Opinião

Delação premiada e morte do colaborador antes da homologação do seu acordo

Autores

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

  • João Paulo Santos Schoucair

    é promotor de Justiça e membro auxiliar da Procuradoria-Geral da República.

17 de julho de 2022, 9h13

O acordo de colaboração premiada é um negócio jurídico processual, por meio do qual o colaborador abre mão do seu direito fundamental ao silêncio e da garantia da não autoincriminação em troca de um prêmio ofertado pelo Estado, em razão de ter decidido colaborar de maneira efetiva com a persecução penal, contribuindo, por consequente, para a elucidação de crimes que tenha participado ou tenha conhecimento [1].

A colaboração é um instrumento de Justiça Negocial direcionado à solução de controvérsias jurídicas de natureza penal entre o Estado, enquanto órgão de persecução penal, e o investigado. Essa solução ocorre por meio de um negócio celebrado entre as partes, por meio do qual o Estado abre mão parcialmente de sua atuação persecutória em face do colaborador, que, em contrapartida, colabora com a persecução penal e recebe um prêmio previamente acordado entre as partes.

Assim como todo negócio jurídico, os acordos de colaboração estão submetidos aos planos de existência, eficácia e validade, especificados no Código Civil e sedimentados em consonância com as peculiaridades do acordo de colaboração premiada previstas na Lei nº 12.850/2013.

Um negócio jurídico existirá, ou seja, estará constituído, quando estiverem presentes os seguintes elementos: manifestação de vontade das partes, presença de agentes emissores da vontade, objeto e forma. Em um acordo de colaboração, esses elementos se perfazem presentes no momento que as partes (colaborador e Ministério Público ou polícia) manifestam a concordância quanto ao objeto pactuado na forma prevista em lei.

Por outro lado, para um negócio jurídico ser válido, a manifestação da vontade deve ser livre e de boa-fé, os agentes devem ser capazes e legitimados para celebrar o pacto, que deve abarcar um objeto lícito, possível e determinado (ou determinável), bem como observar a forma adequada livremente adotada pelas partes ou prescrita em lei. Superada essa etapa, por meio da observância dos requisitos expostos, o acordo de colaboração, já devidamente constituído, passa a ser válido.

Um negócio jurídico devidamente constituído (plano da existência) e válido (plano da validade) muitas vezes só produzirá efeitos se observado, em determinados casos, um elemento acidental.

Nos acordos de colaboração premiada, a lei condiciona a produção de efeitos (plano da eficácia) do pacto celebrado à homologação pelo juízo, que não participa das negociações e não adentra no mérito do acordo (plano da existência), realizando apenas uma análise de legalidade e constitucionalidade da colaboração.

Desse modo, a decisão de homologação de um acordo de colaboração premiada possui natureza declaratória, pois se apresenta como uma condição imposta pela lei que deverá ser observada para que o acordo, constituído no momento da convergência de vontades entre o Estado e o colaborador, possa vir a produzir efeitos (plano da eficácia).

Ocorre que, no Brasil, vigoram, atualmente, duas espécies de sistemas colaborativos, o do favor pena e o do limite sancionatório.

O primeiro sistema, o do favor pena, inaugurado com a Lei nº 8072/90, mantido pelas demais leis posteriores, inclusive pela Lei nº 12.850/2013, caracteriza-se como um sistema de predominância inquisitorial, cujo papel do juiz é prevalente em face da vontade das partes.

A terminologia favor pena decorre do fato de o benefício a ser concedido ao colaborador incidir apenas no momento da fixação da pena, ou seja, em uma possível sentença condenatória. A colaboração, por meio dessa sistemática, envolve, em regra, um evento específico, dispensa a prévia celebração de um acordo e incide como uma situação de causa de diminuição de pena ou perdão judicial no momento da condenação.

A dispensa da celebração e assinatura formal de um acordo de colaboração premiada decorre da impossibilidade de se fixar previamente um benefício em favor do colaborador. O benefício, repita-se, será concedido ou não pelo juízo no momento de uma possível condenação, após prévia oitiva do Ministério Público.

