Opinião

Proteção do trabalho e as promessas constitucionais inconsequentes

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19 de julho de 2022, 6h00

Nossa ordem jurídica não admite promessas constitucionais inconsequentes. O dever de respeito e acatamento da ordem constitucional não demanda outra postura senão a vigília constante das instituições e dos agentes públicos de todas as esferas federativas e em todas as funções estatais em face dos valores mais essenciais da sociedade, exatamente para que as normas programáticas do texto da Constituição Federal não se transformem em promessas constitucionais inconsequentes.

Cabe uma pequena digressão sobre a intensidade dessa expressão "promessa constitucional inconsequente". Normalmente associada a trecho de julgado paradigmático, o RE 393.175/RS, de relatoria do eminente ministro Celso de Mello — 2ª Turma —, julgado em 12 de dezembro de 2006 [1], é uma expressão que toca no cerne do papel dos poderes constituídos e do Poder Judiciário em face de direitos e valores constitucionais. Assim, exsurge um verdadeiro dever constitucional de acionamento e movimentação das instâncias democráticas e institucionais para a consecução dos fins constitucionais.

É nesse contexto que se chama a atenção para a recente Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 73, proposta pelo procurador-geral da República, apontando lapso temporal de mais de 33 anos sem que seja editada lei federal que regulamente o artigo 7°, inciso XXVII, da Constituição, configurando-se, assim, mora do Congresso em regulamentar dispositivo que confere aos trabalhadores urbanos e rurais o direito social à proteção em face da automação.

Afigura-se extremamente oportuna a proposição desta demanda para colocar luz em um direito fundamental que, embora possa ter sido olvidado ao longo dos anos, teve sua relevância destaca com a pandemia. Com efeito, se tornou lugar comum reconhecer que as necessidades práticas do contexto de emergência sanitária demandaram um salto de anos nos processos de automação e virtualização de diversos processos produtivos, impactando sobremaneira as formas de trabalho.

Assim, é importante refletir sobre tais impactos duradouros na forma de organização produtiva e os impactos sobre uma população que não teve tempo ou infraestrutura de serviços sociais e educacionais apta para se adaptar a novas exigências e realidades. Se já se estuda o contingente de excluídos digitais em nossa contemporaneidade, logo teremos claramente os excluídos tecnológicos do mercado de trabalho em uma maior evidência.

Interessante destacar que se está efetivamente diante de situação de proteção deficiente de toda a ordem jurídico laboral se o Congresso, em regular processo democrático, não se debruçar sobre a questão e encontrar o desenho adequado de medidas e políticas públicas que possam inibir a desempregabilidade tecnológica e, mais do que isso, forneçam a infraestrutura normativa para que as atuais e futuras formas de trabalho cada vez mais imbricadas com a tecnologia, respeitem os direitos essenciais de redução dos riscos inerentes ao trabalho (CF, artigo 7º, XXII) e de proteção do trabalhador em face da automação (CF, artigo 7º, XXVII). Com efeito, o próprio artigo 7º da CF, não pode se tornar uma "promessa constitucional inconsequente".

Com efeito, há de se destacar que a seara trabalhista é particularmente rica de exemplos de direitos constitucionais ainda carentes de regulamentação mais detalhada, razão pela qual é comum uma postura ativa de sensibilização institucional, como, a título de exemplo, na temática objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO nº 27) — o Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas (Funget), expressamente previsto no artigo 3º da Emenda Constitucional 45/2004, também sem regulamentação [2].

Assim, chama-se a atenção para a efetiva contribuição que o Poder Judiciário Laboral e a própria seara trabalhista podem ofertar em perspectiva para este relevante debate.

Primeiro, não é situação nova que o avanço tecnológico muda a dinâmica de relação capital-trabalho e das próprias formas e processos produtivos. O surgimento e desaparecimento de ocupações não é algo exclusivo da modernidade, mas, em realidade, é a velocidade das transformações que firma nota distintiva. Assim, é salutar usar das experiências passadas para antecipar cenários e agilizar respostas sociais.

Por exemplo, a seara portuária oferece interessante paradigma de como as relações de trabalho enfrentaram a transformação progressiva e tecnológica dos portos, especialmente diante da experiência do processo de "modernização dos portos" (Lei nº 8.630/93, que ainda suscita debates e questionamentos). Sem pretensão de exaurir o debate, inciativas focadas no treinamento continuado e multifuncionalidade de trabalhadores parecem ser estratégias necessárias para os trabalhadores, especialmente diante de uma economia do conhecimento.

Segundo, o Poder Judiciário Laboral pode e deve refinar práticas de processo estruturais quando lidar com situações contenciosas ou mediações que envolvam impactos no trabalho em face da tecnologia. Por exemplo, especialmente diante da recente fixação de tese do Tema 638 da repercussão geral quanto às dispensas coletivas e necessidade de participação do ente sindical, o Poder Judiciário Laboral e o próprio Ministério Público do Trabalho podem atuar para que as negociações prevejam medidas de requalificação e capacitação profissional para novas tecnologias.

Parece também ser interessante que o Ministério Público do Trabalho, em práticas de atuação resolutiva e estratégica, esteja atento para setores e categorias profissionais particularmente sensíveis, exortando partes em negociação coletiva ou encontrando medidas de autocomposição em Termos de Compromisso de Ajustamento de Conduta, para adoção de medidas de capacitação e treinamento dos trabalhadores. Nesse particular, durante o período de gestão da Procuradoria-Geral do Trabalho no biênio 2019/2021, buscou-se ativamente capacitar e estimular a atuação do Ministério Público do Trabalho em temas ligados à Indústria 4.0 e num processo constante de refino da capacidade de diálogo para as novas realidades sociais.

O desafio é enorme dada a magnitude das potencialidades transformativas da tecnologia, porém igualmente relevante é a urgência do debate, desde agora sobre a questão, especialmente diante da evidente situação de contingentes enormes de trabalhadores com trabalhos mediados pela tecnologia ou mesmo afetados pelas novas tecnologias e sujeitos a novos riscos ocupacionais decorrentes de novas dinâmicas, materiais e riscos do processo produtivo.

Assim, não é de todo equivocado apontar que se o trabalho, na Constituição Federal de 1988, tanto é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, IV), como um direito fundamental a prestações (artigo 6º), um fundamento da ordem econômica (artigo 170, caput) e a base da ordem social (artigo 193), a proteção em face da automação é uma dimensão desse direito fundamental ao trabalho. Assim, a inexistência da proteção em face da automação (esta entendida como sendo uma verdadeira proteção da aptidão para o trabalho em face das mudanças de paradigmas tecnológicos) pode ser vista como uma proteção deficiente ou mesmo negativa do próprio direito fundamental ao trabalho.

Reconhece-se como sendo em boa hora a medida adotada pelo procurador-geral da República que lança luz e busca estimular um debate democrático essencial para a sociedade tanto hoje como para o futuro próximo. É exatamente esta postura, conjugada a participação e engajamento de todos da seara trabalhista que evitará que a proteção ao trabalho e o próprio trabalho decente se tornem promessas constitucionais inconsequentes.


[1] No original: "A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconsequente. O caráter programático da regra inscrita no artigo 196 da Carta Política —q ue tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro — não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado".

[2] Sobre o tema, elogiável o debate proposto pelo exmo. ministro presidente do Superior Tribunal do Trabalho. Clique aqui.

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