surgimento do conflito. Em seguida, demonstrar-se-ia o que já foi feito para tentar solucionar tal disputa, analisando a eficácia dessas medidas. Por fim, propõe-se soluções para essa tragédia.

Origens e atualidade
O conflito não é recente. Conforme mencionado acima, a discussão se versa no reconhecimento dos rohingya como um povoado nativo da região ou não. Por volta de 800 a.C, os rohingya — que já ocupavam a área de Rakhine, conhecida anteriormente como Arakan —, e os budistas — a maioria étnica da região — viviam em paz [8]. Com a Segunda Guerra Mundial, o cenário mudou. Isso ocorre pois os rohingya apoiaram o Reino Unido, enquanto os demais grupos étnicos apoiaram o Japão — país que veio a ocupar Mianmar, então denominado de Burma[9]. Nesse período, a minoria étnica foi perseguida pelos japoneses, resultando em cerca de 100 mil mortes [10].

Em 1948, o país tornou-se independente e a tensão entre os rohingya e as demais etnias, especialmente os budistas, continuaram a se escalar. Em 1989, com o golpe militar, alterou-se o nome do país de Burma para Mianmar. Com os militares no poder, a repressão a esse povo tornou-se ainda mais severa, com cerca de 260 mil rohingya buscando refúgio em Bangladesh [11].

Quanto ao cenário atual, o governo de Mianmar define os rohingya como imigrantes ilegais de Bangladesh [12], sendo eles um dos grupos mais perseguidos e abusados mundialmente. Existem inúmeros relatos e ocorrências de conflitos entre os Rohingya — em especial entre o Arakan Rohingya Salvation Army (Arsa), um grupo militante dos rohingya — e os militares de Mianmar [13].

O confronto chegou ao seu ápice em 2017. Insatisfeitos com suas condições de vida, no dia 25 de agosto, o Arsa atacou estações de polícia e iniciou protestos na região de Rakhine. Tal iniciativa resultou na morte de forças policiais do regime de Mianmar [14]. A resposta não pode ser mais incisiva.

As forças armadas de Mianmar destruíram, queimaram e mataram. Imagens mostram mais de 200 vilarejos completamente queimados [15]. Cerca de 400 mil civis tiveram que fugir para Bangladesh [16]. Enquanto os que sobreviverem descrevem cenas horrorosas de tortura, de estupros, de execuções e de outras atrocidades [17] [18].

A situação é tão grave que Anistia Internacional considera a situação análoga ao apartheid [19], existindo um relatório produzido pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU que descreve as intenções dos militares como genocidas[20]. Além disso, esse documento revela claras violações a direitos humanos, afirmando que crianças, mulheres e civis estão sendo sistematicamente abusados.

Marzuki Darusman, investigador independente que participou da missão, diz que ocorreram violações grosserias de direitos humanos e crimes internacionais, pleiteando a investigação e a punição da alta cúpula do governo. Por fim, ele conclui que "Eu nunca me deparei por crimes tão horrorosos em uma escala como essa [21]" (tradução livre). Visto isso, o secretário geral da ONU, Antonio Gutters disse que os rohingya podem ser as pessoas mais discriminadas no mundo [22].

A situação continua tensa. Em 2021, houve mais um golpe militar no país, em que as forças armadas mataram mais de 1.000 pessoas que resistiram [23]. Ademais, em recente pesquisa realizada pela ONU, 66% dos entrevistados afirmam que pretendem voltar ao seu país natal, todavia 81% preferem voltar por meio de algum mecanismo formal que garanta a sua repatriação. Cerca de 30% dos entrevistados não querem voltar devido a medos relacionados a sua segurança [24].

O que já foi feito?
Considerando que a situação em Mianmar não é recente, cabe analisar como os agentes internacionais já tentaram lidar com o caso. Diferentes órgãos da ONU já adotaram múltiplas resoluções e pronunciamentos condenando a violência contra os rohingya. Vale destacar: (1) a Resolução 34/22 do Comitê de Direitos Humanos; (2) o pronunciado do presidente do Conselho de Segurança de 6 de novembro de 2017 e; (3) o caso instalado da Corte Internacional de Justiça (CIJ).

Quanto a Resolução 34/22 [25], ela estabeleceu a missão independente para averiguar a situação em Mianmar. Essa missão é importante, pois gerou um relatório apresentado à Assembleia Geral da ONU em setembro de 2018, dando luz às atrocidades cometidas [26]. A resolução também recomendou que o Estado de Mianmar elegesse um governo de forma democrática e cessasse as agressões aos rohingya.

O pronunciado do presidente do Conselho de Segurança em novembro de 2017 é outro marco relevante [27]. Nessa deliberação, as ações do governo de Mianmar foram condenadas, declarando-o como o principal responsável pelo conflito. Por fim, fez-se demais recomendações para cessar as violações de direitos humanos em Rakhine e para prestar apoio aos deslocados.