Com a dispensa da formalização de um acordo propriamente dito, em tese, também é dispensável a homologação. Nessa sistemática, o juiz poderá atuar no momento da homologação do acordo, caso ocorra, e, principalmente, no momento da condenação, por meio da concessão de um benefício a ser aferido na sentença, em decorrência de o colaborador ter contribuído efetivamente com a persecução penal.

São legitimados para a celebração de acordo de colaboração premiada (dispensável) na sistemática do favor pena o Ministério Público e o Delegado de Polícia. A legitimidade para a celebração do acordo de colaboração premiada pelo Delegado de Polícia teve a constitucionalidade questionada perante o Supremo Tribunal Federal no âmbito da ADI 5508. Na ocasião, o Plenário da Corte Suprema considerou constitucional a possibilidade de Delegados de Polícia realizarem acordos de colaboração premiada na fase do inquérito policial.

Já o segundo sistema, o do limite sancionatório, inaugurado pela Lei nº 12.850/2013, plenifica-se com a celebração de acordo do Ministério Público e o colaborador, o qual entrega diversos eventos delitivos de que tem conhecimento, e tem um limite sancionatório estabelecido, ou seja, caso o colaborador venha a ser condenado em razão dos eventos delitivos de que tenha participado e estejam englobados pelo acordo de colaboração premiada, só cumprirá a sanção imposta em consonância com os limites sancionatórios acordados e homologados pelo juízo.

O acordo de colaboração premiada repise-se, transpõe-se como negócio jurídico processual, em que na precisa dicção de Antonio Cabral, a partir do modelo acusatório, tonifica-se uma justiça penal consensual, com reforço da autonomia da vontade e que favorece a busca de resultados concertados entre os diversos sujeitos processuais (o agente criminoso, o Ministério Público, a vítima) [2].

Nesse ponto específico, para obtenção dos benefícios (prêmios) acordados, o colaborador deve, assim, auxiliar efetivamente as autoridades, assumindo o compromisso de fornecer provas à acusação acerca de fatos criminosos e/ou corréus, mostrando-se insuficiente o seu depoimento, desacompanhado de lastro probatório, para embasar uma condenação.

Tem-se, assim, que o colaborador deve agir de maneira voluntária e assistido por advogado, numa perspectiva de que os fatos apresentados sejam úteis às investigações, cuja aferição caberá ao Ministério Público, sob a chancela do poder Judiciário, a quem competirá a análise de sua regularidade, legalidade e voluntariedade.

Fincadas tais premissas, a pergunta que exsurge e necessita de resposta, no presente trabalho, é o que acontece com um acordo de colaboração premiada quando o pacto é firmado entre as partes e o colaborador falece antes da homologação do pacto? O material e a narrativa apresentados pelo colaborador poderão ser utilizados pelos órgãos de persecução?

Sublinhe-se, por oportuno, que o artigo em comento não tem a pretensão de esgotar o tema ou estampar qualquer tipo de axioma, sendo certo que a resposta para os questionamentos feitos dependerá do sistema colaborativo adotado.

Na sistemática do limite sancionatório, conforme destacado acima, o acordo e a homologação são obrigatórios, fixam-se direitos e obrigações entre as partes, em razão de estarem renunciando a direitos fundamentais, a serem compensados, no caso do Estado, pela colaboração com a persecução penal, no caso do colaborador, pelo prêmio acordado entre as partes.

Por conseguinte, o falecimento do colaborador, antes da homologação, impossibilita que o Ministério Público utilize as narrativas e os elementos de corroboração apresentados pelo colaborador, visto que o pacto não superou o plano da eficácia do negócio jurídico, com a ausência de homologação. Além disso, geraria a possibilidade de o acordo não homologado produzir efeitos negativos em face dos sucessores do colaborador falecido (ex: execução de obrigações pecuniárias) [3], sem que o colaborador tenha recebido algum prêmio compensatório, mesmo tendo transigido em face do seu direito ao silêncio e da garantia da não-autoincriminação.

No caso dos acordos celebrados de acordo com a sistemática do favor pena, a morte do colaborador, antes da homologação do acordo, não impede que o Ministério Público ou a autoridade policial utilizem o material (relatos e elementos de corroboração) apresentados pelo colaborador.

