Improbidade em Debate

A importância do amicus curiae e o tema 1.199 de repercussão geral

Autores

15 de julho de 2022, 8h03

Se os tomadores de decisão são uma soma de suas circunstâncias e o produto de contextos históricos e espaciais que os forjam sob o signo de uma intersubjetividade a acompanhá-los desde o nascimento, deve essa mesma premissa preponderar na construção de um pensar sobre problemas submetidos à sua solução.

Spacca
Pretendendo elucidar esse parágrafo de abertura, o que estamos a dizer é que, com a crescente complexidade da sociedade contemporânea, a jurisdição, ciosa de sua legitimidade, cada vez mais tem se aberto a novos olhares, que bem demonstram ser possível uma forma mais democrática de se enxergar a aplicação do direito.

Afinal, o que confere legitimidade à jurisdição não é o traduzir-se em ato de poder, mas sim a fidelidade do que lhe foi deferido servir segundo expectativas antecipadamente formalizadas; ao que "discursivamente definido pelos que participam da tarefa democrática de autorregulação de sua convivência política" [1]. A construção do direito não há de defluir de algo metafísico, valioso em si mesmo e por si mesmo. Antes, há de ser um empreendimento coletivo, um constructo intersubjetivo que vincula as decisões particularizadas [2].

A democracia é um valor e uma prática. Ou ela é plural, controversa e pública, ou simplesmente não é democracia alguma [3]. Uma percepção democrática do direito, por conseguinte, rejeita a ideia de uma captação solitária do bem viver em sociedades plurais e complexas. Faz-se necessária, no campo jurisdicional, uma procedimentalidade na qual agentes interessados e qualificados possam influenciar na formação das decisões [4].

Spacca
É a evocação da percepção do procedimento como constitutivo do processo de decisão, democratizado por um policentrismo [5] institutivo de direitos fundamentais e ao mesmo tempo enriquecedor e limitador da jurisdição enquanto poder [6]. É, em essência, a viabilização "de um controle hermenêutico da interpretação e de suas condições semânticas, em superação à discricionariedade", parte integrante e indispensável à ideia de uma resposta constitucionalmente adequada [7].

No âmbito da jurisdição constitucional, essa abertura cognitiva tem encontrado na figura do amicus curiae particular prestígio. Não são poucos os exemplos facilmente verificáveis a atestar a estatura do papel desempenhado por aquele instituto em seu mote de subsidiar decisões, tornando-as assim mais bem fundamentadas e mais democráticas. E é sob essa perspectiva global que analisamos, em particular, o tema 1.199 de repercussão geral, em que se definirá a (ir)retroatividade das disposições benignas introduzidas na Lei de Improbidade pela Lei nº 14.230/2021.

Pois bem, mercê da importância do tema, foram muitos os pedidos de intervenção como amicus curiae, tendo o ministro relator, ao fim e ao cabo, admitido o ingresso da Associação Brasileira de Municípios, da Frente Nacional de Prefeitos, da Confederação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) e dos Ministérios Públicos dos Estados de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Goiás, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul.

Em que pese se cuide de uma prerrogativa do relator, chamou atenção a admissão de diversos Ministérios Públicos estaduais. A despeito de o Conamp haver inserido em sua petição a condição de ponto focal das prerrogativas funcionais e da missão constitucional desempenhada por seus membros, e tendo ainda presente a natural intervenção e a possibilidade de sustentação da Procuradoria-Geral da República, parece ter pesado a argumentação enunciada pelos órgãos ministeriais no sentido de que sua independência funcional justificaria peculiaridades a validar manifestações em paralelo.

De igual modo, ausência sentida concerne ao Instituto Brasileiro de Direito Administrativo, que, composto por reconhecidos estudiosos do tema, acabou tendo seu pedido de ingresso indeferido. Seja como for, um primeiro ponto que reputamos merecedor de atenção está em que os valiosos argumentos declinados por aquela entidade (a dicção do artigo 493 do CPC; a rejeição pelo Senado de dispositivo prevendo retroação por considera-lo desnecessário à vista dos princípios de direito sancionador; os aportes de garantias penais dada a natureza sancionatória da improbidade; direito comparado a trazer exemplos que pacificam a retroatividade na seara sancionadora; a doutrina de Fábio Medina Osório, que, ao revés de contrária, é favorável à retroatividade) podem e devem ser tomados em consideração por ocasião da deliberação, como, aliás, já decidido pelo Supremo Tribunal Federal em hipótese em que, inobstante inadmitida intervenção como amicus curiae, se franqueou a possibilidade de sua atuação "informal":

"(…) a falta de participação formal de interessado nos autos não impede que suas ponderações sejam examinadas por ocasião do exame das questões de fundo. (…) Ademais, deve-se ter presente a causa de pedir aberta do controle de constitucionalidade. Por outro lado, ainda que sem participação formal no julgamento, os interessados não estão impedidos de distribuir memoriais e outros materiais de estudo pertinentes à elucidação da matéria em julgamento, sendo oportuna essa contribuição dogmática antes do início da sessão de julgamento" (RE 611.586, relator ministro Joaquim Barbosa).