Mesmo com objetivos dignos, há um grande problema entendido como uma das maiores limitações do direito internacional. O problema de enforcement. Isso ocorre, pois não há autoridade supranacional que possa garantir o cumprimento efetivo dessas medidas. Logo, apesar de Mianmar ser um Estado membro da ONU, é muito difícil fazer cumprir-se essas decisões, tanto que a maioria não teve êxito.

Quanto ao caso na CIJ, esse foi ajuizado em novembro de 2019 pela Gambia [28]. O caso se embasa no artigo 9 da Convenção de Genocídio de 1979. Essa medida pode vir a ser efetiva. Contudo, o tribunal ainda não emitiu nenhuma decisão e o caso segue em tramite.

Como solucionar?
Visto a ineficiência das determinações emanadas pelo Conselho de Segurança e pelo Comitê de Direitos Humanos, recomenda-se que as partes, auxiliadas por países versados na técnica e na prática da mediação, estabeleçam um mecanismo para sanar as diferenças entre esses grupos e regular a volta dos rohingya a Mianmar.

Tendo como um dos seus principais objetivos a restauração da comunicação entre as partes, a mediação é um método auto compositivo de resolução de conflitos. Em geral, uma sessão é conduzida por um terceiro imparcial, sendo esse o mediador. Dessa forma, o mediador possui a intenção de facilitar a comunicação entre as partes, ajudando-as a se expressar de forma mais eficiente e distensionando a mesa como um todo.

A mediação, em um contexto internacional, já foi utilizada muitas vezes para solucionar conflitos armados entre e dentro de Estados [29]. Alguns exemplos desse uso seriam o caso da Península do Sinai, a mediação argelina na liberação de reféns americanos no Irã e o papel de mediador que o Brasil ocupou nos conflitos entre Equador e Peru.

Além disso, a mediação é um método que propulsiona a redução dos custos de transação entre os interessados [30]. Como postulado anteriormente, 81% dos indivíduos deslocados preferem voltar por meio de algum mecanismo formal para garantir sua repatriação. Sendo assim, a negociação entre o governo de Mianmar os representantes dos rohingya, mediada por Estados que possuem ampla experiência nesse método de resolução de conflitos, como é o caso de um país como Israel, poderia culminar em um mecanismo formal de repatriação, atenuando o conflito.

Contudo, reconhece-se que essa solução é completamente dependente da vontade de cada parte para negociar, não sendo uma garantia de êxito. É uma alternativa possível, não necessariamente provável.

 


[1] UNITED NATIONS REFGUGEE AGENCY. Statelessness around the world. Disponível em: https://www.unhcr.org/ibelong/statelessness-around-the-world/. Acesso em: 9 Jun. 2022.

[2] CONVENÇÃO sobre o Estatuto dos Apátridas. 28 de Setembro de 1954. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_sobre_o_Estatuto_dos_Apatridas_de_1954.pdf. Acesso em: 9 Jun. 2022.

[3] CONVENÇÃO e Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em: https://www.unhcr.org/3b66c2aa10. Acesso em: 9 jun. 2022.

[4] MILTON, Abul Hasnat et. al. Trapped in statelessness: Rohingya refugees in Bangladesh. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 14, nº 8, p. 942, 2017. pp. 942 e 943.

[5] LAMBERT, H. The link between statelessness and refugeehood. International Affairs Forum, 2016. Disponível em: https://www.ia-forum.org/Content/ViewInternal_Document.cfm?contenttype_id=5&ContentID=8495. Acesso em: 9 Jun. 2022.

[6] WARE, Anthony; LAOUTIDES, Costas. Myanmar's 'Rohingya' conflict. Oxford University Press, 2018. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=5_pyDwAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 9 jun. 2022. p. 24.

[7] MAHMOOD, Syed S. et al. The Rohingya people of Myanmar: health, human rights, and identity. The Lancet, v. 389, nº 10081, p. 1841-1850, 2017. p. 1841.

[8] MILTON, Abul Hasnat et. al. Trapped in statelessness: Rohingya refugees in Bangladesh. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 14, nº 8, p. 942, 2017. p. 943.

[9] ULLAH, Akm Ahsan. Rohingya refugees to Bangladesh: Historical exclusions and contemporary marginalization. Journal of Immigrant & Refugee Studies, v. 9, nº 2, pp. 139-161, 2011.

[10] LIVING in Limbo: Burmese Rohingyas in Malaysia. Human Rights Watch, 1 Ago. 2000. Disponível em: https://www.hrw.org/report/2000/08/01/malaysia/burma-living-limbo-burmese-rohingyas-malaysia. Acesso em: 9 Jun. 2022.