Sobreleve-se, assim, que, no sistema do favor pena, dispensável é a celebração de acordo e, por corolário, a homologação do pacto. Os direitos e obrigações das partes serão os previstos em lei, ou seja, não é admissível se fixar no pacto, por exemplo, benefícios premiais em favor do colaborador, que poderá receber alguma melhoria em sua situação jurídica de cunho criminal no momento de uma possível condenação, ocasião em que o juízo, após prévia oitiva do Ministério Público, decidirá se concederá o perdão judicial ou, na dosimetria da pena, reduzirá a sanção a ser imposta ao colaborador nos limites da lei.

Por certo, desde a apresentação dos relatos e elementos de corroboração pelo colaborador, os órgãos de persecução poderão utilizar o material recebido, visto que, repita-se, na sistemática do favor pena, o acordo e a homologação são dispensáveis, em decorrência de não ser possível transigir sobre direitos fundamentais nessa sistemática, por meio da fixação de benefícios, limites sancionatórios, obrigações pecuniárias etc. em favor ou em desfavor do colaborador. É o que acontece nos acordos de colaboração celebrados pela autoridade policial.

Além da facultatividade do acordo/homologação, essa conclusão é possível em razão de não haver obrigações em desfavor do colaborador na sistemática do favor pena que o coloque em uma situação de desvantagem em face do Estado, mesmo tendo colaborado com os órgãos de persecução, pois eventual incidência de benefícios (prêmio) só ocorrerá no momento da condenação. A morte do colaborador na referida sistemática, diferente da do limite sancionatório, não gerará obrigações para seus familiares, vez que não se extrapola as previsões obrigacionais constantes na legislação antes de uma possível condenação.

Não se está olvidando, destarte, que a colaboração premiada é um negócio jurídico personalíssimo que gera uma série de direitos e obrigações entre as partes, impossibilitando que terceiros, inclusive o juízo homologador, possa participar das negociações, bem como interferir no mérito de um acordo de colaboração premiada. Ocorre que as obrigações constantes em um acordo, na sistemática do favor pena, são meramente a reprodução de obrigações legais, que estariam presentes em qualquer situação persecutória, mesmo que não existisse um acordo, razão pela qual o pacto nessa sistemática é facultativo. Eventual benefício não extrapolará a figura do colaborador e, reafirme-se, só incidirá em uma possível condenação.

Os relatos e elementos de corroboração apresentados, por exemplo, em um acordo de colaboração premiada celebrado entre a autoridade policial e um colaborador que tenha falecido antes da homologação serão enquadrados como a narrativa de uma situação fática e probatória que acontece diuturnamente perante as autoridades de persecução, enquanto elementos que são utilizadas em novas investigações ou reforçam persecuções em curso (notitia criminis). Não haverá prejuízo ao colaborador, que faleceu, aos seus sucessores (diferente da outra sistemática), nem será necessário verificar se o acordo de colaboração premiada se deu de forma espontânea, visto que se trata de um ato dispensável.

Diante do exposto, pode-se concluir que, no caso de falecimento do colaborador, antes da homologação do seu acordo, na sistemática do favor pena, os relatos e elementos probatórios apresentados poderão ser utilizados, ao passo que, na sistemática do limite sancionatório, não poderão os agentes do sistema de defesa social valer-se do material apresentado pelo colaborador.

 


[1] Sobre o aludido tema e sua visão mais aprofundada, vale conferir PAULINO, Galtiênio da Cruz; SILVA, André Batista e. Manual de acordo de colaboração premiada. Rio de Janeiro: Processo, 2021.

[2] CABRAL, Antonio do Passo. Acordos processuais no processo penal. In: CABRAL, Antonio do Passo; PACELLI, Eugenio, CRUZ Schietti (Coord.). Coleção repercussões do novo CPC no processo penal. V. 13, Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 149-178.

Autores

  • é mestre pela Universidade Católica de Brasília, doutorando pela Universidade do Porto, pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp, orientador pedagógico da ESMPU, ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e exerce funções de membro auxiliar da Procuradoria-Geral da República.

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