Segundo ponto que pretendemos ressaltar está na necessidade de se equilibrar o debate entre os amici curiae admitidos. É falar, como já se decidiu no RE nº 1.037.396, relator o ministro Dias Toffoli, "faz-se imprescindível levar em consideração, nos processos de controle abstrato e nos recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida, o equilíbrio e a isonomia entre aqueles que, na qualidade de amicus curiae, apresentam argumentos opostos a respeito da tese sustentada perante a Suprema Corte".

Mais bem explicando, percebidas nas petições de ingresso a inclinação argumentativa de cada amicus, há de ser preservada uma paridade, particularmente nas sustentações orais, não entre os amici, isoladamente considerados, mas sim entre as teses por eles advogadas.

Ainda a bem de melhor clareza, o Supremo Tribunal Federal, no passado, ponderou a inexistência de regras específicas para sustentação oral do amicus curiae, sobretudo quando houvesse multiplicidade de intervenções: "Admito, hoje, a sustentação oral e insto o Tribunal a que imaginemos uma fórmula regimental que a discipline, em especial, para as hipóteses em que sejam muitos os admitidos à discussão da causa" (STF — Pleno — Questão de ordem — Adin 2.777/DF — relator ministro Sepúlveda Pertence, Informativo, 349, p. 4).

De modo a colmatar a lacuna, o Supremo Tribunal Federal passou a valer-se da regra regimental inserta no artigo 132, § 2º, para, diante de vários amici, dobrar o prazo de sustentação e compartilhá-lo entre os intervenientes: "Havendo três 'amici curiae' para fazer sustentação oral, o Plenário, por maioria, deliberou considerar o prazo em dobro e dividir pelo número de sustentações orais" (RE 612043/PR, relator ministro Marco Aurélio, julgamento em 4/5/2017).

Ocorre que a aludida disposição, ao menos no que diz respeito ao tema 1.199, pode ser mais bem atendida em nosso sentir. Explicamos: diz o referido texto normativo que, "se houver litisconsortes não representados pelo mesmo advogado, o prazo, que se contará em dobro, será dividido igualmente entre os do mesmo grupo, se diversamente entre eles não se convencionar".

Melhor que simplesmente dobrar o prazo e dividi-lo entre os oito amici admitidos no citado tema, mais adequado, segundo entendemos, seria considerar os intervenientes em grupo, a partir da tese que defendem, o que faria com que metade do tempo fosse dividido entre, de um lado, Conamp e Ministérios Públicos Estaduais e, de outro, a Frente Nacional de Prefeitos e a Associação Brasileira de Municípios.

Se poderia dizer, em contraponto, que o amicus curiae não assume um papel de assistente em defesa de uma tese, muitas vezes apenas municiando a corte de informações. Sem embargo, ainda que isso possa ser verdade em alguns casos, noutros, como nos parece ser o tema 1.199, o caráter binário do debate (ou retroage a reforma no que beneficie réus ou não retroage), aliado a um olhar pragmático que revela sim em muitos casos a encampação de uma posição bem definida pelos amici (tanto que, como extraído de decisão do ministro Toffoli, pode isso inclusive repercutir num equilíbrio por ocasião da admissão), hão de temperar, a nosso ver, a interpretação da norma regimental.

À guisa de fecho, bem além de mero formalismo, consideramos que o viés democratizante propiciado pela figura do amicus curiae deve necessariamente tomar em conta uma participação que se revele substancial e efetiva, além de paritária e equilibrada.

 


[1] PASSOS, José Joaquim Calmon de. Ensaios e artigos. Salvador: JusPodivm, 2014. p. 394-395. v. 1.

[2] STRECK, Lenio Luiz. A crítica hermenêutica do direito e a questão da discricionariedade judicial. In: STRECK, Lenio Luiz (org.). A discricionariedade nos sistemas jurídicos contemporâneos. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2019. p. 42.

[3] ABEL, Henrique. Positivismo jurídico e discricionariedade judicial: a filosofia do direito na encruzilhada do constitucionalismo contemporâneo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 141.

[4] NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 203.

[5] FLETCHER, William. The discretionary Constitution: institutional remedies and judicial legitimacy. In: The Yale Law Journal, v. 91, nº 4, p. 645, 1982.

[6] NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 143.

[7] O direito a uma resposta constitucionalmente adequada é o cerne da crítica hermenêutica do direito de Lenio Streck, assim entendida a resposta que preserva a autonomia do direito, submetida a um controle hermenêutico da interpretação e de suas condições semânticas, em superação à discricionariedade; que respeita a integridade e a coerência do direito; que bem se desonera do dever constitucional de fundamentação exauriente. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 690 et seq.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!