[11] WIJNROKS, Marijke et al. Surveillance of the health and nutritional status of Rohingya refugees in Bangladesh. Disasters, v. 17, nº 4, p. 348-356, 1993.

[12] CHAN, Aye. The development of a Muslim enclave in Arakan (Rakhine) state of Burma (Myanmar). SOAS Bulletin of Burma Research, v. 3, nº 2, p. 396-420, 2005.

[13] LEE, Ronan. Myanmar’s Arakan Rohingya Salvation Army (Arsa): An Analysis of a New Muslim Militant Group and its Strategic Communications. Perspectives on Terrorism, v. 15, nº 6, p. 61-75, 2021. p. 65.

[14] BURMA: Satellite Imagery Shows Mass Destruction. Human Rights Watch, 19 set. 2021. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2017/09/19/burma-satellite-imagery-shows-mass-destruction. Acesso em 9 Jun. 2022.

[15] Ibid.

[16] BEYRER, Chris; KAMARULZAMAN, Adeeba. Ethnic cleansing in Myanmar: the Rohingya crisis and human rights. The Lancet, v. 390, n. 10102, p. 1570-1573, 2017.

[17] COCHARNE, Liam. Rohingya Muslims tell of gang rapes and secret killings in Myanmar's hidden region. Australian Broadcasting Company News, 9 jul. 2017. Disponível em: https://www.abc.net.au/news/2017-07-19/myanmar-rohingya-muslims-share-stories-violence-rakhine-state/8721978#top. Acesso em: 9 jun. 2022.

 

[18] GOWEN, Annie. “Blood flowed in the streets”: refugees from one Rohingya village recount days of horror. The Washington Post, 16 Set. 2017. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/world/asia_pacific/blood-flowed-in-the-streets-refugees-from-one-rohingya-village-recount-days-of-horror/2017/09/15/34059ecc-9735-11e7-af6a-6555caaeb8dc_story.html. Acesso em: 9 jun. 2022.

[19] MYANMAR’S apartheid campaign against the Rohingya. Amnesty International UK, 18 mai. 2020. Disponível em: https://www.amnesty.org.uk/myanmar-apartheid-campaign-against-rohingya-burma. Acesso em: 9 jun. 2022.

[20] MYANMAR: UN Fact-Finding Mission releases its full account of massive violations by military in Rakhine, Kachin and Shan States. Office of the High Comissioner of United Nations Human Rights, 18 set. 2018. Disponível em: https://www.ohchr.org/en/press-releases/2018/09/myanmar-un-fact-finding-mission-releases-its-full-account-massive-violations?LangID=E&NewsID=23575. Acesso em: 9 jun. 2022.

[21] Ibid.

[22] MYANMAR Rohingya: What you need to know about the crisis. BBC News, 23 jan. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-asia-41566561. Acesso em: 9 jun. 2022.

[23]AMNTESY INTENATIONAL. Myanmar's apartheid against the Rohingy. Disponível em: https://www.amnesty.org.uk/myanmar-apartheid-against-rohingya. Acesso em: 9 jun. 2022.

[24] ROHINGYA Refugees from Myanmar: A Regional Perspective. UNHCR Regional Bureau for Asia and the Pacific, nov. 2021. Disponível em: https://reliefweb.int/report/bangladesh/rohingya-refugees-myanmar-regional-perspective-november-2021. Acesso em: 9 jun. 2022.

[26] REPORT of the independent international fact-finding mission on Myanmar. UN Human Rights Council, 12 set. 2018. Disponível em: http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/a_hrc_39_64.pdf. Acesso em: 9 jun. 2022.

[27] STATEMENT by the President of the Security Council. UN Security Council, 6 nov. 2017. Disponível em: http://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/s_prst_2017_22.pdf. Acesso em: 9 jun. 2022.

[28] DEVELOPMENTS in Gambia's Case Against Myanmar at the International Court of Justice: questions and answers. Human Rights Watch, 14 fev. 2022. Disponível em: https://www.hrw.org/news/2022/02/14/developments-gambias-case-against-myanmar-international-court-justice#:~:text=On%20February%201%2C%202021%2C%20Myanmar's,February%2021%20to%2028%2C%202022. Acesso em: 9 jun. 2022.

[29] MORALES, F. CAMPOS, M. B. PINHEIRO, M. C. Métodos alternativos de resolução de conflitos no contexto internacional. ConJur, 4 jun. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-04/opiniao-russia-ucrania-mediacao. Acesso em: 9 jun. 2022.

[30] MORALES, F. A. F. ARMOND, J. B. V. A mediação é o método mais eficiente para resolver conflitos? Uma análise econômica. ConJur, 18 ago. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-18/morales-armond-mediacao-resolucao-conflitos. Acesso em: 9 jun. 2022.

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