Processo Novo

O papel dos juristas em um contexto de assédio à democracia

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

20 de julho de 2022, 14h20

"Não importa que a vulneração se mostre velada pelo silêncio do julgador ou se aninhe oculta nas dobras e refego da sentença. Não montaria até que a sentença proclamasse e anunciasse fieldade e obediência ao texto malferido." Referia-se Orozimbo Nonato, nessa lição, ao caso em que a decisão judicial é aparentemente conforme à lei, mas a desrespeita. Afirmava, então, encontrar-se presente questão federal que poderia ser veiculada através do recurso extraordinário [1]. Ao ler essa passagem, porém, alguns têm impressão de que ele se referia à hipótese em que há divergência entre a vontade real e a vontade declarada no julgado. Vícios dessa natureza podem levar à ausência de animus judicandi e, até, à inexistência jurídica da decisão judicial [2].

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Mas o tema é mais amplo, diz respeito a todas as esferas em que pode haver tomada de decisão estatal, além da judicial, também a administrativa e a legislativa, e tem várias camadas. Um dos aspectos que chamam a atenção diz respeito à possibilidade de o grau de comprometimento da vontade dos agentes estatais ser tão profundo e disseminado, a ponto de se colocar em risco a própria ideia de Estado Democrático de Direito, fórmula que, mais recentemente, vem sendo traduzida pelos estudiosos com a expressão Estado constitucional [3].

Para alguns, o cinismo é uma das características da sociedade moderna. Interessa, em primeiro lugar, diante do "reinado da urgência", deixar-se de lado o mais importante, priorizando-se "a ação imediata à custa da reflexão, o acessório à custa do essencial", criando-se um ambiente propicio à ampla ideologização [4]. Mas instituições públicas em geral encontram- se cada vez mais frágeis e não se mostram capazes de demonstrar um rumo seguro para a definição e a satisfação de tais interesses [5]. Apresenta-se, então, um espetáculo cerimonial: os agentes vivem a afirmar princípios em discursos que são por eles mesmos deixados de lado em sua vida social. A desfaçatez, o descaramento e o descaso pela ética orientam a prática cotidiana, enquanto o discurso é marcado por palavras de ordem em defesa da moral e dos bons costumes. Assim, o cinismo, como denuncia a literatura, acaba sendo a maior marca destes tempos [6].

A professora Heidi Li Feldman, da Universidade de Georgetown, em mensagem veiculada em sua rede social, chamou a atenção para problema que, a seu ver, vem acontecendo nos EUA [7]. Normalmente, diz ela, estuda-se e ensina-se direito naquele país partindo-se do pressuposto de que presidentes, governadores, legisladores estaduais e federais e juízes dos tribunais têm um compromisso básico com o Estado de Direito e a justiça. De fato, quando estudamos e lecionamos sobre a Constituição ou as leis, os atos dos administradores públicos ou as decisões judiciais, também nós, por aqui, partimos do pressuposto de que todos os agentes que participam dessa construção têm aspirações democráticas e pretendem realizar os direitos fundamentais previstos na Constituição. Estudamos os erros e as falhas como uma patologia, não como algo que está na própria fisiologia do funcionamento do Estado. Retornando ao que escreveu a professora Heidi Li Feldman, destaca ela o fato de que os estudiosos do direito devem procurar demonstrar que o discurso jurídico pode ser utilizado para dissimular a violação a direitos fundamentais.

Indo para outro continente, é possível fazer algumas aproximações entre essas reflexões e as que compartilhou o professor Joaquín Urías, da Universidade de Sevilla, também em texto recente, dedicado à análise de dificuldades que, segundo afirma, vêm se manifestando na Espanha, e cujo título tomo de empréstimo para a presente coluna [8]. Narra ele um episódio em que, através de ações policiais orientadas, realizadas com o apoio da imprensa, influencia-se o debate público através de notícias falsas, com o propósito de macular eleições a serem realizadas naquele país. Diz ele (em tradução livre): "A democracia consiste essencialmente na liberdade individual e coletiva de decidir nosso próprio destino. Exige, por um lado, que a direção da sociedade obedeça à vontade coletiva expressa por meio de eleições e mecanismos de participação. Por outro lado, que cada indivíduo goze de um espaço invulnerável de autodeterminação: aquele garantido pelos direitos fundamentais, garantidos judicialmente de forma absoluta, mesmo contra o poder da maioria". Adiante, em outro trecho, prossegue: "O funcionamento partidário das forças de segurança representa assim uma ameaça direta contra milhões de cidadãos que pensam de forma diferente. Ela só poderia ser combatida com um judiciário poderoso e independente, capaz de cumprir sua tarefa de garantidor de direitos e freio ao poder". E, chegando à conclusão de seu artigo, lamenta: "Nas faculdades continuaremos explicando a Constituição, os direitos fundamentais e a democracia. Mas esses conceitos não são mais alusivos a uma realidade espanhola".

O assédio à democracia, como se vê, é algo que ocupa o pensamento de muitos estudiosos do direito, em vários locais do globo terrestre. Não se pode afirmar que houve "a vitória definitiva do materialismo e do cinismo" [9], pois nossa época é também "marcada por uma reconciliação inédita com os fundamentos humanistas" [10]. Mas, em um contexto em que o Estado Democrático de Direito se encontra em crise e em risco, qual o papel dos juristas? Talvez uma das respostas possa ser encontrada neste texto de Celso Furtado: "que é a utopia senão o fruto da percepção de dimensões secretas da realidade, um afloramento das energias contidas que antecipa a ampliação do horizonte de potencialidades aberto ao homem? Esta ação de vanguarda constitui uma das ações mais nobres a serem cumpridas pelos intelectuais nas épocas de crise. Cabe-lhes aprofundar a percepção da realidade social para evitar que se alastrem as manchas de irracionalidade que alimentam o aventureirismo político; cabe-lhes projetar luz sobre os desvãos da história, onde se ocultam os crimes cometidos pelos que abusam do poder; cabe-lhes auscultar e traduzir as ansiedades e aspirações das forças sociais ainda sem meios próprios de expressão" [11]. Nesse ambiente, os estudiosos do direito, em sua atuação, têm a grave tarefa de se manifestar de modo a impedir que a Constituição e as leis sejam interpretadas e usadas contra o próprio Estado de Direito, em um assédio à democracia.

 


[1] O trecho é citado por José Afonso da Silva (Do recurso no direito processual civil brasileiro, Ed. Revista dos Tribunais, 1963, p. 197).

[2] Sobre o tema, cf. o que escrevemos em Curso de Direito Processual Civil Moderno (Ed. Revista dos Tribunais, 7ª ed., 2022), Capítulo I, item 3.7.4, sobre imparcialidade judicial, e Capítulo VII, item 4.2.3, sobre os meios processuais que podem ser utilizados contra decisões acometidas de tais vícios.

[3] A respeito, tratando da evolução dessas ideias, cf. o que expusemos em Constituição Federal Comentada (7ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2022), comentário aos arts. 1º, 2º, 49, 76 e 92 do texto constitucional.

[4] Gilles Lipovetsky, Os tempos hipermodernos (trad. Mário Vilela, Ed. Barcarolla, 2004), p. 77. Cf. também André Gorz, Misérias do presente, riquezas do possível (trad. Ana Montoia, Ed. Annablume, 2004), p. 68

[5] Slavoj Zizek, Bem-vindo ao deserto do real (trad. Paulo Cezar Castanheira, Ed. Boitempo, 2003), p. 25 e ss.

[6] Gilles Lipovetsky, ob. cit., p. 100.

[9] Pierre-Henri Tavoillot, no Prefácio à obra de Gilles Lipovetsky, cit., p. 8.

[10] Gilles Lipovetsky, ob. cit., p. 99.

[11] Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura (Ed. Contraponto, 2012), p. 174.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense, professor associado na UEM, advogado, árbitro e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.

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